O Estado da Arte dá início à série “Os Antimodernos”, em que Fabrício Tavares de Moraes, motivado pela obra Cinco Paradoxos da Modernidade, do crítico Antoine Compagnon, analisa as ideias de autores que fizeram da “antimodernidade” um dos traços mais marcantes da própria modernidade: de Eugen Rosenstock-Huessy a Franz Rosenzweig, passando por Joseph de Maistre e Julius Stahl, os ensaios de Fabrício Tavares de Moraes expandem o repertório de análise da obra de Compagnon e oferecem uma contribuição original para o tema.
por Fabrício Tavares de Moraes
Em seu livro Cinco Paradoxos da Modernidade, que se insere na grande tradição crítica que explora os tópicos ou tendências que, ainda que tenuamente, unificam as várias correntes modernas, Antoine Compagnon diz-nos que o moderno em si não é tanto a negação da tradição quanto a tradição da negação.1 Não se trata somente do fato de que o programa moderno traz em seu bojo seu próprio mecanismo de superação ou mesmo destruição, como alguns teóricos da arte e principalmente os dadaístas notaram; antes, talvez seja mais um apelo a uma consideração mais apropriada do modernismo à luz das contradições românticas que não só o precederam, mas são, em última análise, uma de suas partes essenciais.
Desde o momento em que Karl Löwith denunciou o caráter teleológico e mesmo teológico das diferentes crenças no progresso, bem como das filosofias da história secularistas, tornou-se moeda corrente entre certos círculos a afirmação de que “a crença no progresso desonra o intelecto” (Cioran). Ora, a dificuldade conceitual no tocante às relações entre o moderno e o pós-moderno devem-se, no mais das vezes, à própria indefinição sobre a natureza do relacionamento de ambos: trata-se de uma superação do moderno, ou simplesmente um agravamento de suas tensões internas? Mais ainda: talvez a própria segmentação não faça sentido, de modo que, no entendimento de Michaël Löwy e Robert Sayre, por exemplo, os últimos quatro séculos são apenas um arco de desenvolvimento e portanto extenuação do romantismo. Dessa forma, as contradições do romantismo (não só estéticas e conceituais, mas também políticas2) permaneceram e ainda estão ativas nos movimentos artísticos mais díspares.
Dessa forma, a confusão corrente no senso comum entre moderno e progressista contempla apenas uma faceta dos movimentos que têm perpassado tanto a discussão estética quanto a política no Ocidente, ao menos desde fins do século XVIII. De semelhante modo, a designação do reacionário como fóssil político ou resquício medieval à deriva das correntezas do tempo trai o desconhecimento das próprias origens do movimento da “Reação”, que é a contraparte dos revolucionários franceses principalmente durante o período do Terror, sendo por isso essencialmente moderno.
Tendo em vista a profusão dessas porosidades e tensões presentes nesse impulso histórico “romântico” que se desencadeou no século XVIII (e que, de forma epidêmica, fez com que pululassem revoluções e crises em diferentes culturas e partes do mundo), não é insensata a afirmação de que os antimodernos e seus mais ferozes detratores são filhos legítimos do mundo moderno. Conforme esclarece Antoine Compagnon, logo no início de seu Os Antimodernos: de Joseph de Maistre a Roland Barthes:
Quem são os antimodernos? […] Nem todos os campeões do status quo, os conservadores e reacionários até o último fio de cabelo, nem todos os atrabiliários e os frustrados com seu tempo, os imobilistas e os ultracistas, os resmungões e os ranzinzas, mas os modernos melindrados pelos Tempos Modernos, pelo modernismo ou pela modernidade, ou os modernos que o foram a contragosto, modernos atormentados ou modernos intempestivos.
Para Compagnon, os antimodernos – que não são simplesmente os contramodernos –, por mais diferentes em suas motivações, contextos e estilos, têm em comum seis temas, ou mesmo topoi, que permeiam suas obras, sejam estas filosóficas, literárias, históricas ou teológicas.
Antes de tudo, porém, tenhamos em mente que o termo “antimodernos” não guarda em si – ao menos não para Compagnon – nenhuma conotação pejorativa.
Igualmente, não é possível reduzi-lo ou identificá-lo a uma postura simplesmente político-ideológica, sem que com isso se perca a riqueza da tradição antimoderna, que paradoxalmente constitui parte considerável do modernismo. Na verdade, “os antimodernos são os modernos em liberdade”.
Dito isto, voltemos aos seis temas listados por Compagnon, que, segundo ele, constituem essa tradição. O primeiro tópico é histórico ou político, isto é, a contrarrevolução. Veremos num outro momento que há mais do que se pensa na diferença entre contrarrevolução e antirrevolução.
O segundo tema, por sua vez, é filosófico; nas palavras do autor: “pensa-se naturalmente no anti-Iluminismo, na hostilidade contra os filósofos e a filosofia do século XVIII”. Em seguida, o terceiro tópico é moral ou existencial, o qual implica a relação pessimista do indivíduo com o mundo. Segundo Compagnon, “contrarrevolução, anti-Iluminismo, pessimismo, estes três primeiros temas antimodernos estão ligados a uma visão de mundo inspirada pelo mal”.
Daí surge portanto uma quarta coluna, que é religiosa ou teológica, mais especificamente a realidade do pecado original (as interpretações desta doutrina cristã variam imensamente no pensamento dos antimodernos, algumas tão distantes do entendimento original que são efetivamente heréticas), a crença não só na imperfectibilidade do homem, mas no fato de que sua natureza, se deixada à sua autonomia, é irredimível e inclinada à iniquidade.
Se esses quatro temas constituem a visão de mundo dos antimodernos, os dois últimos definem seu tom e forma: a estética antimoderna associa-se ao sublime; e seu estilo, por sua vez, assume o fervor retórico da vituperação ou imprecação.
Para Compagnon, esses seis tópicos perpassam autores tão distintos como Bernanos, De Maistre, Gautier, Burke, Bataille e Caillois, para citar apenas alguns. Valendo-nos, portanto, desses pressupostos levantados pelo crítico francês, é nosso interesse aplicá-los a autores que não foram abordados em sua grande obra, os quais, no entanto, compõem muitas das vezes um corpo estranho na análise do pensamento e estética modernos.
Antes de lançarmo-nos, porém, a breves análises individuais de autores, filósofos, pensadores e historiadores que integram a faceta antimoderna, a segunda parte deste ensaio analisará mais detidamente cada um dos topoi mencionados acima, na tentativa de contextualizá-los e compará-los aos demais motivos “modernos”.
[1]Essa própria definição, mais que um jogo quase obtuso de palavras, é uma ênfase deliberada na figura retórica da reversio ou antimetábola, que, segundo Compagnon diz em outra parte, “será encontrada a propósito do antimoderno como estilo.. [pois] cria sentido, força a lógica e incomoda a causalidade”.
[2]Para os românticos, subjetivismo e universalismo, e nacionalismo e cosmopolitismo, são indissociáveis. De semelhante modo, embora em grande parte filhos das Luzes, os românticos combatiam-nas por vezes com o arsenal do irracionalismo. Politicamente, tem-se Shelley, expulso de Oxford por um manifesto ateu e aclamador da Revolução Francesa, e Wordsworth e Coleridge, que embora num primeiro momento tenham também aclamado o evento revolucionário, tornaram-se depois dois dos três grandes nomes do conservadorismo então nascente (sendo Burke o principal deles).