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Lançamento da Perspectiva, os Ensaios (1900-1919), de Robert Musil — em seleção, organização e tradução da Prof. Kathrin Rosenfield, colaboradora do Estado da Arte.
Trazemos hoje “A Humanidade que Escreve”, publicado originalmente em Kleine Prosa und Schriften por volta de 1914. No texto, Musil avalia os gêneros literários e não literários que sejam mais adequados para responder à complexidade da sociedade moderna e aos desafios intelectuais e éticos que as novas formas de pensar, medir, calcular colocam para a comunicação racional, emocional e moral. À velha dicotomia que opõe o tratado filosófico à poesia, o mito ao logos, Musil opõe o ensaio como “tentativa” para encontrar novas mediações entre precisão e alma, entre criatividade imaginária e clareza racional.
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Crônica Literária/A Humanidade que Escreve
por Robert Musil, c. 1914
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A humanidade que escreve. Quem medisse em quilômetros de linhas ou em quilos de papel tudo o que se publica a cada ano só na Alemanha, veria sem dificuldade que estamos diante de uma conformação social mais que estranha. Pois algo deve estar errado com o viver-a-vida quando o êxodo para o papel alcança tais dimensões. Fosse a palavra escrita apenas um meio de comunicação, igual à palavra falada e distinta dela apenas pelo maior raio de ação, não poderíamos dizer o mesmo; pois nesse caso, escrever serviria para a troca de experiências, de modo que a escrita e as trocas cresceriam na mesma proporção. Na verdade, porém, escrever transformou-se hoje mais num meio, não digo de solidão, mas de se segregar em grupos de pessoas. Mesmo folheando apenas as bibliografias da produção científica — da qual não se espera nada além de visar a comunicação —, fica-se logo espantado não com a especialização, mas com o fato de que cada ramo se expande até se tornar um microcosmo cuja literatura vai além do que a vista alcança, fechando-se como uma esfera impenetrável em torno dos que nela habitam. E mais: há pessoas que sacrificam sua vida à literatura sobre filatelia ou criação de cães e que, no ocaso da existência, devem reconhecer, abaladas, que erraram a medida — mais teria valido se dedicar somente aos selos europeus ou à criação de cães de caça. Há revistas para torneiros, para relojeiros, sapateiros, chapeleiros e para bombeiros. — O estranho, claro, não é a especialização dos assuntos — isso é um simples fato —, mas o hermético universo humano no qual entramos como que por descuido ao abrir tais revistas. Aí topamos com a grandiosidade de um sr. Fulano de Tal, que teria preparado com verdadeiro gênio o terreno para a penetração do sapato estadunidense na Europa, ou com o sr. Sicrano, que há vinte anos coloca os ricos tesouros da sua experiência e sua firme virilidade a serviço da instituição dos bombeiros, com espírito idealista e viva consciência de classe. E há também uma revista técnica que publica as contribuições beletrísticas da comunidade dos engenheiros. Todavia, nas ciências, a efusão autoral é quase tão cômica quanto, e no fundo a mesma. Pois não exigimos que uma pessoa honesta tenha que se doar por inteiro à sua profissão? Os europeus de outrora eram cristãos ou judeus, hoje são neofriesianos, geoeconomistas ou cromoquímicos[1] — também de alma. Dissiparam-se as grandes nuvens, e das massas de sentimentos dispersos formam-se pequenas gotículas esféricas que se aproximam de todos os lados.[2] O indivíduo como ser humano encontra-se hoje numa comunidade imensa e inapreensível; relações como nacionalismo, coesão racial ou humanitas que o vinculam a essa comunidade todo-abrangente escapam, apesar de bem-intencionadas afirmações em contrário, à sua sensibilidade (salvo honrosas exceções). A contragosto, o indivíduo sente que se dissolve em algo incomensurável, sem receber nada de palpável em contrapartida além de algumas comodidades logo embotadas pelo hábito e a garantia de que as coisas ficarão do mesmo jeito, sem maiores perturbações. Ele nada vislumbra das experiências inauditas que desde a infância supunha estarem à sua espera, fora uma ou outra bagatela que por acaso deriva ao largo. Ele está numa floresta sem conseguir sair do lugar, e de