por Alexandre Pinheiro Hasegawa
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quo magis in dubiis hominem spectare periclis
conuenit aduersisque in rebus noscere qui sit (3.55-6)
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placata posse omnia mente tueri (5.1203)
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Quase nada sabemos sobre Tito Lucrécio Caro (ca. 94 a.C. – ca. 53 a.C.). Parodiando Horácio, autor de que falamos extensamente aqui no Estado da Arte, Lucrécio está todo em seus versos (cf. Sátiras 1.9.2: totus in illis). O poema, Sobre a natureza das coisas (De rerum natura), dirigido a um certo Mêmio (cf. 1.26), de quem também não temos muita informação, é dividido em seis livros e insere-se em longa tradição de poemas em hexâmetro dactílico em que há matéria filosófica, como fizeram Parmênides, Heráclito, Xenófanes e Empédocles, por exemplo. Hesíodo seria o ‘pai’ dessa espécie poética, que teria longuíssima fortuna, entre gregos e latinos. A obra, classificada como didática, não é uma exposição sistemática da filosofia epicurista, mas o epicurismo é a doutrina ensinada com o objetivo de fazer o homem alcançar a felicidade, e nesse percurso é necessário afastar o medo que afeta todos nós, o medo dos deuses e da morte. Dirá Virgílio, imitando Lucrécio, nas Geórgicas (2.490-2): ‘feliz aquele que pôde conhecer as causas das coisas e subjugou sob seus pés todos os medos e o inexorável destino e o estrépito do ávido Aqueronte’ (felix qui potuit rerum cognoscere causas / atque metus omnis et inexorabile fatum / subiecit pedibus strepitumque Acherontis avari). Assim, a grande personagem do poema é Epicuro, que aparece, primeiro, como homem (1.66: primum Graius homo mortalis tollere contra), depois como pai (3.9: tu pater es, rerum inventor, tu patria nobis), e por fim como deus (5.8: dicendum est, deus ille fuit, deus, inclute Memmi). Tal progressão, no suceder dos livros, fez com que os estudiosos vissem a organização da obra em pares: 1-2, relacionados ao tratamento dos átomos; 3-4, voltados ao desenvolvimento sobre a alma; 5-6, dirigidos ao relato da história e dos fenômenos do mundo.
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Lucrécio, escrevendo em hexâmetros dactílicos, segue também a tradição latina, inaugurada, ao que tudo indica, pelo ‘pai Ênio’, a quem faz bela homenagem logo no início do livro (cf. principalmente 1.117-9). A elocução de Lucrécio é notável e, ao longo dos textos, dar-lhe-emos particular atenção nos comentários, pois sói estar repleta de arcaísmos, aliterações, adnominações (ou paronomásias) etc. Muito da fatura poética lucreciana será modelar para os poetas augustanos, como Virgílio e Horácio. A construção poética é parte daquele mel que o próprio Lucrécio diz ser necessário na borda do copo que o médico oferece à criança doente para fazê-la beber a bebida amarga, o remédio da doutrina epicurista (1.936-950 = 4.11-25):
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sed veluti pueris absinthia taetra medentes
cum dare conantur, prius oras pocula circum
contingunt mellis dulci flavoque liquore,
ut puerorum aetas inprovida ludificetur
labrorum tenus, interea perpotet amarum…………………………….940
absinthi laticem deceptaque non capiatur,
sed potius tali facto recreata valescat,
sic ego nunc, quoniam haec ratio plerumque videtur
tristior esse quibus non est tractata, retroque
volgus abhorret ab hac, volui tibi suaviloquenti…………………….945
carmine Pierio rationem exponere nostram
et quasi musaeo dulci contingere melle,
si tibi forte animum tali ratione tenere
versibus in nostris possem, dum perspicis omnem
naturam rerum, qua constet compta figura.…………………………….950
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Mas assim como os médicos, quando tentam dar
às crianças o desagradável absinto, antes tocam
as bordas ao redor da taça com o doce e dourado
líquido do mel, de tal modo que a impróvida idade
das crianças seja iludida até aos lábios, enquanto…………………………………940
bebe inteiramente o amargo liquor do absinto, e,
enganada, não padeça, mas antes, reanimada por tal
feito, recupere-se, assim eu agora, porque esta doutrina
em geral parece ser muito amarga a quem não a tratou,
e o vulgo lhe tem horror, quis expor-te nossa doutrina…………………………945
em suaviloquente canto piério, e tocá-la, por assim
dizer, com o doce mel das Musas, a ver se por acaso
poderia, por tal método, manter tua atenção em nossos
versos, enquanto penetras toda a natureza das coisas
de que é constituída a forma composta.…………………………………………………….950
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Vamos apresentar em pequenas partes o relato da peste que acometeu Atenas em 430 a.C., relato situado no fim do DRN – referido apenas assim daqui em diante –, que contrasta com o célebre início em que Lucrécio faz o chamado (e controverso) hino a Vênus (cf. 1.1-43). O episódio que conclui o poema (6.1138-286) será dividido em breves trechos – não há outros critérios para as separações – para que possamos comentar com algum detalhe e daí perceber a poética lucreciana. A tradução não é em verso, mas acompanha o original verso a verso. Tentaremos, porém, manter algumas figuras e tropos, para que se perceba o trabalho poético, evidenciado nos comentários. O texto original será apresentado já com a escansão – marcando apenas longas e breves e as principais cesuras.
