Meio século depois do falecimento do crítico literário mais influente do seu tempo no Brasil, precisamos reavaliar seu legado intelectual
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por Eduardo Cesar Maia
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“No Sr. Álvaro Lins, o crítico se mistura tão intimamente com o humanista (no sentido largo), com o cidadão, que o seu trabalho está, a todo o momento, assumindo o aspecto de debate com os problemas do mundo. Embora ninguém, mais do que ele, tenha a preocupação de salvaguardar a autonomia e a pureza da literatura, acima das suas utilizações não literárias.”
Antonio Candido, Um Crítico
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“The function of literature, through all its mutations, has been to make us aware of the particularity of selves, and the high authority of the self in its quarrel with its society and its culture. Literature is in that sense subversive”
Lionel Trilling, Beyond Culture
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Seria tentador começar este artigo associando o esquecimento de Álvaro Lins, falecido há exatamente meio século no Rio de Janeiro, no dia 04 de junho 1970, às misérias de nosso próprio tempo; ou tratar concretamente do estado de abandono do acervo (biblioteca e arquivo pessoal) do crítico pernambucano, que há décadas jaz desperdiçada e deteriorada em Caruaru pela total incapacidade de sucessivos prefeitos (e da atual prefeita) de entender o valor daquilo, e associar essa falta de apreço no âmbito municipal ao atual desdém do governo federal em relação à cultura e à arte em geral. É importante registrar, ainda, para que a vergonha não recaia exclusivamente nos atores políticos, o fato de que o conjunto da obra crítica (e do pensamento em geral) do autor pernambucano, que foi durante mais de 20 anos o crítico mais influente do país, encontra-se até hoje quase completamente relegado, desprezado indistintamente por jornalistas, críticos e acadêmicos. Enfim, eu poderia fazer desta grande vitrine – o Estado da Arte – uma plataforma de denúncia. Não o farei – ou já o fiz?
Creio que aproveitarei a ocasião dos 50 anos do falecimento desse escritor, crítico, historiador, diplomata e professor caruaruense tratando neste espaço de seu pensamento crítico – a herança intelectual que, apesar de tudo, ainda se faz presente e, acredito, tem muito a contribuir com a discussão intelectual e literária do nosso tempo.
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O pertencimento à tradição crítica humanista
Desde o princípio de sua carreira como crítico literário, Álvaro Lins pôs autonomia individual como centro e fundamento de sua atividade intelectual. Seu percurso seguiu na contracorrente das tendências de valorização, por um lado, da rigidez metodológica ou, por outro, da militância ideológica como norte da atividade crítica. O indivíduo, na visão do pernambucano, era o último refúgio contra todas as formas totalizantes e dogmáticas de compreensão da realidade. A perspectiva marcadamente humanista de Lins endossava, em franca oposição ao ideário das principais correntes teóricas de seu tempo, que a atividade crítica – a análise, interpretação e valoração de obras literárias – deveria ser, antes de tudo, uma manifestação da personalidade do crítico, uma busca por autonomia e um exercício de introspecção.
Uma das características mais importantes da tradição crítica humanista é o entendimento de que as grandes questões humanas não podem ser bem compreendidas se tratadas como realidades compartimentadas e estanques: os domínios da política, da arte, da religião ou da ética são respostas humanas diversas a interpelações existenciais diferentes, porém indissociáveis, confluentes e interativas. A partir de tal concepção, a literatura participaria da história de uma forma dialogal, fazendo parte de uma grande e interminável conversação humana a respeito de todos os tipos de situações e problemas vitais, sejam de natureza mais propriamente individual ou de abrangência mais social. As obras de arte literárias, portanto, suscitariam, antes de tudo, um tipo de conhecimento ligado à experiência vital, ao diálogo entre os homens, porque, diferentemente das proposições da lógica ou da ciência, não se propõem simplesmente a apresentar enunciados verdadeiros: elas problematizam certos aspectos difíceis da realidade humana.
A literatura, assim compreendida, aparece como um ponto de irradiação e de discussão de todo tipo de valores – éticos, estéticos, políticos etc. –, os quais não podem ser completamente dissociados uns dos outros, nem matematicamente ou cientificamente quantificados e calculados. Assim, quanto mais diálogo e polêmica sobre uma obra literária for despertado por diferentes perspectivas críticas, tanto melhor e mais salutar, porque não se trata de uma disputa entre os críticos em torno da descoberta de uma verdade última, senão do enriquecimento de uma conversação cultural interminável.
Em suas reflexões críticas, Álvaro Lins esteve sempre preocupado em pensar as relações entre a literatura e a vida concreta; entre as características formais e a pertinência social e espiritual das manifestações artísticas literárias. A variedade de temas enfrentados por ele em seus rodapés de crítica, sua preocupação abrangente, ligada a um projeto – ou pelos menos a uma visão pessoal – de homem e de sociedade, atestam sua filiação a uma tradição crítica tão atacada quanto mal compreendida: a humanista.
