150 Anos da morte de Charles Baudelaire (1821-1867)

Uma arte que imita; uma arte que ensina; uma arte que educa; eis a tripla recusa da estética de Baudelaire. Em seu lugar, ele erige a sugestão como princípio da verdadeira arte. Afinal, como o mundo criado reservadamente pelo artista iria manifestar-se se não por sinais, por brechas que deixam apenas adivinhar a coesão do todo invisível para além do muro?

Baudelaire crítico de arte e a rainha das faculdades

por Rodrigo de Lemos

Dissociar o Belo do verdadeiro e do natural; franqueá-lo de qualquer servilismo à moral do dia; subtrair a arte às injunções da política e da religião; todo o projeto de Charles Baudelaire como crítico e como esteta insere-o na linhagem dos Benedetto Croce e dos Clement Greenberg. De diferentes maneiras, todos se empenharam em delimitar um campo próprio à atividade estética e em pleitear sua autonomia intelectual e social.

Charles Baudelaire

Baudelaire instala esse reino soberano do espírito sob o ascendente da imaginação, “a rainha das faculdades”. Quem diz imaginação não diz fantasia: longe de afundar-se em um canapé como numa tumba, deixando-se levar por devaneios e por ideações vagas, a imaginação em Baudelaire é uma monarca singularmente industriosa. Ela é imaginação criadora; ela sintetiza imagens que se dão a ver ao intelecto com a clareza de uma iluminação. Por aí, ela revela ao artista aquilo que Baudelaire chama de seu ideal – não a conformação da realidade a um padrão de perfeição (matemática, anatômica) que lhe permanece exterior, mas sua imagem por assim dizer íntima e sublimada. Nela, as coisas ganham uma profundidade (palavra cara a Baudelaire!) insuspeita como num paraíso artificial de comedor de ópio; o objeto, finito, se revelando infinito (outra noção importantíssima da sua estética), inesgotável. Essa imaginação que estilhaça os limites do mundo exterior é a mesma que opera uma obra unificadora do espírito: sob o seu bastão, abrasam-se as outras faculdades, mesmo as mais comezinhas, as mais analíticas (Apollinaire falará mais tarde de razão ardente), conspirando ao efeito geral ideado pela imaginação.

Essa psicologia do ato criativo, enaltecedora da imaginação, reconfigura a relação entre a arte, a natureza e a verdade. Baudelaire rejeita a “arte filosófica”, que reduziria a forma a invólucro sensível de um conteúdo intelectual – a uma alegoria, em suma, em que os elementos da tela encontram tradução em conceitos (lembremos aí as efígies dos vícios e das virtudes em Giotto ou da calúnia em Botticelli). Nem por isso arte e verdade são estranhas: uma bela urna grega presta testemunho do exato contrário (beauty is truth, truth beauty). A verdade da obra de arte, antes, residiria em uma espécie de harmonia inefável entre a sua linguagem (a linha, a cor, a composição) e o mundo intuído pelo artista. É como se, para Baudelaire, a verdade da arte surgisse da própria arte, não mais se situando em um território estrangeiro (Deus, a razão, a tradição) de onde exercesse seu império.

Se a imaginação permite a Baudelaire inverter a hierarquia entre arte e verdade, o mesmo se passa quanto à natureza. Sua estética reúne em um mesmo anátema a escola realista e a fotografia que se difundia à sua época, ambas contribuindo à concepção da beleza como adequação entre a obra e seu modelo real, fazendo-a depender, enfim, da qualidade da imitação. Baudelaire está muito longe de desconsiderar as virtudes miméticas do desenho; ele sabe reconhecer uma anatomia inexata, uma evocação histórica inverossímil; nada disso, entretanto constitui em si critério de julgamento de uma tela, subordinada à sua única verdade possível, a do ideal em sua origem. Em verdade, Baudelaire faz seu o adágio de Delacroix, de que a natureza é um dicionário. Ela seria um repositório de formas em que o artista vem buscar o léxico necessário à expressão do ideal; toma-la pela finalidade da arte seria como dar ao Caldas Aulete ou ao Webster o estatuto de poema acabado, no mesmo pé que os Lusíadas ou que os sonetos de Shakespeare.

Uma arte que imita; uma arte que ensina; uma arte que educa; eis a tripla recusa da estética de Baudelaire. Em seu lugar, ele erige a sugestão como princípio da verdadeira arte. Afinal, como o mundo criado reservadamente pelo artista iria manifestar-se se não por sinais, por brechas que deixam apenas adivinhar a coesão do todo invisível para além do muro? A sugestão gozará de uma bela fortuna na poética simbolista; ela também é uma espécie de método crítico em Baudelaire, para quem a melhor evocação verbal de um quadro não está necessariamente em sua descrição exaustiva ou em sua análise técnica, mas em sua interpretação em uma prosa poética ou em um poema.

Les Fleurs du mal

Daí poemas como “Os faróis” (As Flores do Mal), em que mestres da pintura ocidental (Rubens, Watteau, Michelangelo) são evocados sob a metáfora de faróis que, por meio da linguagem pictórica, lançam luz sobre partes de um mundo (como diria Wallace Stevens): o mundo intangível e privado de cada criador. Cada estrofe dedicada a um pintor busca muito menos descrever suas telas do que, interpretando cenas e paisagens como indícios, reconstruir o universo implícito que as engendrou, em uma espécie de arqueologia do imaginário:

“Delacroix, anjos maus entre lagos de sangue
sob a sombra de sempre verdes pinheirais,
onde, como de Weber um suspiro exangue,
passam pelo céu negro fanfarras fatais”
(tradução de Jorge Pontual)

Baudelaire explicaria a estrofe em seu texto sobre a Exposição Universal de 1855:

Lago de sangue: o vermelho; – anjos maus: sobrenaturalismo; – sempre verdes pinheirais: o verde, complementar do vermelho; – um céu negro: os fundos tumultuosos e tempestuosos de seus quadros; – fanfarras e Weber: idéias de música romântica despertadas pelas harmonias de sua cor.”

Cada elemento da estrofe sugere assim um aspecto do mundo de Delacroix. A precisão dessas associações, sua liberdade, seu caráter alusivo; a arte da sugestão não solicita apenas a imaginação do poeta-crítico, mas igualmente a do leitor, partícipe ele também dessa reconstrução de um mundo particular.

Não é sem motivos que cito aqui a estrofe de Delacroix; para Baudelaire, ele é muito mais do que o chefe-de-fila do romantismo. Delacroix encarnaria, por um lado, uma síntese da tradição pictórica europeia (a cor, explosiva em de Rubens, plácida e alegre em Veronese; o desenho de Rafael); por outro, é nele que Baudelaire encontrou a figura do artista moderno por excelência.

Moderno – a palavra está dita e só poderia se-lo em um texto sobre o inventor mesmo do termo modernité. No próximo artigo, será hora de nos debruçarmos sobre o significado dessa palavra tão estreitamente associada a Baudelaire e sobre a forma como ele a relaciona com a pintura de Delacroix.

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