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De acordo com Giussani (2019: 432), a descrição de Lucrécio pode ser dividida em três partes: a primeira de 1138-1222, que corresponderia àquela de Tucídides (2.49-50), em que se descrevem a origem e os fenômenos da peste; a segunda de 1223-1249, correspondendo à seção 2.51 da Guerra do Peloponeso, onde se descrevem os efeitos morais da peste; a terceira de 1250-1284, similar ao que narra Tucídides em 2.52, em que trata dos danos causados pelo deslocamento dos camponeses para a cidade. Ernout e Robin (1928: ad loc.) julgam que o poeta latino também dialoga nestas passagens com tratados hipocráticos.
O trecho foi bastante conhecido na Antiguidade e foi imitado em verso e prosa: Virgílio, Geórgicas 3.478-566; Ovídio, Metamorfoses 7.523-613; Sêneca, Édipo 110-201; Tito Lívio, em diversas passagens em Desde a Fundação da Cidade, etc.
Seguem-se três trechos da primeira parte com a tradução e o comentário:
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Lucrécio 6.1133-40: A Peste (1.1)
N?c r?f?rt ?tr?m || n?s ?n l?c? d?v?n??m?s
n?b?s ?dv?rs(a) ?t || ca?l? m?t?m?s ?m?ct?m,
?n ca?l?m n?b?s || ?ltr? n?t?r? c?r?pt?m……………………………………….1135
d?f?r?t a?t ?l?qu?d || qu? n?n c?nsu?v?m?s ?t?,
qu?d n?s ?dv?nt? || p?ss?t t?mpt?r? r?c?nt?.
Ha?c r?t?? qu?nd?m || m?rb?r(um) ?t m?rt?f?r a?st?s
f?n?b?s ?n C?cr?p?s || f?n?st?s r?dd?d?t ?gr?s
v?st?v?tqu? v??s, || ?xha?s?t c?v?b?s ?rb?m.……………………………………….1140
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Não importa se nos transferimos a locais
adversos a nós e mudamos o manto do céu,
ou se a natureza nos traz, por si mesma, corrompido……………………………1135
céu ou algo que não estávamos habituados a provar,
que, com sua recente chegada, possa nos atacar.
Outrora, esta causa de doenças e mortífero fluxo,
nos limites de Cécrope, tornou lúgubres os campos
e devastou vias, esvaziou de cidadãos a urbe.…………………………………………1140
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Comentário:
Na parte final do último livro do DRN, Lucrécio narra a peste que ocorreu em Atenas, em 430 a.C., durante a Guerra do Peloponeso, como dissemos. O poeta romano tem como modelo Tucídides, que conta o caso na História da Guerra do Peloponeso (2.47–52), seguindo-o muitas vezes de perto. Não é sem importância recordar que alguns textos modelares na Antiguidade se iniciam por uma peste, como é o caso de Édipo Tirano de Sófocles, em que Tebas sofre pelo assassinato de Laio. Contudo, é já Homero, o início de tudo, que no limiar da Ilíada narra a peste que Apolo lança contra os aqueus. Assim, se a peste é forma modelar de dar movimento a uma obra, é também meio adequado a pôr fim aos versos, com a chegada da morte. Deste modo Homero também conclui a Ilíada, com o funeral de Heitor. Embora alguns estudiosos considerem que DRN está inacabado, é possível que o sexto seja a conclusão da obra epicurista com a descrição da peste; peste causada não pelos deuses, como em Sófocles e Homero, convém aqui ressaltar.
