No capítulo anterior, apresentamos os últimos anos do regime militar, em especial os fatos dos seus últimos dois mandatos – Geisel e Figueiredo. Neste, vamos olhar para a transição de regime, quando do surgimento da Nova República, objeto dessa série de textos.
Conforme vimos, desde 1978 houve uma progressiva abertura político-eleitoral, chamada, no governo Geisel, de “distensão lenta, gradual e segura”, e no governo Figueiredo de “abertura política”. Esse movimento anunciava a possibilidade de que a transição entre os militares e os civis, isto é, que a sucessão entre Figueiredo e o próximo presidente, poderia ocorrer em uma eleição presidencial direta. Ocorre que, para tal, seria necessário um dispositivo constitucional que alterasse a carta constitucional vigente, de 1967/9. Alterações constitucionais exigem um amplo trabalho político, pois uma emenda precisa de maioria absoluta, isto é, ⅔ dos votos. Mesmo assim, a expectativa – e a esperança popular – era alta. Foi diante deste quadro que o deputado Dante de Oliveira, do PMDB do Mato Grosso, apresentou a proposta ao Congresso.
Iniciou-se no país uma extensa, intensa e massiva campanha popular pelas eleições diretas, conhecida como Diretas Já. Foram as mais distintas modalidades de ação: assembleias, articulações, congressos, manifestações artísticas e culturais, shows, artigos jornalísticos, livros e principalmente comícios políticos. Os primeiros comícios da campanha das “Diretas” ocorreram em Goiânia, Abreu e Lima em Pernambuco e em Porto Alegre, ainda em 1983, e o movimento se espalhou pelo Brasil, tomando conta das capitais, no que ficou marcado como a maior manifestação popular espontânea da história do país (até os eventos da última década da Nova República). A manifestação mais célebre desta campanha foi o comício da Sé, em 25 de janeiro de 1984, no qual mais de um milhão de pessoas compareceram. À ação política somou-se (mesclou-se ou até mesmo ocultou-se) o aniversário da cidade de São Paulo (assim foi noticiado por parte da imprensa, de modo a disfarçar o aspecto político da manifestação). A campanha carregava tamanha convicção que as principais lideranças políticas do país dirimiram suas diferenças em busca da aprovação das Diretas. Subiram ao mesmo palanque, grandes protagonistas políticos do país, de mãos dadas, entre eles Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Leonel Brizola, Lula, Fernando Henrique Cardoso e Franco Montoro.
Para decepção de grande parte da população, a confiança e a popularidade da medida não se refletiu, por inteiro, na votação. Necessitando 320 votos para ter maioria absoluta, a Emenda Dante de Oliveira, como ficou conhecida, foi votada em 25 de abril de 1984 e recebeu 298 votos favoráveis e 65 contrários. 113 deputados não compareceram. Faltaram somente 22 votos para ser aprovada. Todos os votos contrários às Diretas foram do PDS. E foi do mesmo PDS que 112 das 113 ausências foram registradas. Dos votos pró-Diretas, somente 55 foram deste partido, e os restantes do PMDB (200), PTB (12), PDT (23) e PT (8). Logo, a eleição para a sucessão de Figueiredo se daria por via indireta.
Diante disso, a eleição se daria por Colégio Eleitoral, isto é, os deputados e senadores votariam no próximo presidente do Brasil. A eleição tornaria-se uma disputa interna dos partidos políticos de nossa república representativa. Não significava mais uma eleição que buscava aprovação popular, mas uma articulação interna no Colégio Eleitoral. Houve muita discussão dentro de cada partido, pois se abria uma possibilidade de eleger até mesmo candidatos sem grande popularidade, mas com habilidade nos bastidores.
