por Pedro Sette-Câmara
Um dos casamentos mais amorosos da arte moderna é a união entre o romance e seus leitores. Desde o século XVII, o romance se coloca como uma narrativa de como seus protagonistas inventaram — isto é: “descobriram”, pelo sentido etimológico, e “criaram”, pelo sentido corrente – a si mesmos. Daí não admira que, ainda hoje, muitos leitores encontrem nos romances os mapas de suas vidas, as descrições de suas experiências, e os modelos a seguir.
Por isso mesmo, o romance moderno também remete às “grandes questões” que as Humanidades teriam abandonado no século XX. Natural, assim, que Freud tenha usado tanto a observação clínica quanto o exame de romances e do teatro para elaborar uma teoria da psique humana.
Hoje, porém, não é incomum que a psicanálise seja desacreditada, a menção a ela costuma vir acompanhada da ressalva de que “não é científica”. Em paralelo, a possibilidade de que a literatura possa realmente explicar algo da vida humana, com real força descritiva, rapidamente é posta de lado sob a acusação de “impressionismo”.
Por isso, também, o estudo mais rigoroso de literatura passa a ser um estudo estilístico, ou um estudo de textos enquanto referências a outros textos, ou o questionamento das noções de texto, de literatura, de autor; ou, ainda, um estudo sociológico no qual as obras às vezes mais parecem pretextos para que os críticos exibam suas inteligências.
Neste ponto crucial, e num momento em que toda discussão sobre o “fim do romance” se refere ao suposto esgotamento de possibilidades formais, é que se pode voltar a pensar as obras-primas da literatura como mapas da vida, levando a sério o projeto apresentado por René Girard em Mentira Romântica e Verdade Romanesca: ler bem as grandes obras é permitir que elas também nos leiam.
Naquela obra, de 1961, a comparação de cinco autores perfeitamente canônicos – Cervantes, Stendhal, Flaubert, Dostoiévski e Proust – acaba apresentando uma verdadeira história do desejo. Um dos detalhes mais interessantes dessa comparação é que ela é feita não a partir de detalhes das obras, nem de pequenos momentos ensaísticos dentro delas, mas a partir da maneira como esses autores mostram o desejo em primeiro plano: sempre partindo de outra pessoa, seja ela próxima ou distante.
“O desejo não é deste mundo; é para entrar em outro mundo que se deseja” – com esse comentário sobre Proust, René Girard nos mostra o que pode unir Dom Quixote, Emma Bovary, e qualquer um de nós que viva uma vida paralela na internet, ou que coloque uma fantasia para participar de um evento sobre seu livro favorito. Porém, com esse comentário, Girard também resume o nosso desejo pela engenhoca que vai nos transportar para o mundo das pessoas eficientes, pela roupa que nos levará ao mundo dos elegantes. Mais ainda, também fica sugerida outra experiência: após possuir a pessoa desejada ou o objeto desejado, após entrar no clube restrito (uma instituição de prestígio, por exemplo), a situação ganha banalidade e o desejo continua querendo outro mundo.
Como dito, esses problemas, que são os nossos, foram colocados em primeiro plano pelos grandes escritores. Mesmo que os estudos literários não se voltem para eles, não podemos fugir de duas questões que convergem. A primeira é mais propriamente acadêmica: será que a recorrência de abordagens que mostram a história do desejo não nos autoriza a sair dos textos para estudá-los, mesmo que isso implique uma redefinição do estudo literário? A segunda abriria a ponte entre o leitor “comum” e o acadêmico: a experiência de tantos leitores de que a literatura explica suas vidas não merece ser levada a sério, para também ser melhor formulada?
A obra de Girard vai até além e coloca as obras para ler as próprias teorias. Girard faz Proust ler a psicanálise na questão do narcisismo, por exemplo, num dos ensaios que podem servir de modelo para o desbravamento desse novo desafio crítico, que é, nas palavras do próprio Girard, elaborar a voz teórica que existe nas obras-primas da literatura.
Porque, se podemos de fato dizer que o desejo tem uma história, voltamos àquele plano das grandes questões. Hoje, porém, encontramos um cenário novo, com diferentes ônus, como a expectativa de comprovação empírica. Estamos numa verdadeira terra de fronteira intelectual, tentando avançar com segurança na esperança de encontrar a mina de ouro. Porém, um passo em falso e esse velho oeste pode ficar velho para sempre, sem futuro – e esse futuro, ou essa mina, consiste em parte em permitir que o maior número de pessoas acompanhe com mais consciência a história do desejo.