A bibliografia sobre o episódio é volumosa (ver abaixo Para Saber Mais), e as interpretações são várias. Parece-me que, se tomamos mesmo como fim do poema, Lucrécio na conclusão da obra lança mão de mais esse expediente para convencer o leitor a converter-se ao epicurismo. Para o poeta, a verdadeira causa do desastre é a ignorância humana, e a cura para ela não é outra senão a filosofia epicurista. Os deuses não lançam pestes contra a humanidade. Em tempos obscuros, devemos nos voltar para a luz – a oposição entra a obscuridade e a luminosidade perpassa os versos de Lucrécio (cf., e.g., DRN 1.933-4: deinde quod obscura de re tam lucida pango / carmina, musaeo contingens cuncta lepore; 3.1: o tenebris tantis tam clarum extollere lumen). Essa luz está associada claramente a Epicuro, ‘glória do povo grego’ (3.3: … o Graiae gentis decus …), o primeiro que se opôs à ‘religião’ (1.62-7).
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Da Elocução
Neste trecho inicial (1133-7), que conclui a parte sobre a causa morbi (‘a causa da doença’; cf. 1090-137), em relação à métrica, é notável a ‘morosidade’ do andamento rítmico dos vv. 1134–5 e 1137, totalmente espondaicos, com exceção do quinto pé, obrigatoriamente dactílico no hexâmetro.
Repetição é característica fundamental nos versos de Lucrécio. Há dois pares com homeoteleuto em fim de versos seguidos: 1134-5: –tum e 1136-7: –ti. Esse –tum ainda é reforçado pelo –um presente em utrum e caelum. O pronome pessoal nos (‘nós’) é repetido, com poliptoto, em posições de destaque do verso: nos (1133), no início do segundo hemistíquio; nobis (1134), encabeçando o verso; nobis (1135), no fim do primeiro hemistíquio. Apenas o último nos (1137) não ocupa lugar de relevo no verso. No entanto, a sequência do pronome, que nos inclui no poema, é em disposição quiástica: A B B A. As aliterações são evidentes – característica muito presente na poesia de Lucrécio: vastavitque vias (1140) ou morborum et mortifer (1138).
A perífrase para indicar Atenas (1139: ‘nos limites de Cécrope’) faz referência ao mais antigo rei da Ática, que teria fundado a cidade de Atenas. Chama atenção a anástrofe, com o deslocamento de finibus para o limite do verso. A palavra não só faz aliteração com funestos (‘lúgubres’), termo colocado no início do segundo hemistíquio, mas também se relaciona com agros (‘campos’), caracterizado com hipálage e disposto na outra extremidade do verso, em paralelo com urbem (‘urbe’), logo abaixo no fim do verso seguinte.
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Início da Narrativa
A narração lucreciana da peste começa propriamente em 6.1138, com a descrição do efeito dela: as mortes, as ruas desertas, a cidade vazia.
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Lucrécio 6.1141-50: A Peste (1.2)
n?m p?n?t?s v?n??ns || A?g?pt? f?n?b?s ?rt?s,
??r? p?rm?ns?s || m?lt?m c?mp?squ? n?t?nt?s,
?nc?b??t t?nd?m || p?p?l? P?nd??n?s ?mn?.
?nd? c?t?rv?t?m || m?rb? m?rt?qu? d?b?nt?r.
Pr?nc?p?? || c?p?t ?nc?ns?m || f?rv?r? g?r?b?nt……………………………1145
?t d?pl?c?s ?c?l?s || s?ff?s? l?c? r?b?nt?s.
s?d?b?nt ?t??m || fa?c?s ?ntr?ns?c?s ?tra?
s?ngu?n(e) ?t ?lc?r?b?s || v?c?s v?? sa?pt? c??b?t
?tqu(e) ?n?m(i) ?nt?rpr?s || m?n?b?t l?ngu? cr??r?
d?b?l?t?t? m?l?s, || m?t? gr?v?s, ?sp?r? t?ct?.………………………………………1150
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pois, após nascer, vindo do interior dos limites egípcios,
atravessando o vasto ar e as nadáveis planícies,
assentou-se, por fim, em todo o povo de Pandíon.
Daí, entregavam-se aos montes à doença e à morte.
No princípio, sentiam a cabeça a arder pelo calor,………………………………1145
e os dúplices olhos avermelhados, com a luz difusa.
As fauces também, negras por dentro, suavam
sangue, e o caminho da voz, coberto por feridas, se fechava,
e a língua, intérprete do espírito, jorrava em cruor,
debilitada pelos males, pesada a mover-se, áspera ao toque.………………..1150
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Comentário:
A narrativa da origem da peste até a chegada a Atenas é rápida e concisa (1141–3). Dos territórios egípcios, logo chega à cidade grega, indicada por nova perífrase (1143: populo Pandionis omni: ‘em todo o povo de Pandíon’), com referência ao mítico rei de Atenas, pai de Procne e Filomela. Ainda na primeira parte do trecho selecionado, três das quatro raízes (ou elementos) de Empédocles, modelo poético-filosófico de Lucrécio, são aludidos: ‘terra’ (1141: finibus), ‘ar’ (1142: aera … multum) e ‘água’ (1142; camposque natantis). O quarto, ‘fogo’, aparece na sequência, na descrição dos sintomas, com a febre (1145: … caput incensum fervore …).
No v. 1145, começa a descrição dos sintomas no corpo causados pela peste. A nova parte é marcada pela palavra principio (‘no princípio’), destacada pela cesura trimímera, ocupando o início do verso. Tal uso é muito frequente em Lucrécio, marcando em geral o começo de novo assunto (1.271, 503, 573, 834; 2.589, 937, 1030, 1048; 3.119, 179, 425; 4.54, 183, 524, 617, 643, 724, 916, 932; 5.92, 200, 235, 251, 510, 783, 801, 862, 883; 6.96, 608, 740, 769, 921, 942, 962, 1002, 1145). O expediente será imitado por outros poetas, como Virgílio (cf. e.g. G. 2.9 e 4.8) e Ovídio (ars 1.35). Embora já apareça em Cícero e Lucílio, não é possível saber quão frequente era o uso e se funcionava do mesmo modo, já que os textos de ambos são fragmentários.
A magnitude da catástrofe é descrita por hipérbole (1144: catervatim: ‘aos montes’): a multidão de pessoas entregue à doença e à morte, como tropas (catervae) na guerra. A descrição parece bem apropriada, já que Atenas estava em guerra, como mencionado anteriormente.
No catálogo dos terríveis sintomas, que se sucedem retoricamente de alto a baixo – cabeça, olhos, garganta –, destaca-se a voz obstruída, a língua, ‘intérprete do espírito’ (cf. Hor. ars 111: post effert animi motus interprete lingua), que é impedida de falar. No entanto, a linguagem, extremamente trabalhada, contrasta com o horror dos efeitos da peste.
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De Compositione Verborum
Destaca-se o verso 1148, em que é possível ver a disposição das palavras a imitar o que se diz, procedimento que ficou conhecido modernamente como ‘sintaxe mimética’. O trajeto da voz (vocis via) está impedido pelas feridas (ulceribus … saepta). O sintagma ulceribus saepta (‘coberto por feridas’) ‘coíbe’ (coibat) aquele outro, em seu interior: vocis via (‘o caminho da voz’). Talvez, de modo semelhante, logo acima, há o advérbio intrinsecus (‘no interior’), colocado no interior do sintagma fauces … atrae (‘as fauces negras’).
Logo depois de falar do trajeto obstruído da voz, no v. 1149 a dupla elisão, emendando uma palavra na outra, dá ao primeiro hemistíquio uma voz que corre sem impedimentos, bem como a construção em assíndeto no verso seguinte.
As metáforas, aliadas às aliterações e aos outros recursos poéticos descritos acima, tornam o horror audível e visível; dá-se assim prazer à dor. É um epicurista que descreve, ‘capaz de observar tudo com a mente tranquila’ (cf. 5.1203: … placata posse omnia mente tueri).
