por Fabrício Tavares de Moraes
O escritor russo Vladimir Soloviev, em seu Breve Conto sobre o Anticristo, diz que, em certa ocasião, o filho da iniquidade se gabava perante os ortodoxos de que a Universidade de Tubingen havia lhe oferecido o título de doutor honoris causa em teologia, devido “a um longo livro sobre o criticismo bíblico” que ele havia escrito em sua juventude. Por volta deste mesmo período, também na Rússia, Dostoiévski compôs uma de suas mais vigorosas e famosas fábulas, O Grande Inquisidor, que, deslocando-se de seu contexto original, uma parábola de Ivan Karamazóv, encontra-se hoje presente em várias coletâneas de aforismos e contos. Esse pequeno conto, um dos pontos altos de Irmãos Karamazov, conta como um cardeal, apegando-se antes à carnadura do que ao espírito da lei, sentencia o Cristo reencarnado à prisão. E, por fim, como último elo dessa cadeia de analogias, temos Kafka, que numa de suas breves e sombrias parábolas, relata que o Messias, vindo ao mundo numa aparência bestial, é sacrificado por aqueles que ansiavam a redenção que seria trazida com seu advento. Aparentemente não aceitaram a diferença entre as profecias e a realidade que então se apresentava.
O que une essas narrativas tão sombrias, mais do que um temor religioso obscuro, é precisamente um dos elementos essenciais à composição literária. A hermenêutica, por assim dizer, é, conforme se sabe, mais do que um trabalho ou função de escribas, mas um dos modos pelo qual a autoconsciência se situa no mundo. É suficiente aludir sucintamente à obra de Paul Ricoeur, que, ainda que mediante citações e ideias obscuras, afirmava que o ser descobre-se não somente por racionalizações, mas sim por meio de uma constante exegese ou interpretação de sua vida.
Se Jacques Rivière definiu a literatura moderna como “uma vasta invocação do milagre”, talvez nosso ceticismo se dirija não tanto ao miraculoso quanto à nossa capacidade de invocação de qualquer coisa. Por outras palavras, a descrença do Ocidente provavelmente é maior no que diz respeito aos poderes da linguagem do que em relação a eventos transcendentais. Giorgio Agamben, em Profanações, já apontava para essa ligação entre a linguagem e religião, assinalando a etimologia deste último termo não com o religare, mas com o rellegere, a releitura atenta das pautas e leis cerimoniais.
Evidentemente, essa descrença quanto à linguagem provém, em grande parte, do desconstrucionismo inoculado nas universidades norte-americanas (e, posteriormente, importados pelos acadêmicos brasileiros) por Paul de Man. A bem da verdade, as justificativas de alguns desconstrucionistas para o envolvimento de Man com o nazismo são, elas mesmas, exercícios de desconstrução, quando não de criptologia.
Roger Kimball, tanto em Experimentos Contra a Realidade quanto em Radicais nas Universidades, já abordou a nocividade do movimento não apenas para a cognição individual, mas também para a ordem social. De semelhante modo, o clássico de John M. Ellis, Against Deconstruction (Contra a Desconstrução) permanece sendo uma análise e refutação dos principais pontos do movimento, de modo que é prescindível uma análise mais detida dessa questão.
De igual maneira, e como pressuposto dessa filosofia, temos “a hermenêutica da suspeita”, isto é, a descrença não somente no tocante ao poder referencial da linguagem, mas aos próprios órgãos cognitivos que dela se utilizam na interpretação do mundo. Marx, Freud e Darwin, os mestres da suspeita, tornaram-se, portanto, os iconoclastas modernos, afirmando que toda leitura ou cognição são produtos residuais ou mesmo presas de nossa ideologia de classe (Marx adotou o termo de Destutt de Tracy), ou são ilusórias, visto que derivam de instâncias outras que não a razão.
