A sensação de que “já vi isso em alguma parte” me interrompeu por várias vezes durante a leitura de La llamada de la tribu, o mais recente livro de ensaios de Mario Vargas Llosa. A obra, ainda não publicada no Brasil, não é, de fato, um material completamente novo para os que acompanham desde sempre – para além da produção literária – seu trabalho crítico no jornalismo cultural e político. Neste O chamado da tribo (tradução apropriada para uma edição em português), o escritor se aproxima uma vez mais da autobiografia, mas, desta vez, com uma estratégia de escrita fundamentalmente diferente da que realizou em El pez en el agua, que enfoca mais concretamente suas experiências e vivências pessoais.
Neste novo livro, o objetivo e os meios são distintos: trata-se de narrar sua trajetória intelectual e, mais particularmente, o movimento de radical mudança em suas ideias políticas, a partir dos pensadores que mais essencialmente o influenciaram. Vargas Llosa apresenta, assim, o caminho que foi traçando desde a “juventude impregnada de marxismo e existencialismo sartreano ao liberalismo de minha maturidade, passando pela revalorização da democracia para a qual me ajudaram as leituras de escritores como Albert Camus, George Orwell e Arthur Koestler”. Já a lenta e dolorosa transformação que acabou lhe conduzindo aos valores propriamente liberais, por outro lado, seria consequência, segundo ele, de algumas experiências políticas e, principalmente, do estudo de sete pensadores cujas ideias e personalidades são o objeto central de La llamada de la tribu: Adam Smith, José Ortega y Gasset, Friedrich Hayek, Karl Popper, Raymond Aron, Isaiah Berlin e Jean-François Revel.
Curiosamente, o livro que inspirou Vargas Llosa a escrever essa obra foi o já clássico ensaio Rumo à Estação Finlândia, de 1940, do crítico norte-americano Edmund Wilson, que traça um panorama histórico do desenvolvimento das ideias socialistas num determinado intervalo temporal a partir de perfis biográficos vívidos e consistentes de grandes intelectuais que contribuíram com aquela tradição. O propósito do autor de La llamada de la tribu, por sua vez, foi o de tentar emular não as ideias, evidentemente, mas a forma de “composição” de Edmund Wilson, para, no caso, arquitetar uma personalíssima apresentação de seus ideais liberais através daqueles pensadores que mais o influenciaram.
A liberdade como valor
Eu dizia acima que o livro me trouxe constantes impressões de déjà vu e isso demanda uma breve digressão de cunho pessoal: no distante ano de 2007, defendi, diante de uma banca claramente desconfiada em relação a meu objeto de pesquisa, uma dissertação a respeito do pensamento crítico e político de Mario Vargas Llosa. Naquele momento, já era lugar-comum nos meios intelectuais mais “progressistas” a ideia de que seria necessário e prudente, no caso do peruano, separar o escritor do intelectual pois, segundo os críticos mais à esquerda, Vargas Llosa poderia até ser considerado um grande ficcionista, mas sua visão política seria, sem sombra de dúvidas, perigosa e mesmo abjeta. Tratava-se de um autoproclamado “liberal” – o que era visto quase como uma confissão de perversidade ou, no mínimo, de falta de humanidade.
Minha hipótese, contrária a essa opinião corrente, era a de que a separação entre criador e pensador, além de empobrecedora e artificiosa, era prejudicial ao entendimento de sua vasta obra literária. Preferi, então, ampliar o entendimento da visão de mundo do autor, mostrando de que forma as suas concepções políticas, econômicas, culturais e, principalmente, literárias se coadunavam numa visão mais abrangente de realidade. Para tanto, analisei detalhadamente seus romances, contos, artigos e ensaios de crítica literária e cultural publicados em livros ou na imprensa. Acompanhando, desde então, cada novo livro do escritor até este último, arrisco-me a dizer que aquela intuição não estava equivocada.
Resumidamente, a minha visão era (e ainda é) a de que a defesa fundamental do valor da liberdade, base do pensamento político-social de Vargas Llosa, assume também uma posição de centralidade no seu entendimento do fenômeno literário; e o teor eminentemente político, em sentido lato, de sua literatura se averigua no caráter crítico de sua ficção em relação ao tema da autoridade – nas dimensões familiar, social ou política – e de seus excessos contra os indivíduos.
De certa maneira, portanto, eu já tinha “lido”, há mais de 10 anos, em ensaios e artigos esparsos, muito do que está em La llamada de la tribu, justamente por ser um livro evidentemente concebido a partir de textos anteriores já publicados e de – suponho – fichamentos detalhados das leituras de teoria política e econômica que o autor realizou a partir dos anos de 1980.
Já de início, o ensaísta mostra a que veio: “Uma das razões pelas que escrevi este livro é para tratar de mostrar o que verdadeiramente é o liberalismo e o que representou ao longo da história. As reformas mais importantes que feitas pela democracia são reformas de tipo liberal: os direitos humanos, a igualdade de gênero, a defesa da igualdade de oportunidades, todas essas são reformas promovidas muitas vezes pelo liberalismo. A verdadeira cara do liberalismo não tem nada a ver com o conservadorismo”. Tal separação, há muito tempo enfatizada em seus escritos, não é algo superficial em sua concepção: em Sables y utopías (2009), por exemplo, livro sobre os percalços políticos da América Latina, Vargas Llosa repudia, com igual veemência, tiranias de esquerda, como as de Hugo Chávez ou Fidel Castro; e as de direita, como a do general Augusto Pinochet ou a de Alberto Fujimori.
