A música das canções de Dylan e Cohen

Não posso deixar de registrar minha tristeza com a morte de Leonard Cohen. Ao lado de Bob Dylan, talvez Cohen seja o compositor pop que mais me fascina.

por Leandro Oliveira

Não posso deixar de registrar minha tristeza com a morte de Leonard Cohen. Ao lado de Bob Dylan, talvez Cohen seja o compositor pop que mais me fascina. E fascina não apenas pelo texto. Polemizo dizendo-o tão “nobelizável” quanto aquele de Dylan — e vai aqui alguma ironia —, mas também certamente por ser tão estimulante quanto o outro, como músico.

A questão estritamente musical veio à mente ao ler o perfil publicado há algumas semanas pela revista The New Yorker, escrito antes da morte de Cohen. Tratava do lançamento de single (premonitório?) You want it darker. Era um perfil de Cohen, mas com a participação não pequena de Dylan. Em uma passagem, o entrevistador tira de Dylan o seguinte: “quando se fala de Leonard, deixa-se de mencionar  suas melodias, que para mim, assim com suas letras, são sua grande marca de gênio…”

É fato. De algum modo, todos acabamos por louvar-lhes o texto, expressão de efeito mais imediato de ambos, Cohen e Dylan, poetas inequivocamente estimulantes. O poeta Pedro Gonzaga já fez algumas inteligentes observações sobre Cohen; alguns outros posts deste mesmo blog atualizaram a questão quanto a Dylan (aqui e aqui). Mas, agora que o vencedor do Nobel de Literatura decidiu não participar da festa de premiação, decido falar-lhes da sonoridade e efetivamente do modo como entram e renovam os modelos da tradição em que de algum modo se inserem.

Importante reconhecer que é uma característica estilística da música de tradição “folk” o que chamamos por “forma estrófica” – um termo que aplicamos ao reconhecer uma canção de estrutura melódica repetitiva, como A A A, ou AAB AAB etc… O exemplo talvez mais célebre seja a canção Barbara Allen, que muitos conhecem pela belíssima versão de Joan Baez, mas que, claro, é reconstituída mesmo por alguns artistas clássicos que se debruçam sobre o repertório de tradição oral, como é o caso de András Scholl.

Para melhor entender a forma estrófica: os versos abaixo são entoados, pela mesma melodia, em quatro partes. Um exercício de reconhecimento: memorizar a melodia e cantarolá-la sem letra. Para entender, bastam as duas primeiras estrofes:

In Scarlet town where I was born
There was a fair maid dwelling
And every youth cried well away
For her name was Barbara Allen

Twas in the merry month of May
The green buds were a swelling
Sweet William on his deathbed lay
For the love of Barbara Allen (…)

Este tipo de estrutura é comum, como já dito, em diversas canções de tradição “folk”, mas também em outras tantas que têm do “folk” as mesmas características de produção oral, como canções de blues (jamais o jazz!) ou hinos, e é o que causa a ambientação igualmente rústica de canções clássicas como o lied Das Wandern de Franz Schubert, do ciclo Der Schöne Müllerin.

https://www.youtube.com/watch?v=_9LYedazT24

A forma estrófica é a mais simples das estruturas musicais. Leonard Cohen e Bob Dylan se valem muito reiteradamente dela, preenchendo-a, no entanto, não apenas com textos mais ou menos herméticos e inspirados. É a construção melódica mesma de algumas de suas canções mais instigantes como The Stranger Song ou Sad eyed Lady of the Lowlands que servem à atenção. Nesta segunda, uma pequena adição ao final de cada oito versos introduz o refrão (na tradição anglófila, “refrain” é diferente de “chorus”) — com cinco e não quatro versos tradicionais, integrado engenhosamente aos versos anteriores.

Sad-eyed lady of the lowlands,
Where the sad-eyed prophet says that no man comes,
My warehouse eyes, my Arabian drums,
Should I leave them by your gate,
Or, sad-eyed lady, should I wait?

Esta quinta frase musical — o truque na verdade está no terceiro verso, interpolado, “My warehouse eyes, my Arabian drums” — é a novidade. Não são comuns no cancioneiro popular estruturas de cinco frases, e Dylan constrói a sua de modo mais que ousado, dando ao terceiro verso todo um contorno melódico próprio.

Basta perceber que quatros frases são organizada em oito tempos de partes iguais, a terceira em doze, mas não segundo a métrica normativa de seis mais seis, ou quatro três vezes. Dylan prevê oito ou doze tempos, divididos assim: ”Sad-eyed lady of the lowlands” (4 + 4), “Where the sad-eyed prophet says that no man comes” (4 + 4), “My warehouse eyes, my Arabian drums” (2 + 4 + 4 +  2),  “Should I leave them by your gate”” (4 + 4), “Or, sad-eyed lady, should I wait?” (4 + 4).

Além de ficar evidente a raiz “folk” de Dylan na regularização métrica das frases 4 e 5 — quando deixa harmonias desprovidas de movimento melódico preencherem o compasso de quatro tempos —, o fato é que a função dos dois compassos de abertura da frase 3 é sui generis, ao abrir espaço para um novo caminho harmônico, relativamente inusitado.

Por parte de Cohen, são facilmente identificáveis as irregularidades métricas de canções de estrutura estrófica como na já citada The Stranger Songs, ou na versão quimérica para The Partisan (obrigado ao amigo e leitor Pedro Só, por lembrar do original). Uma preferida neste quesito, nesta última é digno de nota o abandono do último verso: Cohen enfrenta a grande dificuldade da estrutura repetitiva da forma estrófica, que é o de dar-lhe um final, simplesmente interrompendo a melodia (“Then we’ll come from the shadow…”) numa harmonia suspensa.

Não são gestos grandiosos ou revolucionários. Pelo contrário, são sutis. De qualquer modo, suficientes para a reintrodução do gênero “folk”, por parte de ambos, Dylan e Cohen, num nível mais alto de sofisticação estrutural.

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