Diter Stein: quando Kafka abraça Salinger

Quando as coisas são “como se todos os filhos da puta do mundo de repente tivessem saído do lixo do mundo”, descobrimos que, para se libertar do passado, há que se exercitar o perdão. Por Astier Basílio, notas sobre O Garoto que Não Sabia Dizer Não, de Diter Stein.

por Astier Basílio

………………….

Primeira cena. Quando a criança termina a oração, nota a presença de um velho, de pele roxa, olhos vermelhos e pés como de bode. “Você fez o pedido para a pessoa errada. Este pedido não é coisa de Deus. O que você quer, está sobre o meu domínio”. A menina havia rezado que o seu irmãozinho nascesse morto. Embora o demônio não possa mais realizar o desejo, oferece sete maldições que irão acompanhar a vida do menino Peter. “Fique tranquila que seu irmão vai ter uma das piores vidas que um ser humano pode suportar. Ele vai se arrepender de ter sobrevivido”.

Segunda cena. Ao entrar no maior templo católico do Brasil, em Aparecida, Peter tem um pressentimento. “Olhei para o alto. Sabia que iria ver o demônio. Ali estava ele. Bem no alto. Agarrado, como um enorme inseto, em uma laje da estrutura, no teto da basílica. Horrível. Lá estava a besta. Lá estava o demônio. Nu, meio animal, meio humano. Me observava”.

Estes são alguns dos muitos momentos assustadores, e magistrais, de O Garoto que não sabia dizer não, primeiro romance de Diter Stein, autor que já publicou o originalíssimo e estranho volume de contos O Brilho do Sangue, em 2006 — obra que não recebeu muita atenção da crítica nacional, salvo um ou outro registro.  Se muitos autores costumam escrever uma espécie de carta de amor aos seus contemporâneos — como Roberto Bolaño se referiu ao seu Detetives Selvagens, por exemplo —, nesta narrativa de Stein temos o afeto encerrado em direção oposta.  Aqui há um ajuste de contas, uma verdadeira sessão do descarrego em uma geração cujos pais não encontravam impedimento para surrar seus filhos, nesta obra que guarda alguma semelhança com Salinger — como bem observou o crítico José Castello, ao dizer que “tem um piano de fundo do O apanhador no Campo de Centeio, mais punk e tocado com muita emoção”.

………….

(Reprodução)

………………

É no tom, em primeira pessoa, do narrador Peter Knapp, cuja impressão imediata ao ouvir seu discurso é de alguém com dificuldades para amadurecer e tornar-se adulto, que se dá de modo imediato o intertexto com o romance americano. Mas há ainda uma sombra angustiante de outro escritor. Franz Kafka. Em comum com o autor brasileiro, o vínculo ancestral com a língua alemã, berço natal da família Stein.

Acossado por pais que lhe tratavam com indiferença e de modo constante o agrediam fisicamente, Peter Knapp, devastado pela incompreensão, solidão e pelo medo, dá a impressão de sentir repugnância por si próprio, de não caber no lugar que foi reservado na família, na escola e no mundo. É alguém em desarmonia como o grande inseto no qual se transfigurou Gregor Samsa. Embora em O Garoto que não sabia dizer não inexista o momento de transformação, em que a normalidade se altera e nos deparamos com a estranheza. Não. Desde o início, Peter é uma espécie de bicho em agonia. Mas há pequenas frestas. Momentos em que é possível respirar. E é aqui onde Stein encontra Kafka com força e beleza.

Há um momento em Metamorfose que é a música, executada pelo piano da casa, que faz o proscrito arriscar-se e sair do quarto relembrando sua condição humana. Algo semelhante ocorre com Peter ao encontrar refúgio num dos poucos adultos que lhe dá atenção, de verdade, sem interesse mesquinho.  Uma espécie de pai substituto, o amigo da família, Michael Schreiber com quem Peter aprende a amar a música e é, justamente, o universo das composições clássicas, em especial de Beethoven, uma espécie de trégua em seu mundo reduzido a tédio, medo e violência.