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Lucrécio 6.1151-59: A Peste (3)
?nd(e) ?b? p?r fa?c?s || p?ct?s c?mpl?r?t ?t ?ps?m
m?rb?d? v?s || ?n c?r ma?st?m || c?nfl?x?r?t a?gr?s,
?mn?? t?m v?r? || v?t?? cla?str? l?b?b?nt.
sp?r?t?s ?r? f?r?s || ta?tr?m v?lv?b?t ?d?r?m,
r?nc?d? qu? p?r?l?nt || pr?i?ct? c?d?v?r? r?t?.……………………………1155
?tqu(e) ?n?m? pr?rs?m || t?m v?r?s t?t??s, ?mn?
l?ngu?b?t || c?rp?s l?t? || i?m l?m?ne ?n ?ps?.
?nt?l?r?b?l?b?squ? || m?l?s ?r?t ?nx??s ?ng?r
?ss?d?? || c?m?s ?t g?m?t? || c?mm?xt? qu?r?l?.
……………
Daí, quando pelas fauces a força doentia tinha ocupado
até o próprio peito e confluíra para o coração triste dos doentes,
então, de fato, todas as barreiras da vida abalavam-se.
A respiração exalava da boca um cheiro desagradável,
ao modo como cheiram os pútridos cadáveres abandonados,………………1155
e então as forças do ânimo inteiro completamente
desfaleciam, e o corpo todo, já no próprio limiar da morte.
E uma angústia ansiosa era assídua companheira aos males
intoleravelmente, e o lamento misturado aos gemidos.
…………
Comentário:
A doença, penetrando ainda mais, pela garganta chega ao peito e daí ao coração – segundo alguns críticos, não se trata de coração, mas de mente. Na passagem, como observa Commager (1957: 107), há duas significativas mudanças em relação ao relato de Tucídides: cor maestum (1152: ‘coração triste’) e o par aliterante anxius angor (1158: ‘angústia ansiosa’). Em comentários mais antigos, as escolhas de Lucrécio são descritas como mistranslation (Bailey 1947: 1723). Por vezes, pensando na famosa reclamação do poeta (patrii sermonis egestas: ‘pobreza da língua pátria’) – reclamação que ocorre mais de uma vez ao longo do poema (1.136-9, 1.832, 3.260) –, julgam os críticos que o autor do DRN não poderia se desviar do modelo e inserir novidades; portanto, para alguns, Lucrécio não verteu bem do grego.
Atingindo o coração, ‘as barreiras da vida’ (1153: claustra vitai) abalam-se. A expressão metafórica, que recorre em Lucrécio (1.415 e 3.396) contém o arcaísmo vitai. É comum no DRN, seguindo a elocução de Ênio, o uso do genitivo de primeira declinação em –?? e infinitivos passivos em –ier. Afastado do uso cotidiano, o arcaísmo (verba prisca) confere, segundo a percepção dos antigos (Cic. De or. 3.153), solenidade ao discurso.
A reforçar o colapso total, o poeta diz que o ânimo inteiro (totius) e o corpo todo (omne) – note-se que os adjetivos estão contíguos no fim do verso – desfaleciam completamente (prorsum). Assim, valendo-se da sinonímia, repetição com variação, Lucrécio enfatiza a imagem final, a iminente morte.
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Perfeitamente Intolerável:
O v. 1158 se abre com um octossílabo (intolerabilibusque), que se destaca ainda mais no verso em confronto aos três dissílabos e ao único trissílabo. O adjetivo, que caracteriza malis, foi traduzido por um advérbio para imitar de algum modo o efeito criado por Lucrécio. A palavra, acrescida da partícula enclítica –que, ocupa todo o primeiro hemistíquio, com cesura depois da primeira breve do terceiro pé, mais comum em grego do que em latim (cf. Odisseia 1.1), que em geral apresenta a cesura depois da primeira longa. Assim, a longíssima palavra, quase ‘intolerável’, é perfeitamente adequada ao que se diz, já que a ‘ansiosa angústia’, que acompanha assiduamente os males – já esses intoleráveis –, torna-os ainda mais insuportáveis.