No PDS, a disputa revelou tanta controvéria interna que forçou a convocação de prévias dentro do partido, sugeridas, inicialmente, pelo presidente Figueiredo. Surgiram como candidatos: o vice-presidente Aureliano Chaves, o senador por Pernambuco Marco Maciel, o ministro do Interior Mário Andreazza e o ex-governador de São Paulo Paulo Maluf. Porém, o presidente Figueiredo mudou de opiniao; intercedeu e anulou a instauração de prévias, por motivos que remetem principalmente ao seu desinteresse pela candidatura do seu próprio vice-presidente – e que se anunciava favorito. Diante disso, o partido entrou em dissenso, e uma grande perda ocorreu, no caso, a saída do presidente do partido, José Sarney e outros correligionários, que insatisfeitos, abandonaram o PDS e formaram a Frente Liberal. Neste vácuo, dentro do PDS, cresceu a candidatura de Paulo Maluf. Já podemos, de antemão, apontar esse quiproquó dentro do partido da situação como um sintoma da fragilização institucional do regime, que não conseguiu garantir um sucessor ou uma transição sob seu comando.
Na oposição, o PMDB buscava um candidato com capacidade para vencer no Colégio Eleitoral. Ulysses Guimarães, apesar de liderar o partido, foi descartado como candidato, por ser visto por muitos congressistas como “radical”. Foi assim que Tancredo Neves, que migrara para o PMDB para se candidatar ao governo de Minas Gerais em 1982, surgiu como uma voz, digamos, menos contestável. É importante resgatar a história de Tancredo Neves, para esclarecer o seu protagonismo neste momento e os significados que ele carregava.
Tancredo Neves foi um político mineiro com passagens pelo Legislativo e pelo Executivo, estando no centro de situações importantíssimas da história do Brasil. De vereador e deputado chegou a ministro da Justiça de Vargas; durante o curto período do parlamentarismo, sob o mandato de João Goulart, foi primeiro-ministro do país; foi senador e depois eleito governador de Minas Gerais. Era um político habilidoso, negociador, ponderado e articulado. Opôs-se ao regime militar, manifestando diretamente essa contrariedade em eleições no legislativo; porém, o fez sem radicalismos, o que lhe garantiu não ter perdido o mandato. Em seu trânsito político, conseguiu inclusive se reaproximar de antigos adversários, como Magalhães Pinto, para fundar um partido de centro, o PP, que depois se uniu ao PMDB, em 1982, em movimento também sob sua liderança. Para a população, Tancredo ocupava um lugar de seriedade, honestidade e sobriedade – algo raro -, o que é fundamental para entender os eventos vindouros.
Após esse breve interlúdio sobre Tancredo, voltemos à articulação política nas eleições indiretas. Naquele momento, a grande disputa no Congresso circulava em torno do grande número de deputados que migrara para a Frente Liberal, e que até então, em algum nível, flutuavam. Assim, através da articulação de Ulysses Guimarães, a Frente Liberal se uniu ao PDMB. Alguns dos principais políticos dela foram cogitados como possíveis protagonistas para comporem com Tancredo uma chapa. E quem terminou a compondo foi o ex-presidente do PDS e grande protagonista da Frente Liberal, José Sarney. Este podia trazer o seu contingente de partidários e compor uma votação expressiva para a, assim surgida, Aliança Democrática.
Ainda que não tenha havido voto popular, a campanha da Aliança possuía jingle, que dizia:
“Queremos ter ordem e progresso
E o sucesso só chegará
Porque será
Tancredo Neves, Tancredo Neves
Tancredo já, Tancredo já, Tancredo já
O povo está trancado
Quer se libertar”
A eleição ocorreu em 15 de janeiro de 1985, e a Aliança Democrática triunfou sobre o candidato do PDS e representante da situação, Paulo Maluf, com uma expressiva vitória de 480 votos a 180. O país comemorou efusivamente a eleição de Tancredo, não só por sua trajetória pessoal, visto por muitos como um político capacitado, competente e idôneo, mas também porque a sua vitória representava o fim do período militar e anunciava novos ventos na história da República.
