Ideia de Brasil — Capítulo Zero (parte 2): Uma tentativa de periodização da Nova República

Felipe Pimentel dá continuidade à sua proposta de periodização da Nova República, sem deixar de constatar um dilema clássico da história do tempo presente: nunca estarmos distantes o suficiente dos fatos para compreender seus encadeamentos e relações de causa e efeito.

No sentido delineado no primeiro texto desta coluna, a Nova República é o nosso tempo presente (em que pesem certas interpretações que a dão por acabada) e, como tal, apresenta as maiores dificuldades para tentarmos escrever a sua história. O dilema clássico da história do tempo presente é não estarmos distantes o suficiente dos fatos para que possamos compreender os grandes encadeamentos históricos e suas relações de causa e efeito. Visto dia a dia, um evento histórico parece somente uma coletânea de fatos aleatórios e imprevisíveis, sem qualquer continuidade. Porém, o distanciamento temporal de um fato permite-nos entender as continuidades e descontinuidades de longa extensão, os processos econômicos, políticos e culturais que são lentamente gestados e provocam rupturas, rebeliões e até revoluções. Não nos custa tentar, evidentemente.

Manifestações tomaram a Ponte Estaiada em 2013. Foto: JF Diorio/Estadão.

Do ponto de vista panorâmico, a Nova República é um bloco contínuo, que se inicia com a posse de José Sarney e se estende até nossos dias. Presidentes foram eleitos, assumiram, governaram. Alguns foram impedidos, outros reeleitos. Contudo, nada parece indicar que temos subperíodos internos do ponto de vista político ou institucional. O que proponho a seguir não é necessariamente uma subdivisão interna institucional, mas uma subdivisão a título de compreensão, isto é, momentos culturais, sociais, políticos e econômicos da Nova República. O que me parece mais interessante é que estes subperíodos parecem profundamente coerentes entre si nas mais distintas esferas: para cada um, há um processo político-partidário em curso, uma transformação econômica, um fenômeno musical marcante, uma marca geracional, uma tecnologia impactante e uma forma específica de mídia predominante. Quando elaborei esta subdivisão, essa homogeneidade me impressionou, especialmente por seu caráter didático. Ela parece abrir caminho para mais relações, entendimentos, pesquisas e desenvolvimentos, de modo que este período recente da República brasileira seja ainda mais bem compreendido. 

A divisão dos subperíodos não acompanha necessariamente mandatos presidenciais, mas tendências gerais que possam explicar grandes movimentos sociais lato sensu, conforme citei anteriormente. Abaixo apresento os pontos principais de cada período em diferentes áreas, para, a seguir, mostrar um quadro esquemático dessa periodização, quadro que será esmiuçado em cada capítulo posterior desta coluna. A estrutura é como segue:

1985-1993: Década Perdida

Período inicial da Nova República, marcado pela transição do regime militar para a democracia, com todas as suas inseguranças e delicadezas, em especial diante da necessidade de uma nova constituição para a nascente República democrática. Paralelamente a isso, existia uma forte e crescente instabilidade econômica — marcada pela troca de moedas em ritmo frenético. O país ainda estava fechado comercialmente para a globalização, iniciando uma abertura somente a partir do governo Collor. Ainda se tratava de um estado grande e ineficiente, com problemas crônicos, sem capacidade de renovação. Do ponto de vista da informação e da cultura, havia uma curadoria da grande mídia televisiva e uma forte representatividade da sociedade de classe média branca na exposição midiática.

A posse de Collor. Foto: Acervo Estadão.
  • Economia: marcada pela “estagflação” (inflação + estagnação) e por tentativas malfadadas de controle deste processo (planos heterodoxos de congelamento de preços — Cruzado, Cruzado II, Bresser e Verão — e retenção dos depósitos bancários – Plano Collor), bem como pela troca frequente de moedas. 
  • Política: abrange os governos de Sarney (1985-1990), Fernando Collor (1990-1992) e metade do mandato de Itamar Franco (1992-1994), período no qual o governo buscava organizar-se internamente e garantir a governabilidade mínima.
  • Mídia & Cultura:  predomínio da grande mídia televisiva (TVs abertas — Globo e SBT, em especial) e impressa (grandes jornais — Estado de São Paulo, Folha e Globo — e revistas – Veja, Istoé, etc)., curadoras do conteúdo da população. Época das novelas, da intensa programação infantil e de forte presença da população branca de classe média na cultura. Na música, período do BRock.