Lucrécio é conhecido pelo uso de polissílabos em seus versos, alguns célebres, como o hexâmetro espondaico formado por apenas três palavras (3.907): insatiabiliter deflevimus, aeternumque. A descrição do lamento, do ‘luto eterno’ (aeternumque / … maerorem), de um choro contínuo, que se prolonga no tempo, é refletida na disposição dessas palavras no verso (cf. Kenney 1971: ad loc.). O exagero dos lamentos fúnebres, criticado pelo poeta, é percebido na própria elocução que de novo é adequada à matéria. Novamente, o verso se abre com polissílabo – tem apenas uma sílaba a menos do que a palavra que inicia 6.1158 –, mas aqui, diferentemente, não há contraste com a sequência, pois as outras duas palavras, embora menores, são quadrissilábicas.
Marouzeau (1946: 98), reportando Ernout, elenca o uso de outros longos advérbios em início de verso:
……
innumerabiliter privas mutatur in horas (5.274)
insatiabiliter toti ut volvantur ibidem (6.978)
insedabiliter sitis arida (6.1176)
………..
Veja-se, por fim, em 4.1144 o adjetivo innumerabilia, que se elide com ut na sequência, ocupando o primeiro hemistíquio como os outros exemplos. A fazer ver os inumeráveis males que se encontram no amor infeliz, Lucrécio inicia o verso com mais esse heptassílabo. O mesmo adjetivo comparece ainda em 1.583: innumerabilibus plagis vexata per aevom, reforçando a ideia de longa duração pelo longo adjetivo que ocupa todo o primeiro hemistíquio.
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Para saber mais:
Os principais comentários completos são os seguintes: Bailey, C. (1947). Lucreti Cari De rerum natura libri six, 3 vols., Oxford; Ernout, A.-Robin, L. (1925-8). Lucrèce, De rerum natura: Commentaire exégétique et critique, 3 vols., Paris; Giussani, C. (1896–98), Titi Lucreti Cari De rerum natura libri sex, 4 vols., Torino (encontra-se uma reedição on-line muito recente (2019), gratuita: https://www.audacter.it); Leonard, W. E.-Smith, S. B. (1942). T. Lucreti Cari De rerum natura libri sex, Madison; Merrill, W. A. (1907). T. Lucreti Cari. De Rerum Natura Libri Sex. New York, Cincinnati; Munro, H. A. J. T. (1928). Lucreti Cari De rerum natura libri sex, 3 vols. Cambridge. Alguns comentários dedicados a um único livro ou a partes de livros: Kenney, E. J. (1971). Lucretius. De Rerum Natura. Book III, Cambridge; Costa, C. D. N. (1984). Lucretius: De Rerum Natura V, Oxford; Campbell, G. (2003). Lucretius on Creation and Evolution: A Commentary on De rerum natura Book 5, Lines 772-1104, Oxford; Fowler, D. (2002). Lucretius on Atomic Motion: A Commentary on Lucretius: De Rerum Natura Book Two, Lines 1-332, Oxford. Sobre a peste no livro 6: Commager, H. S. (1957). “Lucretius’ Interpretation of the Plague”, Harvard Studies in Classical Philology 62: 105-18; Segal, C. (1990). “The Plague Reconsidered: Progress, Poet, and Philosopher”, in Lucretius on Death and Anxiety. Poetry and Philosophy in De Rerum Natura, Princeton: 228-37; Bright, D. F. (1971). “The Plague and the Structure of De rerum natura”, Latomus 30: 607-32; Gale, M. (1994). “The proem and the plague”, in Myth and Poetry in Lucretius. Cambridge: 208-28; Stover, T. J. (1999). “Placata posse omnia mente tueri: ‘Demythologizing’ the Plague in Lucretius”, Latomus 58: 69-76. Outros textos sobre temas vários em DRN: Friedlander, P. (1941). “Pattern of Sound and Atomistic Theory in Lucretius”, AJP 62:16-34; Furley, D. J. (1970). “Variations on themes from Empedocles in Lucretius’ proem”, BICS 17: 55-64; Schiesaro, A. (1990). Simulacrum et imago: Gli argomenti analogici nel De rerum natura. Pisa; Schrijvers, P. H. (1970). Horror ac divina voluptas. Études sur la poétique et la poésie de Lucrèce. Amsterdam; Sedley, D. (1998). Lucretius and the Transformation of Greek Wisdom. Cambridge; Snyder, J. M. (1980). Puns and Poetry in Lucretius’ De Rerum Natura. Amsterdam. Marouzeau, J. (1946). Traité de stylistique latine, Paris.
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