por Pedro Gonzaga
O poeta original terá sido qualquer ser ainda fera, o primeiro entre nós a perceber que o perdido, perdido para sempre estava, e, logo depois, que a língua rudimentar da comunidade em sua boca era a um só tempo o caminho para recuperar as coisas como conceito sensível por dentro e aniquilá-las como experiência real por fora. O poeta primal terá conhecido antes de nós o exílio definitivo das coisas, terá sozinho se despedido da felicidade orgânica e íntegra dos cães e dos pássaros, perplexo diante de um irrecuperável passado, de um esquivo presente, de um semovente futuro. Incapaz de morrer com sua descoberta, como todos os verdadeiros líricos que o sucederão, legará às criaturas humanas a consciência dessa ferida obtusa, renitente, mãe da necessidade de deuses, ritos, danças e tintas, tantas e tão distintas maneiras de, por fragmentação, paliá-la, envolvendo-a em gazes brancas, para vanglória de filósofos denunciadores, que haverão de confundir a testemunha da fratura com o criminoso por detrás dela.
Assim, de arauto do exílio o poeta passará a ser o agente da queda. Convencidos de sua culpa, muitos cairão na armadilha de acreditar na função redentora da arte, engendrando unguentos baratos como versos políticos, versos encomiásticos, versos patriotas, quando a condição primordial do poeta é voltar à ferida, descobri-la, porque é só com uma integral dedicação a ela, por meio de uma aceitação total do que dali sobeja, é que se pode esperar o milagre operado por todo grande poema, mesmo que provisória e inutilmente: sanar a carne com seu poder de acobreado iodo, até que ela volte a se abrir, como da primeira vez na savana que nunca, de fato, conhecemos.