A voz mais profunda da literatura

Dois contos clássicos do século XX, um de J. D. Salinger e outro de Vladimir Nabokov, servem de base para análise de Blumenthal para o desfecho da última temporada da série Better Call Saul.

por Thiago Blumenthal

Cena da segunda temporada de “Better Call Saul”.

Em 1948, a revista americana The New Yorker publicou dois contos singulares. O primeiro se chama “A perfect day for bananafish” e foi escrito pelo Salinger. Nele conhecemos o membro mais célebre da família Glass, Seymour, em férias na Flórida. Começa com sua esposa, Muriel, ao telefone com a mãe. Falam sobre Seymour o tempo todo: ele pode perder o controle; seria bom consultar o psiquiatra do hotel. Corta para a praia, onde Seymour busca isolamento do hotel e de Muriel, e onde conhece uma criança chamada Sybil. Conversam por algum tempo e o nosso protagonista cita T.S. Eliot, de maneira natural, sem afetação, “misturando memória e desejo”, até chegar na história que dá título ao conto, os peixes-bananas, que, ao devorarem bananas, devoram a si mesmos. Você também o faria, nessa fúria dos dias que nos fazem devorar e ser devorados. Sybil está encantada. Seymour beija os seus pés e, voltando ao seu quarto do hotel, encontra a esposa dormindo, pega sua arma e dá fim à sua própria vida.

O segundo conto, “Symbols and signs”, de Nabokov, foi publicado pela mesma New Yorker, porém com os termos trocados, algo que o autor “corrigiria”, com o perdão das aspas, anos depois. Nele você conhece a história de um casal de idosos que precisa lidar com um filho com um raro distúrbio mental, a chamada “mania referencial”, em que tudo que lhe rodeia estabelece uma intensa relação consigo mesmo e demanda uma decodificação imediata. Ele está internado, chegou mesmo à tentativa de suicídio no dia de seu aniversário, o que impede a visita dos pais. Ao longo da história, o narrador nos apresenta, ele também com seus códigos, símbolos e sinais, o histórico e um microrretrato daqueles personagens, profundamente afetados pelo curso trágico da Shoá. À noite, três ligações telefônicas encerram o conto. Tomamos conhecimento das duas primeiras, um aparente engano?, mas não da terceira. Você ouve o telefone tocar e não quer atender. A constante iminência da tragédia à espreita, o recado que você não quer ouvir, a morte do outro lado da linha. Terminamos o conto nos perguntando primeiro se a mania referencial é genética (os pais a têm?), depois se é contagiosa ou psicossomática (estamos procurando sinais também?), e por fim se tudo isso existe ou as barreiras que separam ficção de realidades. Quais os sinais.

Sirvo-me de ambos os contos após ter assistido ao fim da terceira temporada da série Better Call Saul, concluída nesta segunda quinzena de junho. Chuck, o irmão de Jimmy/Saul Goodman, sofre de hipersensibilidade eletromagnética, um mal aparentemente inexistente, criado tão somente pela mente de quem o sofre. Se a neurociência, hoje uma espécie de teologia própria, com seus deuses e demônios, refuta uma realidade externa a nosso olhar como absoluta, um doente com esse mal pode muito bem argumentar que tem o que quiser.

Chuck passa mais da metade da série em uma casa protegida por papel alumínio, a fim de isolar qualquer energia eletromagnética, vinda da luz solar ou da eletricidade de aparelhos e vizinhos. Vive às escuras e tem em seu irmão, Jimmy, a única pessoa de confiança. É Jimmy quem o leva ao hospital e insiste com os médicos que desliguem todos os aparelhos; é Jimmy quem compra seu jornal preferido todo santo dia por anos a fio. Até que. Até que vocês sabem. Dois irmãos brigam. E o resultado é catastrófico, como não poderia deixar de ser, desde as histórias na Bíblia hebraica até Shakespeare. Chuck tem um problema mental, assim como Seymour Glass e o filho do casal de judeus russos de Nabokov.

Cada um a sua maneira, com uma variedade de sintomas e de diagnósticos que poderiam fazer brilhar os olhos de qualquer psiquiatra diante de um prontuário mais ou menos bem organizado. E no entanto quem pode prová-lo? A medicina não é uma ciência exata, e a psiquiatria, afinal, é a mais inexata de todas as especialidades. Mesmo a neurologia muitas vezes se vale de experiências tão contestadas quanto uma agulha de acupuntura na ponta do seu pé. Precisa, contudo, é a ciência dos irmãos: quando brigam, o fim é trágico. Para ambos.

Muito da literatura clássica, até o romantismo, é construído em torno de imagens e modelos que buscam no seu leitor, ou no seu ouvinte/ espectador, alguma fagulha de memória à qual possam associar um evento primitivo de importância coletiva: o nascimento, as relações que solidificamos com nossas famílias, o amor, a morte. Uma certa memória coletiva é transmitida pelo caráter individual de um herói; ali se encontram os valores de um povo, sua história, suas ascensões e suas quedas. Aquiles era mais do que Aquiles, e seu calcanhar foi atingido por muitos, em um processo de perpetuação do mito de eras em eras. Com o passar do tempo, a literatura passou a retrabalhar e ressignificar velhos mitos, e hoje podemos ler Salinger, Nabokov, ou assistir a uma série de Vince Gilligan repensando questões como memória e morte.

Tanto em Salinger quanto em Nabokov, a memória da guerra se desenrola em uma narrativa que deixa muitos fios soltos para o leitor puxar na ordem em que quiser puxá-los. Pode ser o fio do trauma, uma possível causa do distúrbio mental de ambos os personagens, ou o fio da memória da guerra, que aqui é reimaginado pela via individual, sem uma noção necessariamente coletiva, posto que fragmentada em pedaços. Os tempos nos encerram em situações de cacos a serem limpos por outrem, não mais por nós mesmos.

Não temos mais condições de limpar nossa própria sujeira e de enfrentar nossos próprios demônios, assim também age Chuck, impotente diante de tanta energia que lhe cerca. Uma das imagens mais significativas dessa terceira temporada é do personagem, ao buscar uma cura a seu mal, “recarregando” sua energia interna apertando as pilhas de seu gravador, que tanto mal causara ao irmão. Como um veneno que cura a própria picada, Chuck se reconcilia aos poucos com a doença, mas não com a voz interna de sua mente, que lhe repete a voz que ouvimos tanto em toda a história: vou te devorar, vou te devorar, vou te devorar. É sua voz mais profunda, que ecoa em algum lugar do passado, de uma memória que nem imaginamos que ainda temos, e que te faz devorar uma banana para depois te sufocar pela boca. É o telefone que toca e você não quer atender.

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