O drama de Tancredo Neves
Uma tragédia, porém, se avizinhava no país. A posse de Tancredo estava prevista para as 10h do dia 15 de março de 1985, isto é, decorreriam dois meses entre a sua eleição e a sua posse. E isso num momento delicado de transição de regime. Vigoravam receios de que a transição não se completaria, que poderia haver revanchismos dos civis, dissensões internas nas Forças Armadas, manifestações populares mais críticas. Porém, tudo transcorria normalmente no verão de 1985. Foi então que o presidente recém-eleito começou a passar mal no dia 13 de março de 1985, antevéspera da posse. Seu estado de saúde só foi comunicado ao vice Sarney na madrugada do dia 14. Apesar de o país saber que Tancredo estava hospitalizado, nada parecia muito grave. As notícias nos jornais falavam que se tratava somente de uma cirurgia de apêndice:
Nos bastidores, contudo, havia um clima de tensão. Pululavam aqui e ali boatos de que a situação médica do presidente era mais séria. Assim, os receios dos diferentes atores políticos cresciam. Se o presidente não pudesse assumir no dia 15, dois dias depois de ser internado, a transição poderia se colocar em risco. Alguns aventavam a possibilidade de essa fragilização impedir a entrega do governo pelos militares. Seria aceitável, pelos militares, pela população, pela classe política, que, estando internado o presidente, Sarney assumisse em seu lugar? E se, caso ainda mais grave, a saúde do presidente realmente deteriorasse e algo ainda mais sério acontecesse? Seu falecimento. Seria possível uma presidência de um vice praticamente de ocasião? Um político tarimbado, mas sem grande prestígio político e popular? A delicadeza da transição jogou incerteza até mesmo sobre o procedimento que deveria ser adotado diante da impossibilidade da posse de Tancredo: Ulysses deveria assumir como presidente da Câmara? Sarney como candidato a vice eleito na chapa de Tancredo? Ou até mesmo Paulo Maluf (ao menos ele arvorava-se dessa solução), segundo mais votado no Colégio eleitoral, quando da eleição indireta?
Cada grupo, claro, tinhas suas motivações políticas contra ou a favor dessas soluções aventadas. Após muita conversa, disputa e ação de bastidores, eis como se deu o desfecho da situação:
“Desse modo, Ulysses Guimarães leu o que dizia a Constituição em vigor, de 1967, emendada pela Junta Militar em 1969. Interpretou o artigo 77 de maneira que o vice deveria tomar posse (Guttemberg, 1994, p. 217). Ele teve o apoio irrestrito do novo ministro do Exército, general Leônidas Pires Gonçalves. Ulysses ainda argumentou que esteve com Tancredo no dia de sua internação hospitalar e que, na ocasião, ele tinha apresentado uma interpretação semelhante à sua. Disse também que Tancredo somente autorizou a cirurgia ao saber que Sarney seria empossado. Assim ficou decidido e formalizado pela mesa diretora do Senado. Sarney tomaria posse interinamente até Tancredo Neves se recuperar dos problemas de saúde”.1
Por tal arranjo, Sarney é quem toma posse do dia 15. O presidente Figueiredo não lhe passou a faixa, por enxergar nele – segundo normalmente se diz – um traidor, já que fora do partido do governo, presidente do PDS, e tinha se unido à oposição na eleição presidencial. Seu discurso preparado para a posse de Tancredo ficou “no bolso”, guardado por um ex-assessor do Palácio do Planalto, mas, anos depois, foi revelado na íntegra2. Vejamos um fragmento:
“(…) Restaurar, na sua plenitude, a democracia, era o primeiro dever, o ponto fundamental do meu programa. A democracia é suscetível de aperfeiçoamento. Os frutos que aí estão, produzidos pelo exercício das prerrogativas democráticas, falam por si mesmos. A democracia que se implantou constitui processo para solução pacífica, dentro do diálogo e do entendimento, de todas as grandes questões, que se propõem no quadro político. É a democracia que promove a concórdia, respeita as opiniões, e repele o fanatismo. Essa democracia, contrariamente ao que sustentam os seus críticos, é governável, plenamente governável. A prova está na sua prática efetiva e fecunda nos países mais prósperos do planeta. Apesar dos obstáculos, que reduziram a amplitude do que se pretendia realizar, o Brasil hoje é um país saudável, próspero, sólido, cujos recursos e cuja infra- estrutura asseguram a seu povo futuro promissor. Governantes e governados respondemos pelo destino do país. Como presidente da República, enfrentei toda a sorte de dificuldades na ordem econômica, na ordem social e na ordem política. Mantive, porém, intransigentemente, os rumos que me tracei. Cumpri, assim, em período complexo e difícil, a palavra empenhada. Presidente Tancredo Neves, Confio em sua vontade de servir. Que Deus o ajude”.
Sarney, que não recebeu quaisquer “votos” de Figueiredo, assumiu no dia 15 de março. A população, porém, não sabia da gravidade do estado de Tancredo – que era pericilitante.
Diante dessa situação delicada, o discurso de Sarney foi curto o suficiente para que o reproduzamos aqui na íntegra:
“Eu estou com os olhos de ontem. E ainda prisioneiro de uma emoção que não se esgota. O Deus da minha fé, que me guardou a vida, quis que eu presidisse a esta solenidade. Ele não me teria trazido de tão longe, se não me desse também, na sua bondade, as virtudes da paciência, do equilíbrio, da coragem, do idealismo, da firmeza e da visão maior das nossas responsabilidades perante esta Nação e sua História.
Na forma da Constituição Federal assumi a Presidência da República, na impossibilidade de fazê-lo o Senhor Presidente Tancredo de Almeida Neves, a quem, tenho absoluta certeza, dentro de poucos dias entregarei o Governo na forma da Constituição e das Leis, no desejo e vontade do povo brasileiro.
Os nossos compromissos, meus e dos Senhores agora empossados, são os compromissos do nosso líder, do nosso comandante, do grande estadista Tancredo Neves, nome que constitui a bandeira de união do País.
Exerceremos os nossos deveres, eu e os Senhores, como escravos da Constituição, das Leis, do Povo e dos compromissos da Aliança Democrática, compromissos estes que com determinação jamais abandonaremos, das mudanças e das transformações.
Desejo a todos os Senhores Ministros êxito em suas tarefas. Declaro empossado o Ministério e encerrada esta solenidade“3.
No dia 23 de março, hospitalizado, Tancredo escreve a Sarney, para elogiar “o exemplo de irrepreensível correção moral que o prezado amigo transmite no exercício da Presidência da República“.
A população brasileira manifestou seu fervor religioso, espiritual e cívico pela recuperação do presidente eleito, fazendo novenas pela saúde de Tancredo e expressando de maneira variada a apreensão por seu estado de saúde. Porém, o temido anúncio se deu em 21 de abril de 1985, comunicado pelo secretário de imprensa da Presidência da República, Antonio Brito:
“Senhores, por gentileza, lamento informar que o Excelentíssimo Presidente da República Tancredo de Almeida Neves faleceu esta noite no Instituto do Coração, às 10 horas e 23 minutos.”
As manifestações de comoção popular tomaram conta das ruas do país, inclusive registrando mortes de civis:
“Nas fachadas e janelas dos prédios à margem do eixão — uma avenida de mais de seis quilômetros, com cerca de 30 metros de largura, inteiramente tomada pela multidão — bandeiras de Minas Gerais, do Brasil e lençóis brancos coloriam a tristeza da cidade. A população, emocionada, saiu de suas casas e apartamentos, na maior concentração popular jamais vista em todos os 25 anos de Brasília, comemorados sem festa no último domingo — dia da morte do Presidente”4.
Tratava-se do mesmo dia da morte de Tiradentes, em 1792, e da inauguração de Brasília, em 1960. Foi assim que a Nova República iniciou – repleta de significados e fragilidades.