por Idelber Avelar
Referência indispensável para quem se interessa pelo rico romance argentino contemporâneo, Sergio Chejfec (1956-) é a mais sofisticada voz na tradição do relato reflexivo, hesitante inaugurada por Juan José Saer (1937-2005). Tendo publicado seu primeiro romance, Lenta biografia (1990), já com mais de trinta anos de idade, Chejfec não padeceu das agruras do amadurecimento com que tiveram que lidar muitos dos autores que estrearam na pós-ditadura, no esteio de Saer e Ricardo Piglia (1941-2017). Chejfec já estreia com dicção sólida e madura. Ao longo de doze romances e algumas coleções de poemas, relatos e breves ensaios, Chejfec vem tecendo uma voz narrativa inconfundível, que atravessa algumas cidades: Buenos Aires, Caracas, Nova York, Paris. O eixo principal do procedimento narrativo de Chejfec é a desaceleração calculada do relato, que passa assim a se dedicar, saerianamente, às filigranas da experiência, à reflexão ensaística, aos paradoxos da linguagem. Em uma entrevista concedida em Lima há alguns anos, quando do lançamento peruano de Boca de lobo (romance de 2000 lançado em 2007 no Brasil pela Editora Amauta), Chejfec detalhou com lucidez essa poética, por oposição à poética dos relatos baseados na peripécia.
Ao longo de doze romances, Chejfec vem tecendo uma voz narrativa inconfundível, que atravessa algumas cidades: Buenos Aires, Caracas, Nova York, Paris.
Beatriz Sarlo, a crítica argentina que mais atenção vem dedicando à obra de Chejfec¹, notou com a habitual perspicácia que seus escritos impõem um giro à representação do imaginário urbano. A urbe já não é marcada pela profusão de signos, mas pela ruína, decadência, esvaziamento. Tal como os patrícios fundadores Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888) e José Mármol (1818-1871) ou os romancistas contemporâneos Manuel Puig (1932-1990) e Saer, Chejfec pertence a uma longa tradição de escritores que produziram literatura inconfundivelmente argentina fora das fronteiras do país. Em 1990, ano em que se radicou na Venezuela como diretor da importante revista de ciências sociais Nueva Sociedad, publicou seu primeiro romance, Lenta biografia. A ele logo se seguiu Moral (1990). Em 1992, publicou O ar, sobre um sujeito a quem a mulher abandona e cuja indecisão acerca de segui-la ou não se transforma em eixo da história. A lista de romances publicados durante sua estadia na Venezuela se completa com Cinco (1996), O chamado da espécie (1999), Os planetas (1999) — a incursão de Chejfec pelo romance pós-ditatorial, narrado por um escritor que abraça a profissão a partir do desaparecimento de um amigo – e Os incompletos. Em 2005, passou a viver em Nova York e logo publicou Baroni: uma viagem (2007), o seu tributo à Venezuela, e Meus dois mundos (2008), produto de uma breve visita ao sul do Brasil, relato no qual o passeio aleatório do protagonista em um parque se torna pretexto para explorar uma zona limítrofe entre loucura e lucidez. Além da obra de ficção, Chejfec também é autor de poemários como Três poemas e uma mercê (2002) e Galos e ossos (2003), além de livros de ensaios como O ponto vacilante (2005) e Últimas notícias da escrita (2015). A fórmula peripatética se reitera também nos relatos ambientados em Nova York, como Rumo à cidade elétrica (2014), no qual o metrô aparece como mapa da aleatoriedade da experiência e da própria memória, ou a A experiência dramática (2013), no qual dois personagens saerianamente caminham para que um relato possa tentativamente ser narrado, e aparece pela primeira vez essa insólita figura do nosso tempo, o flâneur com Google Maps no celular.
“Não somos mais que um conjunto de desavenças com a realidade”, diz o narrador de Lenta biografia. A tortuosa ficção de Chejfec se dedica a esse hiato entre a palavra e o real, entre a memória e o fato. É comum em suas narrativas que o narrador volte ao acontecimento, rasure o já dito, reescreva o afirmado. Chejfec é a culminação de um linhagem da prosa ficcional argentina caracterizada por uma certa desaceleração reflexiva do relato. Não se trata de que “aconteça pouca coisa” – acontece muito em seus romances –, mas a linguagem estabelece com o acontecimento uma relação que a obriga a experimentar diferentes ângulos para descrevê-lo. A epítome dessa tradição multi-perspectivista é Saer, que burilou ao máximo os relatos e as frases que procedem regressando e picotando relatos ou frases anteriores. Mas se em Saer ainda permanece um movimento semi-circular ou espiralado de certa grandiosidade, em um eterno retorno reiterado não só dentro do mesmo relato, mas de um livro para outro, Chejfec mantém a estratégia pensante, mas suas frases e pequenos núcleos narrativos regressam ao material anterior em uma coreografia de movimentos mais erráticos e descontínuos. O resultado é uma poderosa reflexão sobre a linguagem e a memória, na qual a ênfase recai sobre a opacidade e o desconcerto. Não parece haver aqui progressão temporal nas ações. A narrativa tem lugar num tempo espacializado, em que os acontecimentos coexistem como em uma multiplicidade de camadas. Em parte por isso, em parte pela voz sussurrada, meditativa do narrador, os personagens de Chejfec não suscitam catarse ou identificação de qualquer tipo em quem lê. Estamos longe do paradigma dialético da ascensão, clímax e queda. Sem antecipar o terrorífico final do romance, vejamos como esse projeto narrativo se manifesta em um de seus romances que chegaram a ser publicados no Brasil, Boca de lobo.