O Garoto que não sabia dizer não se divide em três partes. A primeira delas se passa na fictícia cidade de Sant’Anna do Rio Parahyba. Quando a narrativa começa, Peter está numa casa abandonada ao lado do amigo Trek, que após fumar maconha, não consegue se concentrar na apresentação do trabalho que deverão fazer sobre Os Lusíadas. É uma poderosa antevisão do que virá. Um lar em ruínas e em abandono sobre o qual os adolescentes abrigam-se, sem sucesso, do frio que cobre a cidade sob a névoa.

Tem-se início uma epopeia nada gloriosa, de um jovem que vai sendo tragado ao inferno, descendo pelas valas de círculos cada vez mais insuportáveis de violência e opressão, o que é mais espantoso é que esse tipo de prática, de severos castigos domésticos, até período recente de nossa história era visto como natural em muitos lares brasileiros. Diter Stein não demarca temporalmente seu romance, mas é perceptível que tudo se passou há não muito tempo.

Entretanto, mais do que a série de palavrões e o lugar que tenderia ao comum do jovem em confronto com o mundo, há algo esmaga e sufoca Peter. Algo que ele chama de a coisa. É a forma como a criança lida com o trauma de ter sido abusada sexualmente. Aqui o terror psicológico adquire uma fantasia fantasmagórica, algo que lembra o Labirinto do Fauno, filme escrito e dirigido por Guillermo del Toro. A primeira parte se encerra com uma viagem de ônibus até o Rio de Janeiro, quando Peter vai ter de ficar confinado nas mãos de seu algoz e molestador.

Na segunda parte, quando a ação se passa no Rio de Janeiro, ficamos conhecendo mais da família de Peter Knapp. Dos avós judeus que na Alemanha nazista conseguiram disfarçar a própria origem. De tecelões de roupas finas passaram a confeccionar o uniforme para os soldados que executaram seu próprio povo. Ao serem enviados como forma de punição ao distante Brasil, os Knapp tiveram de fingir mais uma vez.  É que quando Getúlio Vargas decidiu sair da neutralidade e entrar em guerra, os avós de Peter ficaram visados e foi preciso mudar-se para o interior e recomeçar a vida numa cidade pequena, que acabara de ser fundada por alemães. A identidade dos avós de Peter, forjada para a sobrevivência em tempos de guerra, era um verdadeiro palimpsesto de infâmias. “Leon e Esther Knapp, não conseguiram mais ser judeus depois de tanto tempo fingindo ser alemães. Mas alemães também não eram. Tinham também vergonha do que haviam feito. De ter renegado a origem deles”.

Dentro da cova de seu algoz — não por acaso o personagem tem o nome de Átila, cunhado de sua irmã —, Peter tenta de todas as formas sair dos círculos de perversidade que se repetem e no qual sua alma havia sido aprisionada. É como se o rapaz estivesse em um vídeo game e não conseguisse sair de fase. E é justamente este conceito que vai percorrer toda a narrativa. Não é à toa que o sonho de Peter é, justamente, criar um jogo, os “Zombies in love”, com o auxílio do qual as pessoas pudessem fazer ajustes em suas próprias vidas.

A terceira parte começa com a surreal imagem de Peter correndo na praia, após ter sido surrado, e tomando consciência de que perdeu toda a sua pele e de que está andando em carne viva. Aqui se materializa, na narrativa, os comandos de um jogo de videogame. As ações vão se sucedendo como se estivéssemos jogando, o próprio narrador não sabe onde está e, como nós leitores, vai descobrindo à medida em que avança, em que segue adiante.

A atmosfera de terror se amplia com a presença de uma menina com a tatuagem do número 444 (cifra considerada maldita pelos orientais). Esta personagem é, portanto, para usar uma terminologia dos contos de fadas, o personagem auxiliar cujo objetivo é ajudar o herói em sua jornada. Criada pelos avós, a estranha menina compartilha com Peter o mesmo trauma do abuso sexual e os constantes maus tratos físicos dentro de casa. Chegou a flagrar a avó em um ritual satânico. “Eu tinha acabado de chegar do trabalho, quando vi minha avó na cozinha com uma faca muito amolada. A faca que utilizava para cortar carne. Descascando o que eu pensava fosse uma raiz de mandioca. Percebi depois que a raiz estava se mexendo. Vi então, que ela estava descascando um grande lagarto vivo”.

