Amor e as intermitências do coração

"A senhorita Albertine foi-se embora." Ao serem pronunciadas, essas palavras produzem um sofrimento tal que bastaria trocar o nome dela pelo do nosso amor para nos darmos conta de que um sentimento outrora tão banal é simplesmente toda a nossa vida.

por Thiago Blumenthal

“A senhorita Albertine foi-se embora.” Ao serem pronunciadas, essas palavras produzem um sofrimento tal que bastaria trocar o nome dela pelo do nosso amor para nos darmos conta de que um sentimento outrora tão banal é simplesmente toda a nossa vida. Esse é o cenário inicial de um dos volumes mais adiantados da Busca proustiana, quando Marcel se volta a uma das emoções primais do coração humano: o amor desfeito. Concebido em sete fraturas narrativas, a grande obra de Proust revira e refaz um baú de reminiscências, em que viver pressupõe uma construção de experiências, memórias e reconhecimento. Esse resgate, sempre tão frágil e fugidio, necessariamente perpassa nossos amores.

O amor não se resolve enquanto experiência singular e única. Sua condição quase inviolável é a de se repetir algumas vezes em ideias, relacionamentos, casamentos e perdas. Assim lemos em nossos livros de cabeceira, assim são as histórias que contamos e transmitimos de geração em geração, talvez até mesmo quando mal conseguíamos balbuciar qualquer “eu te amo”. It’s evolution, stupid, adiantar-se-ia o mais frio dos amantes, mas o que aqui se propõe, ainda que brevemente, ultrapassa a mera necessidade de encontrar um parceiro ideal para copular.

Para Freud, o amor romântico representa mais uma tentativa nem sempre bem sucedida de bloquear um desejo sexual. Por mais que muitos psicanalistas discordem de seu pai, a reflexão de Freud revela um desejo importante do homem, ao longo de toda a história, imediatamente consequente ao amor, que é a compreensão desse sentimento. Precisamos entender o que sentimos para legitimar e classificar a pessoa amada. O “mito do amor”, assim chamado porque infértil em sua descrição objetiva como fenômeno natural, espanta o homem.

Uma princesa afro-algumacoisa a um passo de descobrir que seu amado sapo é na verdade um pegajoso príncipe — infelizmente na vida real costuma ser o inverso.

Em Anatomy of Love a antropóloga americana Helen Fisher levanta uma lebre de certo modo antiga, mas pouco abordada nos estudos a respeito da fisiologia e da neurociência: o sentimento amoroso como um vício, atuando em quase todos os humanos de modo padrão. Fisher postula que já há dados suficientes, em diferentes pesquisas, para de fato classificar o amor romântico como um vício, ainda que seu diagnóstico seja sempre problemático e aberto a outros circuitos do cérebro. Não por acaso, uma das muitas fases difíceis desse sentimento é sua validação, a passagem da “cosa mentale” — como Leonardo da Vinci se referia à arte — a algo que, apesar de continuar sendo puramente mental, se cristaliza no objeto amado, como bem cita a Busca para se referir a Gilberte Swann.

A vantagem de se estudar Marcel Proust é poder usar sua obra para abordar qualquer tema. Tal qual Shakespeare, o romancista francês ilustra com seus personagens, suas cidades, suas viagens de trem, uma espécie de conflito do homem moderno em resolver suas pendências com o passado, consigo mesmo e com o que restou de suas memórias. Ora, e o que somos, afinal, senão nossas memórias? Os nossos amores, enquanto significam amor a uma certa criatura, não são talvez alguma coisa muito real. São só intermitências do coração, na visão do autor — expressão esta que aliás serviria de título à Busca, não fosse uma decisão de edição posterior à composição do romance.

Albertine, a jovem ciclista com um sinalzinho no queixo, ocupa boa parte das milhares de páginas de Proust. Como uma obsessão, ela conserva um “dispositivo” que permite fazer desaparecer a realidade e, espanto!, não somente a realidade exterior como a realidade subjetiva desse narrador tão meticuloso em classificar seu amor. O fato de existirem amores, belos e mentais, contenta em nós um materialismo inato, combatido pela razão, e que serve mesmo de contrapeso às maiores abstrações da estética. Como uma substância que desequilibra os níveis de dopamina em nosso cérebro, um amor desarranja qualquer possibilidade de ordem racional. Faz lembrar, em oposição, um certo Zeno, para quem a nicotina se havia interposto como uma constante sucessão de últimos cigarros. Nosso último amor será nosso último cigarro.

A Consciência de Zeno, romance de Italo Svevo, configura mais um tipo patológico, que se poderia associar a uma encefalite letárgica ou a um hipopituitarismo, ambos os males raríssimos. Encarar o amor (ou sua falta) como um déficit hormonal pode até soar cientificista demais quando a literatura e nossas próprias histórias individuais o descrevem melhor que um par de ressonâncias magnéticas. Se Proust, que travou contato com os maiores neurologistas de sua época (Charcot, Sollier) por intermédio de seu pai que era médico, analisa o sentimento amoroso em relação à experiência estética como um todo, ainda que sempre sob o norte dos disparos mentais de cada amor em cada uma de suas fases, qualquer observação concreta em laboratório mais serve para confirmar a literatura, do que para invalidá-la ou antecedê-la.

Ora, os dados reais da vida não têm valor para o artista ou para o sujeito apaixonado. A beleza da vida e a beleza de nossos amores, a primeira troca de olhares, tangenciam qualquer maior teoria do amor, passam adiante. Estamos perdidos buscando novas concepções, novos amores, retardando sem cessar a temida volta das emoções inúteis. Somos feitos apenas de instantes. Como diz Proust, “tudo está perdido”.

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