É interessante lembrar que a origem do termo “liberal”, na América Latina e na Espanha no século XIX, é proveniente da maneira como eram designados os rebeldes que lutavam contra as tropas de ocupação de Napoleão. Quer dizer, para Vargas Llosa, receber a alcunha de “neoliberal”, no sentido de ser identificado com o pensamento conservador e reacionário, ou mesmo de ser cúmplice de toda exploração e injustiças de que são vítimas os pobres do mundo, é contraditório com seu verdadeiro ideal – o de quem se opõe a qualquer forma de autoritarismo e opressão.
Sua mensagem é clara: um liberalismo de natureza exclusivamente economicista é insuficiente e depõe contra a própria legitimidade da tradição liberal. No capítulo dedicado a Adam Smith, nessa nova obra, Vargas Llosa destaca diversas vezes que essa figura pioneira das ideias liberais já mostrava, para além de questões estritamente econômicas, preocupações sociais mais amplas, contrariando a visão de que sua defesa da propriedade privada e do livre mercado visava exclusivamente a defesa do status quo. Na verdade, o autor de Teoria dos sentimentos morais se considerou, antes de um economista, um moralista e um filósofo, e sua visão de uma sociedade justa transcende a perspectiva puramente egoísta que com frequência é associada a suas ideias. Escreveu, por exemplo, que “Nenhuma sociedade pode ser próspera e feliz se a maioria dos seus membros são pobres e miseráveis”; e enfatizou ainda que “A propriedade que cada homem tem de seu próprio trabalho é a mais sagrada e inviolável, posto que é a base de todas as demais. O patrimônio de um homem pobre consiste na força e destreza das suas mãos; e impedi-lo de aplicar a sua força e destreza da maneira que ele acha mais apropriada, sem prejudicar ninguém, é uma violação evidente desta mais sagrada propriedade”. Adam Smith, enfim, reconheceu e tratou com muita atenção o problema das diferenças de oportunidades entre as pessoas na sociedade capitalista, buscando soluções que fossem compatíveis com a defesa da liberdade.
Ideal democrático-liberal
O autor de La llamada de la tribu entende que toda a confusão conceitual em torno do liberalismo político não é somente oriunda da má interpretação feita pelos detratores dos ideais liberais: “Como o liberalismo não é uma ideologia, ou seja, uma religião laica e dogmática, mas uma doutrina aberta que evolui e se prende à realidade, em vez de forçar a realidade a enquadrar-se nela, há, entre os liberais, tendências diversas e discrepâncias profundas”.
Além disso, não é tarefa banal definir-se politicamente com exatidão: a dificuldade é que os conceitos e valores nesse âmbito são extremamente dinâmicos e não estão determinados univocamente. A diversidade de usos de um mesmo termo para situações e posições até mesmo antagônicas acabam por gerar confusões, pois as palavras parecem perder, com as variações de tempo e circunstâncias, a força demarcatória que as legitimavam. Nesse sentido, uma controvérsia importante é a acepção que o termo “liberal” adquiriu nos Estados Unidos a partir do New Deal. Lá, e no mundo anglo-saxão em geral, os liberais estão profundamente identificados com a esquerda social-democrata e, algumas vezes, mesmo com concepções socialistas mais radicais.
Vargas Llosa se apresenta frequentemente como um democrata liberal, mas como compreender melhor essa dupla configuração? O filósofo e ensaísta espanhol José Ortega y Gasset, cujo pensamento também é comentado na obra, propôs o seguinte entendimento para diferenciar essas posições políticas que, para ele, são duas respostas a duas questões de direito político completamente diferentes: “A democracia responde a esta pergunta: quem deve exercer o poder público? A resposta é: o exercício do poder público corresponde à coletividade dos cidadãos. Contudo, nessa pergunta não se fala sobre qual extensão deva ter o poder público. Trata-se somente de determinar o sujeito a quem o mando compete. A democracia propõe que mandemos todos; quer dizer, que todos intervenham soberanamente nos fatos sociais”.
Mas o liberalismo responde a outra pergunta de natureza bem diferente: “(…) exerça quem quer que seja o poder público, quais devem ser os limites deste? A resposta soa assim: o poder público, exerça-o um autocrata ou o povo, não pode ser absoluto, pois que as pessoas têm direitos prévios a toda ingerência do Estado. É, portanto, a tendência a limitar a intervenção do poder público”.
Conforme essas definições do filósofo espanhol, o caráter heterogêneo desses princípios possibilita, dentro de uma perspectiva histórica, afirmar que algumas sociedades podem ter sido muito liberais e pouco democráticas ou, inversamente, muito democráticas e nada liberais. Para recorrer a exemplos históricos, basta lembrar a democracia ateniense ou a romana, que desconheciam a inspiração do liberalismo. A ideia de que uma porção do indivíduo possa estar fora da jurisdição pública ou de que o direito individual limite o poder do Estado não teve e não teria espaço nas mentes clássicas.