O romance avança e é preciso ir à fase seguinte. A chave para isso é superar os traumas que nos mantêm presos ao passado como verdadeiros zumbis. E é isso o que faz Peter. Caso este desfecho soe, à primeira vista, como algum aceno ao facilitário, não se preocupe. Em O Garoto que não sabia dizer não, o ritmo segue sem fazer qualquer concessão aos apelos de uma filosofia rasteira ou de autoajuda.

Devido a uma mensagem enviada pela menina da tatuagem 444, enquanto jogava o seu “Zombies in Love”, Peter foi instruído a ir até a basílica de Nossa Senhora Aparecida. Há um lugar para ir. Um banco, embaixo do qual estará um bilhete.  É naquele território do sagrado que esta história de terror vai se acabar como uma apoteose, resultante de um ritmo que nos prepara e leva para uma metáfora assustadoramente bela. A chave para a libertação está soterrada no nosso inconsciente cristão. Para conseguir libertar-se do passado é preciso exercitar o perdão.

E aqui temos, de certo, o momento mais emblemático de toda história. O gran finale.  Um personagem de ascendência alemã, a nação onde se originou o protestantismo, se refugia no maior templo católico. Vai lá para encerrar sua jornada, lendo a mensagem que sua amada deixou. Ao chegar na catedral, Peter é dotado de um poder insuportável: consegue ouvir os lamentos e as histórias de dor dos miseráveis de alma que vão até lá implorar conforto. O personagem que narrou seu drama, com uma visão algo infantil, centrada em si mesmo, teve que ouvir as tristezas dos outros. E só foi ao ouvir a tragédia e a dor dos outros que ele conseguiu dar um passo adiante. Um dos lamentos que escutou foi de um pai e uma mãe cujo filho havia se matado pois perdera o par de tênis novo e teve medo de, mais uma vez, ser duramente castigado. Eram décadas de culpa, amargura e dor a esmagar os trapos do que sobrou da alma daqueles pais.

Esta história de dor se configura numa espécie de espelho de uma outra, narrada anteriormente no começo do romance. A da morte de Rudolf, o melhor companheiro de infância de Peter. Espécie de irmão substituto. Debilitado pela saúde frágil, o amiguinho não podia fazer esforços físicos, as brincadeiras se limitavam aos carrinhos no terraço. E, ironia suprema, os castigos impostos pelos pais também eram restritos: punham o pequeno num armário escuro. Até que um dia, o coração de Rudolf não aguentou mais tanto terror e o menino morreu.

Inteligentemente, Diter Stein, que se baseou num episódio real para contar a história de Rudolf, não mencionou o amiguinho morto na parte final do romance. Não era preciso. Não se subestimou a inteligência do leitor com didatismos. A associação estava feita. Após ver o outro lado da dor, que fora perpetrada pelos algozes, Peter conseguiu compreender o outro lado e fez sua travessia.  Ao ler o bilhete da menina com a tatuagem 444, notou que o teto da igreja estava cheio de demônios. “Fervilhava deles, corriam desesperados de um lado para o outro passando uns sobre os outros. Como se todos os filhos da puta do mundo de repente tivessem saído do lixo do mundo. Assim que começaram a correr uns sobre os outros, de um canto para outro, começaram a sumir. A desaparecer. Desapareceram. Como se não pudessem se expor. Assim que se mostravam, eles sumiam”.  Peter conseguiu perdoar. Conseguiu compreender que não era mais a criança que apanhava e cuja alma havia sido capturada por seu abusador. Fechou seu rito de passagem. Tornou-se adulto. E a maldição pode, enfim, ser encerrada.

Cumpre transcrever trecho do depoimento do já citado crítico literário e escritor José Castello que é certeiro ao avaliar o potencial do romance, que por alguma razão absurda não foi publicado ainda, adormecendo na gaveta de avaliações dos editores. “É um livro que pode estourar! Comecei a ler e não consegui parar. Ele está com um ritmo fantástico, eletrizante, prende a leitura. Acho que você escreveu um livro que pode vir a se tornar um best seller, com a grande vantagem de ser um livro com um conteúdo denso . . .”.

……….

Diter Stein (Foto: Paulo Ricardo Botafogo)

……..

………..

COMPARTILHE: