Cartas da Malásia: A Fazenda Malaia

“Eu tive uma fazenda na África, aos pés dos montes Ngong”. Assim Isak Dinesen inicia seu livro autobiográfico, Out of Africa, e assim também, na versão cinematográfica, ouvimos pela primeira vez Meryl Streep impondo-nos aquilo que devemos encarar como um sotaque dinamarquês. O ensaio de Ary Quintella mostra por que a tão célebre frase, porém, quase foi bem diferente.

por Ary Quintella

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“Eu tive uma fazenda na África, aos pés dos montes Ngong”. Assim Isak Dinesen inicia seu livro autobiográfico, Out of Africa, e assim também, na versão cinematográfica, ouvimos pela primeira vez Meryl Streep impondo-nos aquilo que devemos encarar como um sotaque dinamarquês. A tão célebre frase, porém, quase foi bem diferente.

Em fevereiro de 2020, recém-chegado a Kuala Lumpur, conheci o embaixador da Dinamarca. Ele me contou que sua compatriota Isak Dinesen — ou Karen Blixen — e o marido, o barão Bror von Blixen, antes de irem plantar café no que hoje é o Quênia, e era então a África Oriental Britânica, quase tinham vindo plantar seringueiras no que hoje é a Malásia, e era então a Malaia Britânica.

Cinco meses depois, ao receber a mudança, quis verificar a informação na biografia de Isak Dinesen por Judith Thurman. De fato, a biógrafa nos conta que um tio dos noivos os convidou para administrar sua plantação de seringueiras na Malaia Britânica. O casal se entusiasmou. Judith Thurman cita uma frase da autobiografia de Bror von Blixen: “Aceitei a oferta sem um momento de hesitação”. Esse projeto, porém, não se concretizou. Outro tio voltou tão fascinado de um safári na África Oriental Britânica, tanto encorajou os noivos a irem viver lá, que eles mudaram de plano. Partiram da Europa para a África em 1913 e, no ano seguinte, casaram-se em Mombaça.

Além de demonstrar o alcance do colonialismo britânico, a história, para um amante da simetria, apresenta paralelismos irresistíveis. Karen Dinesen, apaixonada por um primo, Hans von Blixen, rejeitada por ele se casa com seu irmão gêmeo, Bror. Um parente recomenda aos noivos e primos, ele sueco, ela dinamarquesa, que vivam em um protetorado britânico na Ásia. Outro os incentiva a partir para um protetorado britânico na África.

O título de Out of Africa poderia então ter sido Out of Malaya, e a tradução para o português do livro, em vez de A Fazenda Africana poderia ter sido A Fazenda Malaia. O filme de Sydney Pollack com Meryl Streep, Robert Redford e Klaus Maria Brandauer, de 1985, precisaria também ter tido outro título, só que haveria, como no caso do livro, outro enredo, com outros cenários, outros personagens. A esse filme, porém, eu teria, quem sabe, assistido, ao contrário do que aconteceu com Out of Africa, que nunca quis ver. Tanto antipatizei com os anúncios do filme, que evitei inclusive, até hoje, ler o livro, embora eu tenha uma afeição particular pelas histórias de Isak Dinesen, sobretudo as do volume Seven Gothic Tales. É possível também que a Malásia tivesse inspirado Karen Blixen menos do que o Quênia, e que ela não tivesse escrito a respeito.

A edição original de A Fazenda Africana foi publicada em 1937. Sete anos antes, lançara-se na França um romance cuja história se passa em uma plantação de seringueiras na Malaia Britânica. Malaisie é o livro escrito por um francês, Henri Fauconnier, que chegou à Península Malaia em 1905 para ser plantador. Ao escrever seu único romance, ele já não morava na colônia britânica, e sim em uma colônia francesa, a Tunísia, assim como Karen Blixen escreveu Out of Africa quando já voltara à Dinamarca.

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(Acervo do autor)

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Se eu não tivesse vindo trabalhar em Kuala Lumpur no ano passado, é certo que jamais teria lido Malaisie e, possivelmente, nunca ouviria falar em Henri Fauconnier. Assim como foi o embaixador da Dinamarca quem abriu meus olhos para a real possibilidade de que a experiência colonial de Isak Dinesen pudesse ter sido no Sudeste Asiático, foi o embaixador da França quem me ofereceu um exemplar de Malaisie.