Vargas Llosa é um confesso admirador do pensamento orteguiano e, pelo menos em princípio, aceitaria a distinção de naturezas entre os valores democrático e liberal. No entanto, aproximadamente um século separa os dois pensadores – e que século! Basta salientar que se tratou de um período profuso em inconstâncias e experiências políticas de toda sorte.
O fato é que Vargas Llosa deixa claro que, isolada e separadamente, democracia e liberalismo são estruturas frágeis e incompletas para um real projeto de justiça e prosperidade econômica: “O liberalismo não é somente, conforme o caricaturizam seus detratores, a defesa da liberdade de mercados; é, fundamentalmente, a defesa do Estado de Direito, do pluralismo político, da liberdade de opinião e de crítica, dos direitos humanos, da soberania individual. Quer dizer, daquilo que constitui a essência mesma da democracia”. O liberalismo para Vargas Llosa supõe, necessariamente, a garantia de fortes instituições democráticas, sem as quais a liberdade paira no ar, sem uma base sólida que garanta sua sobrevivência.
Dois liberais vienenses
Um dos pensadores mais polêmicos apresentados em La llamada de la tribu é o vienense Friedrich Hayek (1899-1992), cujas ideias foram fundamentais para a virada liberal do peruano. Seu leitmotiv é o de que não é possível conciliar nenhuma forma de coletivismo intervencionista ou de planejamento central da economia de uma nação sem sufocar a liberdade dos indivíduos que a compõem. O argumento de que a complexidade do atual estágio das forças de produção exigiria uma forte centralização do planejamento foi utilizado em todos os lugares em que o extremo centralismo burocrático acabou por estrangular os direitos individuais.
Vargas Llosa admite que o intervencionismo estatal pode gerar, num período curto, um rápido desenvolvimento em algum setor econômico, mas sempre, concomitantemente, gerará anomalias e deficiências em outras partes. Não se trata, contudo, de uma negação completa do papel do estado, pois é justamente o estado de direito que garante a proteção aos indivíduos, a existência da propriedade privada e, portanto, do próprio mercado. Mas, para ambos, o governo deve fazer somente aquilo que lhe compete e não substituir o mercado.
No capítulo sobre o também vienense Karl Popper, o autor apresenta as críticas do filósofo às diversas formas de racionalismo utópico. Em sua Autobiografia intelectual (1977), Popper reitera que não é possível imaginar uma sociedade humana em que não existissem conflitos, “só numa sociedade de formigas”. Achar que é possível suprimir totalmente esses conflitos significa presumir que as vontades individuais podem se somar num projeto coletivo homogêneo, resultando num sistema social perfeitamente programado para atender aos anseios de todos os seus participantes. Vargas Llosa concorda com o filósofo quando atribui a impossibilidade de realização de um projeto utópico como esse, justamente porque, ainda segundo Popper, “há muitos problemas morais insolúveis, porque podem existir conflitos entre princípios morais”. Portanto, qualquer sistema político-social que impossibilite alternativas de arbítrio aos indivíduos não é ético, mas coercitivo. Tal configuração social só pode ser viável numa sociedade fechada, que não tolere o dissenso e a contradição, e nunca numa sociedade aberta, composta de indivíduos livres, e que podem se expressar e viver em paz mesmo quando se colocam contra os valores da tradição – contra as normas da própria “tribo”.
Há ainda muito o que falar sobre La llamada de la tribu, evidentemente. O leitor brasileiro, de qualquer tribo ideológica, vai encontrar muitos elementos para pensar o nosso próprio tempo também nos capítulos dedicados a Raymond Aron e a sua prudência liberal; a Isaiah Berlin e a sua concepção de liberdade negativa e positiva; e, finalmente, a François Revel, “o incansável publicista liberal”, que militou por décadas nos jornais franceses combatendo as diversas formas de tentação totalitária, e denunciando os discursos autoritários disfarçados em bandeiras progressistas. Revel insistia na ideia de que a maior virtude da democracia liberal – a liberdade de crítica – é também seu ponto fraco, pois tem sido sempre utilizada por seus opositores para desconstruir seus alicerces.
Há também no livro, naturalmente, deficiências e simplificações que me parecem ter origem justamente na proposta de ser uma obra voltada para um público amplo e não especializado, o que é muito frequente na ensaística de Mario Vargas Llosa.
Como sugeri anteriormente, a grande contribuição de La llamada de la tribu, ainda que não se concorde com os valores defendidos pelo autor, para o debate público do nosso tempo – em que figuras como Donald Trump e Bolsonaro são tidos por alguns incautos como “liberais” – talvez seja a capacidade de jogar luz a certos conceitos que têm sido utilizados de maneira confusa, parcial ou mesmo equivocada, seja no jornalismo, nas redes sociais ou na academia.
[Este texto foi publicado originalmente na Revista Continente, em agosto de 2018]