tanta árvore não é capaz sequer de enxergar a floresta. Daí vem a ânsia de reduzir a vastidão desconhecida a proporções menores, de se colocar no centro de um modesto mostruário, e logo todo o idealismo de que ele dispõe se localiza. De alguma maneira, a escrita também trata dessa questão sentimental. Proporciona a sensação de pertença e revela afinidades eletivas, faz com que algures nos ouçam com atenção: esse sentimento (ao lado da orientação universal da ciência) está tão colado às atividades oficiais e objetivas quanto as rodadas de chope aos congressos científicos. — Em particular no beletrismo filosófico e literário — dois domínios nos quais basta ser humano, como se supõe — viceja sem resistência aquilo que na vida real não passa de chinfrim. Não é aceitável que os seres humanos de fato tenham tanta coisa a dizer quanto pretendem depositar na literatura, e quando se examina o que é comunicado pelo seu conteúdo, raramente se encontra algo novo que justifique ou explique tal afã comunicativo. Olhando por esse ângulo, nota-se antes que em geral ocorre apenas o constante e excitado rearranjo de um velho inventário. A fantasia não voa nem divaga (ideia de antanho!), mas a escritura emerge tal qual o pequeno amanuense que chega em casa para desempenhar o papel de chefe de família: poder, ordem arbitrária, sujeição do mundo em efígie. My book is my castle (Meu livro é meu castelo); quem escreve sempre tem razão! É natural que, para esse tipo de literatura, não haja mais propriamente um público, porém só autores que se aproximam ou se afastam uns dos outros. O leitor não busca um guia, mas um confrade ideológico, pois ele mesmo é autor de uma Weltanschauung e de uma estética anônima; e — apoiado no engano de que todo juízo sobre arte é apenas subjetivo — busca no outro somente uma espécie de órgão executivo, um decorador de vitrine para o seu imo. — Daí resultam a extraordinária falta de impacto dessa literatura sobre o mundo e a sua degradação a uma autoafirmação vazia dos autores. Quando a vemos assim, executada cotidianamente por inúmeros europeus afora isso bem simpáticos, como um hábito inofensivo encaixado de modo indolor entre os deveres corriqueiros, cresce a impressão de que ela não passa de uma mania repulsiva, um vício adolescente tardio nas mãos de homens barbados.
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Notas:
[1] Musil ironiza os especialistas (em áreas como economia, química, lógica etc.), cujo conhecimento técnico preciso, porém limitado pelas premissas, e os interesses predeterminados da especialidade são uma das grandes ameaças para a sociedade moderna; a outra ameaça é a fuga para a imaginação e a intuição vagas. Nesse caso, o autor alfineta os seguidores do neokantismo de Jakob Fries. O “cromoquímico” e o “geoeconomista” podem ser entendidos como alusões a Walther Rathenau, cuja formação científica e expertise empresarial abrangem a química moderna e uma visão privilegiada da economia mundial.
[2] As metáforas desse parágrafo são interessantes, pois contêm a concepção musiliana da transformação do antigo idealismo metafísico na pseudo-objetividade subjetivista dos tempos modernos. A “neblina” ideológica das elites eclesiásticas que forneceram os conceitos para as teorias do Estado teocrático e seu posterior realismo maquiavélico foi desmistificada pelo materialismo científico e profissional apenas para formar uma nova neblina, na qual cada indivíduo se fecha numa das trilhões de “gotículas” de ideias fixas de seu subgrupo. Sem a visão realista do todo, dos interesses e objetivos das demais “gotículas” que formam a via láctea do mundo humano, cada microcosmo profissional cria seu próprio idealismo alienado e inflado. Essa inflação da alma oculta as divisões e o isolamento dos indivíduos e grupos na sociedade, fornecendo apenas sucedâneos para o vazio intelectual e espiritual. Musil captou a infeliz gangorra entre o vazio e a hiperatividade obsessiva da sociedade moderna, cuja falta de visão a torna frágil e suscetível de manipulação, apesar dos incríveis meios tecnológicos e da massa de conhecimento que ela foi capaz de produzir. A frase seguinte alude às fórmulas simplistas — Estado-nação, raça, humanidade — que achatam realidades complexas.
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