Hoje esquecidos, romancista e romance tiveram seu momento de fama. Pois acontece que Malaisie foi, em 1930, o ganhador daquele que é, incontestavelmente, o mais prestigioso prêmio literário francês, o Goncourt. Derrotou naquele ano, entre outros candidatos, La Voie Royale, de André Malraux. Este seria recompensado com o prêmio em 1933, com La Condition humaine. Como o de Henri Fauconnier, esses dois romances de Malraux são passados na Ásia.

Criança, roubei na biblioteca de meus pais uma história da literatura francesa de 1947. É bem possível que tenha pertencido antes a algum de meus avós. Fauconnier e seu livro não são citados, assim como não encontro referência a eles em nenhum de meus dicionários de literatura francesa. No manual de 1947, leio que “o romance exótico recebeu encorajamento, logo após a Primeira Guerra Mundial, por causa do novo interesse surgido por regiões distantes que haviam participado do grande conflito, por causa da atualidade dos problemas coloniais e também por causa do desejo por uma mudança de cenário” (“le désir d´un dépaysement”).

O enredo de Malaisie é simples. Um francês jovem, Lescale, que lutara na Primeira Guerra Mundial e é o narrador, chega à Malaia Britânica para tentar fazer dinheiro. Nas trincheiras, na Picardia, ele conhecera Rolain, mais velho do que ele e plantador de seringueiras e que lhe falara da vida na colônia inglesa. É por causa dos relatos de Rolain que, a guerra terminada, Lescale parte para a Península Malaia. Um dia, eles se reencontram por acaso em um clube. A amizade é retomada. Lescale aceita ser o administrador do seringal de Rolain. Além deles, há dois outros personagens relevantes, irmãos malaios que trabalham cada um com um dos dois franceses, na condição de empregados domésticos.

Até às últimas páginas, quando dois crimes acontecem, há pouca ação. Os dois amigos conversam sobre questões filosóficas, sobre a natureza ao seu redor, sobre o espírito dos malaios. Há comentários sobre a extração da borracha, sobre a relação entre as três comunidades — malaia, indiana e chinesa — e entre estas e o colonizador europeu e sobre a dureza, para os trabalhadores, da vida nas plantações. Lescale trabalha, Rolain parece sempre estar refletindo e emitindo opiniões sibilinas. Estas são recebidas como oráculos pelo mais jovem. Os diálogos entre os dois mostram uma relação de mestre e discípulo.

Recentemente, conversei com um casal de amigos que também leram o livro. Eles especularam sobre a sexualidade de Rolain e Lescale. De fato, as poucas mulheres no livro fazem somente figuração. Lescale começa um caso com a mulher de um dos empregados do seringal, mas pouco nos é dito sobre ela. É possível que essa relação meramente sexual sirva para ilustrar ou condenar o poder arbitrário dos plantadores sobre os que dele dependem financeiramente; ou para embaralhar as indagações do leitor sobre a relação entre os dois franceses e entre eles e seus empregados.

Há referência breve e isolada ao fato de que, na vizinhança da plantação de Rolain, só há “duas senhoras”, que não se suportam: “Mais il n´y avait que deux dames dans le district, et qui ne s´aimaient pas”. Veio-me o pensamento de que haveria aí material para um romance diferente. Quem são elas? Quais as suas nacionalidades? Os seus nomes? Por que não são amigas? Qual é sua situação familiar? Como vieram parar na Península Malaia? Nunca saberemos, e eu teria gostado de saber.

Dois elementos me prenderam ao curto romance de Henri Fauconnier. O primeiro é a descrição das paisagens, particularmente da floresta em volta à plantação. A propriedade de Fauconnier — como também a de seu personagem Rolain — era no sultanato de Selangor, em cujo território está encravada Kuala Lumpur. Já estive muitas vezes em Selangor, que preserva, apesar da urbanização e de ser hoje o estado mais rico da Malásia, vastas florestas. A natureza luxuriante é, na verdade, o personagem principal do romance. A realidade europeia é mencionada mais de uma vez de forma crítica, como quando Rolain diz ser a Europa “uma terra onde eu já não poderia viver, uma terra desumana, pois lá não há seres humanos, apenas marionetes”.

As descrições da natureza são elaboradas. Traduzo um trecho: “Há um momento onde nada permite adivinhar a chegada da manhã e, de repente, uma pequena brisa, que parece sair do solo, roça as folhas com o barulho como que de uma cortina que se levanta. E em seguida eis o ´te-te-goh´, o pássaro dos crepúsculos, que semeia no ar suas três notas claras […] outros pássaros, pouco a pouco, intervêm. Um numeroso coro se organiza. À medida que cresce a luz e que as brumas da manhã se evaporam, um longo crescendo de indagações cada vez mais altas, rápidas, apaixonadas, se levanta. E quando o sol finalmente jorra das montanhas, isso tudo desabrocha em uma longa aclamação. É o hino grandioso dos gibões”.

