por Thiago Blumenthal
Participei há uma semana, no Rio de Janeiro, de um simpósio sobre os limites da crítica contemporânea, na congresso XV Congresso Internacional da Abralic, realizado na quase finada UERJ. Extremamente enriquecedor em termos de trocas de ideias, debates e novas perspectivas, ainda que algumas – inclusive a minha – de ordem um tanto quanto pessimistas. Se há um esvaziamento da relevância da crítica, enquanto instrumento formal de argumentação estética, torna-se providencial a investigação do porquê desse estado estilhaçado, e dos possíveis caminhos a serem tomados. Este mesmo Estado da Arte, creio, é uma maneira de pensar a crítica e seus mais variados objetos.
Parte das discussões girou em torno de dois pontos que considero fundamentais para pensar a atividade crítica: 1. em um mundo cada vez mais unívoco, com poucos significados, em que as pessoas têm suas certezas cristalizadas (ou precisam correr atrás de suas certezas), como a crítica pode contribuir ao debate de ideias; 2. a camada ética da crítica. Pretendo discutir neste breve artigo um pouco esses dois pontos e ainda tratar de um terceiro, que pensei muito tangencialmente no Rio de Janeiro e proponho aqui de maneira mais organizada, que se organiza de uma maneira um pouco mais complexa, que é o da crítica da crítica.
Onde há crítica, há o humano, e há algo instintivo no posicionamento crítico, que a princípio se fundamenta sob a ideia de separação. A crítica busca uma separação do objeto que trata, pretende um distanciamento (muitas vezes afetivo), para se juntar a um outro polo oposto, unido pelas ideias a ele comuns. Desenvolvo melhor: quando critico o novo livro do escritor Jacob Rosenthal, por exemplo, busco descolar-me de qualquer relação afetiva que tenho do autor e de sua obra. Quando faço isso, me junto a um grupo que pensa do mesmo modo, o que podemos chamar de escola.
Faço uma leitura da obra I Married a Feminist, de Rosenthal, a partir de uma visada estruturalista, apontando problemas e soluções do livro, identificando-o com determinado contexto e, principal objetivo, investigando no que o livro pode refletir nossos tempos, nossos comportamentos e nossos dramas. Não importa se detono ou se elogio o livro – isto é o menos importante em uma crítica –, mas sim a maneira como avalio aquele livro e o insiro em meu contexto, em um movimento contínuo de distanciamento do objeto e de aproximação de meu grupo.
Um crítico nunca está sozinho, ele também tem sua turma, e precisa dela para fundamentar suas teorias e, claro, compartilhar os aplausos de seu texto técnico. Assim como o objeto demanda apreciação crítica, a crítica demanda idem. Já chegaremos lá. Contudo, essa distanciação do objeto sempre se encontrou ameaçada, por questões sociais e psicológicas. Tenho um amigo jornalista que me contou uma vez que detonou uma música de um artista brasileiro (não citarei nomes), levantando a lebre de um plágio. O tempo passou. Anos depois, em um balcão de um izakaya em São Paulo o compositor se aproxima do meu amigo e fala “você se lembra de mim? Sou eu, vocalista de tal banda. Lembra que detonou meu disco e minha música em 199X? Pois é, pra você foram algumas poucas linhas, mas pra mim, acabou com a minha vida, acabou com a minha carreira”. Além de constrangedora, a situação pede bastante sensibilidade e requer uma apreciação para além de qualquer perversão crítica.
A crítica gira em torno de paranoia, poder, suspeitas e infidelidades. Há um despeito, quase um despudor em toda crítica, positiva ou negativa, quase um desejo de ser maior que o seu objeto. É próprio do texto que se propõe investigar determinada manifestação artística, por exemplo, a angústia por ultrapassar a obra avaliada, como na velha piada em que aqueles que são bons fazem arte e os que não são a ensinam. Psicanaliticamente, o artista sempre guardará um tanto de pai opressor em um circuito de interdependência e rebeldia.
O que acontece quando a crítica perde sentido em um mundo cada vez mais regulado por uma ordem própria de mercado, em que editoras e críticos estão no mesmo polo nervoso, como marionetes unidas pela mão invisível do capital (a grana do consumidor que comprará o “I Married a Feminist”)? Em uma redoma de vácuo a equação não fecha e qualquer conteúdo pode criar uma ou duas pequenas explosões, ou, em outras palavras, a crítica que se pretende crítica não mais responde aos anseios de um público que, mais do que uma avaliação estética, demanda por uma explicação formal do produto. A descrição antecede a crítica, assim como a informação tout court antecede a história. São outros tempos, outros modos de absorver o tempo.
Se em um modelo plano e aristotélico a crítica tem de levar a uma fruição lógica e ética, a disposição do crítico depende completamente da disposição do leitor e muitas vezes do autor da obra que está sendo tratada. Eis o problema ético e o que distingue a crítica da mera opinião mundana, esta última impregnada de afetos. Enquanto a crítica precisa ser ética, a opinião não pede por um pingo de ética. Como dizer que o livro de Rosenthal é um mau livro porque se trata de mais um livro de um membro do patriarcado branco de classe média, enquanto muitas mulheres não têm chance de escrever. Para piorar, o narrador da história não se refere à ex-mulher, uma feminista, nos melhores termos, o que seria uma ofensa a leitorxs mais sensíveis. Veja bem, isso não é uma crítica. Isso é uma opinião.
Para concluir, penso na crítica da crítica, em um estágio ainda superior à crítica. Se o crítico se encontra (ou supõe-se encontrar) num patamar muito mais elevado que o do artista, pois só ele pode olhar para sua obra com desdém ou, pior, só ele tem o real poder de aplaudi-la com propriedade e rigor, o crítico do crítico é praticamente um semideus. Em geral um acadêmico, o crítico do crítico busca estudar a crítica como um fenômeno humano, antes mesmo de ético ou estético, em seus níveis mais profundos. No recente livro The Limits of Critics, Rita Felski, pondera que a crítica da crítica não tem um lugar definido, está em algum lugar incerto, nem no objeto nem no texto sobre o objeto; ela paira sobre ambos e pontifica. Ela não se afeiçoa a nada, não tem turma, e chega ao ponto máximo de questionar o crítico como ele chegou a determinada conclusão.
Fazer crítica hoje, e agora me reduzo à lente da literatura, em um mundo de booktubers, usuários de redes sociais cada vez mais ativos e influentes, é decerto tarefa para lá de ingrata. Que chancela tenho eu, Thiago Blumenthal, para escrever sobre o livro de meu patrício Jacob Rosenthal, quando um ou dois adolescentes terão mais voz e vez no Twitter ou em algum BuzzFeed e serão mais lidos do que eu? A crítica hoje deixa de ter ética, de ser especializada (que especialidade tenho eu, contudo?). Não há mais nada e estou condenado à morte por afogamento.