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A delicada relação entre arte e sociedade na atividade crítica
Em seus artigos e ensaios de crítica literária, percebe-se a sutil dialética que invariavelmente tentava estabelecer – com maior ou menor sucesso em cada caso – entre as preocupações de ordem estética, as de tipo psicológico e aquelas de abrangência mais social e política. Faz-se necessário, pois, para tentar explicar a especificidade de sua crítica, compreender o delicado equilíbrio que Lins buscava atingir nas suas análises e julgamentos, nos quais procurou superar falsas disjunções que costumam aparecer em grande parte dos debates sobre as funções da arte e da própria crítica: “Não sei, na verdade, o que será para a literatura e a arte uma traição maior: se o encerramento numa ‘torre de marfim’, a indiferença por toda atividade social e política, ou se a paixão partidária, tornando-se exclusivista, a personalidade do artista esgotando-se toda nesta paixão, com o prejuízo da sua obra, com o prejuízo da sua arte” (Jornal de Crítica, vol. 2, pág. 266).
O crítico procurou se afastar, por um lado, do puro esteticismo e, ao mesmo tempo, da arte (e da crítica) panfletária e radicalmente engajada, duas tendências muito fortes no seu tempo – e no nosso, evidentemente. Confronte-se, por exemplo, duas passagens de Álvaro Lins formuladas em situações diferentes; na primeira, o crítico enfatiza a autonomia do elemento estético na construção artística: “Não me conformo que a obra de arte seja qualquer coisa além de uma obra de arte. Não me conformo que seja um instrumento de doutrina ou de propaganda, nem mesmo a serviço da Igreja” (JC1, pág. 131). Na segunda, ele se opõe frontalmente a uma visão beletrística e descompromissada de literatura: “Acho que encerraria, antes de tudo, esta minha atividade literária se tantas vezes não houvesse me manifestado em oposição ao conceito de literatura como um jogo inconsequente, como um espetáculo, como um divertimento. Sempre tornei ostensivo o meu horror aos artistas de estufa, salões, grêmios, tertúlias” (JC3, pág. 7).
A difícil missão de encontrar, em cada texto crítico, o meio termo prudente entre essas duas tendências, sem menosprezar nem aspectos estéticos nem as relações da literatura com a vida social, foi o norte intelectual traçado pelo crítico. Para ele, as esferas da ação, da contemplação e da imaginação são territórios interligados, porém autônomos, como – para utilizar uma metáfora política – numa federação. A realidade vital humana é a força aglutinadora, mas cada região tem suas particularidades: “Não é o isolamento do artista, a sua fuga ou irresponsabilidade, o que defendo; e sim a independência, a autonomia, a dignidade particular do estado literário, no sentido de um mundo de imagens e de metáforas, quer de um mundo de ideias políticas e de especulações na esfera das ciências sociais. A meu ver são igualmente falsos os dois conceitos antagônicos: o da chamada arte pela arte, que tende a esvaziar a criação estética de sua imprescindível substância humana; e o da arte naturalista, que mutila a complexidade do fenômeno estético com os métodos de aproveitamento de um vulgar primarismo da realidade em estado bruto” (JC7, pág. 17).
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A disposição pedagógica da crítica: o ideal de (auto)formação
Antonio Candido, referindo-se à atuação de Lins em seu rodapé literário, falou em “humanismo de intelectual empenhado”, mas reconheceu, antes de tudo, que a ideologia e os valores políticos podiam estar presentes, mas não orientavam a crítica do pernambucano: “A característica mais geral do crítico do Correio da Manhã é seu individualismo. A sua consciência que, como a do artista, não quer se comprometer para não se limitar” (Op. cit., pág. 14). Os âmbitos da política e da literatura podiam não ser completamente independentes em Lins, mas Candido os considerava autônomos. Em resumo: nem subordinação panfletária ou doutrinária, nem disjunções absolutas entre as várias dimensões que envolvem o fenômeno artístico.
O tipo de militância social que Lins exercia em suas colunas assemelhava-se mais ao trabalho de um professor ou de um crítico cultural do que do tom panfletário de um ideólogo político. A abrangência da crítica cultural de Lins e sua disposição pedagógica são também elementos humanistas. Álvaro Lins procurou educar e orientar o gosto do público brasileiro sem concessões ou didatismos facilitadores, mas sempre com um estilo claro e fluente e apelando sempre ao diálogo e à consciência de cada um de seus leitores, estimulando neles o valor da autonomia intelectual e do autoaperfeiçoamento moral e estético, proporcionado pelo contato com as grandes obras literárias e pelas discussões críticas.
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