1993-2003: Década de Modernização

Década marcada por uma profunda transformação econômica: a estabilidade criada pelo Plano Real — que persevera até hoje, tendo mantido a mesma moeda e a inflação e o câmbio controlados minimamente. O governo aposta em uma reforma do estado baseada em ajuste fiscal, privatizações e inserção global. Escândalos de corrupção podem surgir, mas não mobilizam a sociedade de forma intensa. Do ponto de vista internacional, o Brasil deixa de ser o “patinho feio” ou apenas um lugar inseguro para se tornar um país em ascensão. Há uma leve mudança na cultura, com o “aparecimento” de manifestações culturais “periféricas” (regional ou socialmente).

O nascimento do Plano Real. Foto: Acervo Estadão.
  • Economia: marcada pelo Plano Real, plano ortodoxo elaborado em 1993 pela linha liberal dos economistas brasileiros e capitaneado pelo ministro da Fazenda de Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, que teve como efeito a estabilização da economia, o controle da inflação e a inserção do país na globalização.
  • Política: abrange os governos de Itamar Franco (1992-1994) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), primeiro presidente a ser reeleito graças ao dispositivo introduzido pela PEC de 1997.
  • Mídia & Cultura:  entrada da TV a cabo, competindo com a grande mídia televisiva; a mídia impressa vê a proliferação de revistas e jornais de nicho  (Capricho, Nova, Caras, Contigo, etc). Programação televisiva aberta passa para as donas de casa e para a terceira idade. Computadores e telefones celulares começam a adentrar com força em espaços de trabalho, escolas e até mesmo residências. Na música, temos um processo de comercialização mais radical da produção de classe média branca, que se torna o Pop Rock, e vemos a entrada de duas produções de regiões “periféricas”: em primeiro lugar, a música de periferia urbana propriamente dita, o Rap, o Funk e o Pagode; e em segundo lugar, a música de uma periferia regional brasileira, a saber, a região centro-oeste, com o Sertanejo, e o nordeste, com o Axé.

2003-2013: Década Petista

Década marcada pela ascensão do PT ao poder, após duas décadas de militância, tentativas e governos municipais e regionais. A estrutura socioeconômica e política é mantida, embora o discurso adquira uma forte conotação social. A polarização é estritamente política e eleitoral, e é tímida, marcada mais por uma semelhança entre o projeto petista e o tucano do que por diferenças muito profundas e grandes entre eles. A sociedade vive uma expansão do consumo com o famoso boom das commodities, assistindo a entrada da nova classe C. O Brasil ganha certo protagonismo diplomático internacional. O petismo assume contornos de moderação e adere ao presidencialismo de coalizão. A entrada da internet começa a descentralizar a informação e a diminuir o impacto da mídia tradicional.  

FHC passa a faixa presidencial para Lula. Foto: Joedson Alves/Estadão Conteúdo.
  • Economia: marcada pela expansão econômica dos anos Lula e início dos anos Dilma; o boom das commodities lança o país em protagonismo internacional; programas sociais retiram milhões de pessoas da miséria e a ascensão da classe C transforma a sociedade brasileira.  
  • Política: abrange os governos de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010) e os primeiros três anos do primeiro governo de Dilma Rousseff (2010-2016), período no qual houve relativa paz política no Brasil e os governantes exerceram os seus mandatos normalmente; Brasil alça-se a protagonista diplomático mundial. 
  • Mídia & Cultura:  entrada da internet no Brasil; blogs proliferam e iniciam um processo radical de descentralização da informação no país; smartphones chegam às mãos da população, junto às primeiras redes sociais e ao uso predominante de e-mails. Na música, temos um vácuo em alguns setores, que parecem “surfar” no sucesso da geração anterior, como no Sertanejo e no Pagode, e temos a retomada de uma música relevante de classe média, dividida etariamente.

2013-2023: Década da Polarização

Década que se inicia com um evento de difícil interpretação, as manifestações de junho de 2013, e que se prolonga por uma série de manifestações oriundas de uma intensa polarização no país. A Operação Lava Jato, desencadeada em 2014, incendeia os ânimos políticos e escândalos de corrupção mobilizam a sociedade como nunca antes. A chegada das redes sociais vai além da pulverização da informação, atingindo níveis de desinformação, fake news e violência digital intensa. A aparente continuidade ou semelhança entre PT e PSDB transforma-se em uma disputa entre petismo e antipetismo. O judiciário, as ações do Ministério Público e da Polícia Federal ganham os holofotes  — políticos e empresários de grande calibre vão para a cadeia em profusão pela “primeira vez”. Há um esgarçamento da divisão social, que empurra as ideologias políticas para os extremos, especialmente na direita. A polarização ultrapassa os limites da esfera política e eleitoral para a esfera moral, da vida pessoal e privada. Intensificam-se debates sobre as pautas progressistas (de raça, gênero e orientação sexual) e conservadoras (religiosas, moralizantes, etc.).