Fiquei me perguntando o que seria esse pássaro apelidado por Fauconnier, entre aspas, de “te-te-goh”. Quero crer que se trata do koel asiático, fonte do primeiro som novo que ouvi ao chegar a Kuala Lumpur; a espécie frequenta o parque em frente ao edifício onde moro, desenhado por Roberto Burle Marx. O koel só oferece seu canto belo, alto e peculiar de manhã ou no final da tarde, encaixando-se assim na definição de “pássaro dos crepúsculos”. Vive na copa das árvores, e nunca consegui ver um exemplar.

O outro ponto fascinante no livro é o espaço dado a uma versificação oral tipicamente malaia, o pantum, de que Fauconnier dá numerosos exemplos. Logo no início do primeiro capítulo, um pantum anuncia o próprio enredo do romance:

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Jikalau tidak karna bintang
masakan bulan terbit tinggi

Jikalau tidak karna abang
masakan datang adek k-mari

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Dou uma versão da tradução francesa livre de Fauconnier, sem a preocupação, que ele tampouco teve, de respeitar as rimas, o que já deturpa o espírito do pantum, onde a graça parecem ser as rimas em formato ABAB e a repetição de palavras e de sons:

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Se não fosse pelas estrelas
por que a lua brilharia no céu?

Se não fosse pelo mais velho
por que o caçula viria?

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No romance, ficamos com a impressão de que os malaios, mesmo o mais humildes, usam o pantum a torto e a direito, na vida cotidiana. Ao menos o empregado doméstico de Rolain o faz, e este diz dele: “Smaïl est un poète, et il a trop d´imagination”. Perguntei a alguns amigos malásios se o pantum ainda é corrente nas interações sociais. De todos, ouvi que não, o que me causou pena, como prova de um empobrecimento, uma homogeneização cultural. De um, ouvi que, no contexto de “eventos tradicionais, como casamentos”, o noivo, ou sua família, ainda elabora pantuns para a noiva. Outro indicou que membros do Parlamento, no plenário, às vezes improvisam pantuns para iniciar a fala dirigida a um colega, e que este idealmente deveria também responder com outro pantum, como uma forma de “cortesia malaia”. Não ficou claro se apenas noivos e congressistas malaios constroem ainda pantuns ou se membros das outras comunidades malásias, a chinesa e a indiana, também.

O clube onde se dá o reencontro entre Rolain e Lescale é claramente inspirado, pela descrição, em um local verdadeiro, que lá está até hoje, o Royal Selangor Club. Em estilo falso Tudor, situa-se no coração da Kuala Lumpur colonial. Em frente a ele, está o enorme espaço verde hoje conhecido como Merdeka, que em malaio significa “independência”. Ali, onde os ingleses costumavam fazer paradas militares e jogar cricket, em 1957 levantou-se pela primeira vez a bandeira do novo país. Além do clube, que era frequentado pela elite colonial, estão ao redor da praça os prédios da administração inglesa e da antiga corte de justiça, construídos no final do século XIX em estilo teoricamente mourisco, e a catedral anglicana de 1894, seguindo o estilo gótico inglês inicial.

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(Acervo do autor)

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Pouco depois de chegar à Malásia, tornei-me membro do Royal Selangor, mas lá nunca pudera ir, por causa das constantes e sucessivas regras de isolamento social. Em um domingo de abril, convidei dois amigos e a mulher de um deles, todos estrangeiros, para almoçar no clube. Sentados na varanda, admiramos a vista, com o gramado verde da Praça da Independência e, além dele, bem em frente ao clube, a antiga sede da administração britânica. Atrás, os prédios modernos pelos quais Kuala Lumpur é famosa. Víamos diante de nós como um resumo da história da Malásia nos últimos 140 anos.

Imaginei Karen Blixen, de volta à Escandinávia, rememorando os dias em seu seringal. Imaginei-a sentada em sua casa de campo senhorial, pegando a caneta e começando um livro: “Eu tive uma fazenda na Península Malaia, na curva do rio Selangor”.

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(Acervo do autor)

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Ary Quintella publica seus ensaios e crônicas na página aryquintella.com.

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