Atualmente, porém, mais grave do que o “pensamento fraco” de um Vattimo, temos o que, por ora, designamos de hermenêutica da antipatia – a disposição de pressupor a pior interpretação possível de quaisquer textos de nossos desafetos, estejam eles vivos ou mortos.
Theodore Dalrymple chamava a atenção para o historicismo miserabilista, a tendência de historiadores de focaram apenas nas calamidades e atrocidades da civilização ocidental, tomando suas benesses e conquistas como elementos dados na realidade. Ora, essa hermenêutica ressentida, portanto, é o pressuposto, ou preconceito, de que todos os autores que não apreciamos são, simples e absolutamente, arautos de programas políticos (quando não esotéricos) de suma maldade. Como diz George Santayana, a modernidade é a passagem da era da heresia parcial para a era da heresia total. Sem meio-termo.
O fundamentalismo, um dos termos mais ingratos na contemporaneidade, é visto, pois, como a explicação para grande parte dos males sociais que os países do Ocidente enfrentam hoje. A bem da verdade, nascido no contexto hermenêutico, o termo fundamentalismo hoje não guarda semelhança alguma com seu contexto de origem (o criticismo bíblico), e é antes sinônimo de literalismo, a redução dos textos ao seu aspecto proposicional acompanhada obviamente pelo desprezo de suas camadas simbólicas.
Alguém disse que atualmente, sob as camadas de tensões políticas, temos, em essência, duas linhas hermenêuticas conflitantes: por um lado, o terrorismo é fruto da interpretação wahhabista que despreza todas as escolas de jurisprudência corânica anteriores ao movimento; por outro, o Ocidente, desde a Renascença pelo menos, convive paradoxalmente com o desenvolvimento da filologia e da crítica textual e a perda das interpretações simbólicas. A Quadriga medieval (a coexistência dos sentidos literal, moral, alegórico, e analógico num texto), por exemplo, desapareceu concomitantemente à ênfase crescente do naturalismo nas artes plásticas.
E, curiosamente, parte considerável da crítica literária, tendo hoje se tornado “estudos culturais”, é simplesmente um esforço de relacionar a vida empírica do autor, assim como suas características sociais e mesmo étnicas, com teorias sociais.
Neste sentido, o texto torna-se uma simples transposição das circunstâncias políticas e sociais do autor para o universo gráfico – algo que mesmo o tão difamado Saint-Beuve, com sua crítica biográfica, jamais sonharia. Desse modo, todos esses são exemplos de vítimas do empobrecimento interpretativo, que culmina, no fenômeno que estamos considerando, na hermenêutica da antipatia.
No filme O Vento Será Tua Herança (1960), que retrata o julgamento do caso Scopes, no qual Hornbeck, um jovem professor de biologia, fora processado por ensinar a teoria da evolução em sala de aula, assistimos, ao final do filme, a um diálogo épico entre os personagens Henry Drummond, o advogado da defesa, e Matthew Harrison Brady, o promotor religioso, que se dá pouco antes da absolvição do jovem mestre.
Toda a tensão dos longos dias de julgamento levou Brady à morte; sendo informado disto e desprezando as congratulações por sua vitória judicial, Drummond declara, para revolta de Hornbeck, sua admiração pela grandiosidade de espírito de Brady, seu opositor.
Diferentemente dos demais, o advogado confessa que se desenrolara naquele tribunal não um caso simplório de obscurantismo versus razão, mas a confrontação de duas narrativas cósmicas antípodas, duas visões sobre o homem e mundo com suas respectivas hermenêuticas – ambas as quais, embora em espectros opostos, estão hoje sob risco.
Em resumo, o conflito não se resume necessariamente à liberdade de expressão versus censura, mas na luta entre diferentes hermenêuticas pelo domínio exclusivo do sentido. E daí a necessidade de sutilezas em nossas análises. Afinal, os anticristos, ao menos o de Soloviev, têm se mostrado excelentes com as palavras.