Em Boca de lobo, reitera-se um acidente de percurso dos personagens de Chejfec, que é chegarem atrasados à cena que os constitui. Essa defasagem produz no narrador intelectualizado resultados angustiantes, dado o domínio e a fascinação exercidos por Delia, a garota operária por quem ele se apaixona. Ante a realidade bruta dos fatos, ele pontua seu espanto com recordações do que leu.: “li muitos romances onde o protagonista retorna ao lugar esquecido”; “Empréstimo. Dívida. Li muitos romances que tentam resolver o sentido dessas palavras”; “Li muitos romances em que os personagens estudam os trajes dos outros para conhecer aquilo que as palavras não dizem nem os atos descobrem”; “Li muitos romances onde os cheiros servem para resgatar recordações esquecidas, demonstrando que um laço mais eficaz e verdadeiro se manifesta quando a consciência se abandona à surpresa”. “Li muitos romances onde há pessoas que tiram conclusões arbitrárias sobre os demais”. Uma infinidade de frases com esse mesmo começo se repete ritmicamente ao longo da narrativa, marcando sua respiração. Reiteradas, iluminam alguma zona do contraste entre a história do protagonista e os choques que lhe impõe a experiência com Delia.
“Não somos mais que um conjunto de desavenças com a realidade”
Em um amor que une uma garota operária e um protagonista literato como o de Chejfec, seria de se esperar que o autor recaísse em um de dois perigos opostos: a ilusória fusão romântica ou a estereotipada idealização do outro. Na primeira, o intelectual passaria pelo processo de purgação, se despojaria de sua “falsa” cultura livresca e aprenderia com a vida simples dos operários: fábula realista-socialista. A segunda intercalaria fascinação e hostilidade como forma de sublinhar o abismo da distância insuperável, ao fim da qual o outro seria um puro ou um monstro: fábula vanguardista-modernista. Chejfec escreve com notável consciência dessas duas armadilhas. O protagonista não escapa da idealização, mas não deixa de fazer agudas observações sobre a fissura que o separa de Delia. Veja-se o assombro que lhe produzem os empréstimos de roupas entre os operários, parte de uma economia da escassez na qual só circula entre eles o que não tem valor de troca — roupa, ferramentas, utensílios, o próprio trabalho, mas raramente alimentos e jamais o dinheiro. Daí, nota o narrador, que seja mais simples endividar-se com agiotas, em vez de recorrer à ajuda de quem não cobraria juros. As dívidas acumuladas de um operário, F, produzem outra cena que o protagonista contempla com espanto: a entrega a F, pelo grupo inteiro, de uma soma de dinheiro à qual só alguns contribuíram – não se tratava de dividir entre todos o mérito da generosidade, mas diluir em um coletivo maior o peso da desonra. Nessas observações ao mesmo tempo sagazes e distantes, o narrador de Chejfec vai construindo uma relação com o outro que é singular – embora não singular o suficiente para que ele se mostre digno desse amor. O final é terrorífico.
A expressão que dá título ao livro em espanhol, Boca de lobo, não é sinônima de “bueiro”, como em português, mas designa zonas baldias, poços de penumbra, blocos de escuridão pelos quais transita o personagem; metaforicamente, também alude à zona de incomunicação e perplexidade que organiza sua relação com Delia. Escrevendo sobre o romance, Martín Kohan notou que se trata de uma história que “teria correspondido, em outros tempos da literatura, a uma típica fábula do realismo social, com tom de denúncia urgente e mensagem incluída”. Afinal de contas ali estão a fábrica, o subúrbio, a alienação, a relação desumanizadora com a máquina e o olhar fascinado de um não-operário que se aproxima, mas oscila entre o amor e o alheamento. Não se procure aqui, no entanto, uma fábula edificante do engajamento social ou um retrato pitoresco da vida operária. O projeto narrativo de Chejfec, insólito e solitário, se erige sobre as ruínas desses modelos.
Notas
1. Ver os três artigos compilados em Escritos sobre literatura argentina. Buenos Aires: Siglo XXI, 2007.