Manifestações em Brasília em junho de 2013. Foto: André Dusek/Estadão.
  • Economia: marcada por uma crise crescente, com seguidas tentativas de respiro; crise iniciada com a debacle econômica (2015) do início do segundo mandato de Dilma Roussef, que levou às tentativas de ajuste fiscal do governo Michel Temer (2016-2018) e às ações razoavelmente dispersas de desburocratização do governo Jair Bolsonaro (2018-2022), que terminaram, por sua vez, sendo devassadas pelos efeitos da pandemia do Covid-19. 
  • Política: abrange os governos de Dilma Rousseff (2010-2016), Michel Temer (2016-2018) e Jair Bolsonaro (2018-2022). Tem início com a crise política, social e civil de 2013, que abre um período intenso de polarização política no país, marcadamente entre petismo e antipetismo, manifesta na eleição de 2014, no pós-eleição com a formação de grupos pró-impeachment de Dilma e, finalmente, no próprio impeachment de 2016. Essa polarização foi agudizada pelos resultados da investigação sobre corrupção nos governos do PT no interar da Operação Lava Jato (2014-2021), culminando com a prisão de Lula e consecutiva a eleição de Jair Bolsonaro, representante máximo do antipetismo. Todo o seu governo será marcado por essa polarização até a sua derrota eleitoral para o mesmo Lula — solto em meio às revisões (e posteriores anulações) dos processos da Lava Jato. A polarização política passa a abarcar fortes componentes comportamentais ligados a questões identitárias relativas a raça, gênero e orientação sexual. 
  • Mídia & Cultura:  entrada definitiva das redes sociais (Facebook, Instagram, Whatsapp, Twitter e Tik Tok) no país e declínio da grande imprensa televisiva e impressa; os streamings substituem a TV a cabo e as locadoras de DVDs são extintas; os smartphones passam a ser os grandes organizadores da vida cotidiana pessoal ou profissional. Na música, surge a Nova MPB, com forte componente político, civil e social, afetada pela polarização; as músicas de periferia ganham uma nova e potente geração: nas zonas urbanas, o Funk, a “new school” do Rap e o novo pagode; na região centro-oeste, o sertanejo universitário, e no nordeste, o piseiro.

Para apresentar a abrangência do que desejamos desenvolver nos próximos textos, trago este quadro esquemático:

Década Perdida:
1985-1993
Década de Modernização:
1993-2003
Década Petista:
2003-2013
Década Petista:
2003-2013
EconomiaEstagflação e planos heterodoxosEstabilização com plano RealCrescimento, ascensão da classe C e Bolsa FamíliaCrise Econômica, reformas, ajuste fiscal e crise do Covid-19
PolíticaPresidentes frágeis, partidos em consolidação e reorganização legislativaPredomínio do PSDB, transitando entre neoliberalismo e social-democraciaPredomínio petista, polarização “racional” entre PT x PSDB e protagonismo lulistaPolitização crescente, radicalização, petismo x antipetismo e ascensão da extrema-direita
Grupos em ascensãoCrianças na programação televisiva e no consumoPúblico LGBT e idosos ganham espaço na sociedade timidamenteAnimais de estimação tornam-se público consumidorPopulação de periferia e minorias ganham protagonismo na mídia e na sociedade
CulturaDomínio da produção cultural da Rede Globo, especialmente NovelasManifestações culturais alternativas ganham maior espaço na mídiaMovimentos alternativos buscam os próprios espaços, independentementeCultura migra para internet, com podcasts, canais de YouTube e lives no Instagram
GeraçãoGeração XMillenialsGeração YGeração Z
TecnologiaComputadores empresariaisComputadores pessoaisNotebooksSmartphone e Tablets
MídiaTV aberta e grandes revistas
Discos e fitas cassete
TV a cabo e revistas de nicho
CD e DVD
Internet e Blogs
Pen Drives
Redes Sociais
Streaming
ComunicadoresTelefone fixoTelefone celularE-mailWhatsApp
MúsicaBRock
Música comercial
Pop Rock
Música de periferia urbana (rap, funk e pagode) e regional (sertanejo e axé)
Pré-Nova MPB e intervalo entre gerações das músicas de periferia
Cantoras
Nova MPB
“New school” do rap
Funk Kondzilla
Sertanejo universitário
Piseiro

No próximo texto, abordarei os aspectos factuais da história da Nova República, desde 1985 até a eleição de Lula em 2023, para, então, passarmos para a cultura, a economia, a política e a sociedade.

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