César Aira e o enigma dos Congressos de Literatura

Um dos nomes cotados para o Prêmio Nobel de Literatura, o argentino César Aira tem suas narrativas curtas publicadas no Brasil — entre elas, "O Congresso de Literatura" faz uma revisão satírica do mundo acadêmico, editorial e literário.

O escritor argentino César Aira (1949 – ) consta da lista dos possíveis vencedores do Nobel de Literatura deste ano, mas, vencendo ou não, no Brasil, quem ganha são os leitores de Aira com a mais recente publicação de suas “novelinhas”, como ele denomina as narrativas curtas que foram publicadas pela Fósforo, em tradução de Joca Wolff e Paloma Vidal. A editora espera publicar todos as suas narrativas curtas. As quatro primeiras — Atos de caridade, O vestido rosa, A prova, O Congresso de Literatura — podem ser adquiridas separadamente, mas também estão disponíveis numa caixinha charmosa. Os diminutivos parecem fazer parte do projeto editorial, numa tentativa, talvez, de dialogar com a nomenclatura adotada por Aira para se referir à sua ficção.

Dessa primeira leva de pequenas ficções, destaco O Congresso de Literatura, seu texto mais traduzido e conhecido. A obra, escrita em 1996, é uma espécie de pós-crítica, pois faz uma revisão satírica do mundo acadêmico, editorial e literário, tudo a ver também com a lista dos escolhidos para o Nobel de Literatura. Tomando como ponto de partida a descoberta “científica” de um pesquisador, narra-se a seguir sua participação em um congresso literatura. No prefácio dessa “novelinha”, assinado por Ieda Magri, ela “decifra” essa aventura da seguinte forma: “Hoje penso que ela funciona como uma porta de entrada para imaginar um congresso literário como um encontro de celebridades, no qual cada autor se sente o grande descobridor de um tesouro único, o seu, que lhe dá passaporte para estar no evento. Ou seja, cada convidado é precedido por fama e pelo mito pessoal”.

A coleção lançada pela Fósforo.

O Congresso de Literatura começa com o narrador relatando como, durante uma viagem à Venezuela, admira o “famoso ‘Fio de Macuto’, uma das maravilhas do Novo Mundo, legado de anônimos piratas, atração turística e enigma sem resposta”, que, segundo a lenda, “deveria servir para içar um tesouro do fundo do mar”. O protagonista consegue solucionar seu mistério, tornando-se imediatamente famoso e rico.  

O nome escolhido por Aira para esse “enigma sem resposta” — “Fio de Macuto” — pode revelar muito dessa narrativa. Macuto, como o narrador do livro destaca, é uma cidade na Venezuela. Mas o nome tem outros sentidos, e basta uma rápida pesquisa na internet para descobrir que macuto, do quibumdo makutu, significa mentira. Macuto é também “uma bolsa improvisada, geralmente feita de tecido, utilizada para carregar objetos de forma prática e rápida”.

Uma parte do enigma da “novelinha” poderia ser decifrada, a meu ver, a partir dos significados de macuto: O Congresso de Literatura falaria da mentira no mundo acadêmico e científico, que se espalha de forma rápida e prática para todos os lugares, sem grandes explicações.  

No conto de Aira, a fama súbita do narrador traz consigo o que realmente “interessa” (a parte prática), a estabilidade financeira. Antes de desvendar o mistério do “Fio de Macuto”, o narrador conta que se dedicava a duas atividades: a de tradutor, que lhe deu apenas “algum prestígio” e pouquíssimo retorno financeiro; e a de escritor, cuja produção, “encarada em termos de inatacável pureza artística”, também não resultou em “rendimentos materiais”. Se o narrador consegue “elucidar” as razões de seu fracasso financeiro como tradutor e escritor, o motivo de ter se tornado rico permanece um grande mistério para ele e para o leitor: “a riqueza sempre tem alguma coisa de inexplicável, mais do que a pobreza”.

O fato é que, no dia seguinte ao da descoberta do enigma, já “com os bolsos cheios e precedido por um clamor de fama que ganhava os jornais do mundo inteiro”, pegou o avião rumo a Mérida, também na Venezuela, “à bela cidade andina onde acontecia o Congresso de Literatura, objeto deste relato”. 

A verdade, contudo, é que ele só seguiu para Mérida, cidade do Congresso, porque já havia assumido esse compromisso. Seu desejo mais íntimo era, conforme confessa, outro: ter “ido a Paris ou a Nova York para estrear minha opulência”. Mais um fio de macuto (mentira) solto na narrativa, que acaba enredando o próprio narrador. 

Narrar as aventuras do protagonista em Mérida, durante o tal Congresso, envolveria traduzir trechos de conversas e manuscritos, para que o leitor, que não conhece línguas estrangeiras, fosse devidamente informado de tudo o que lá sucedeu. Mas o narrador, sem nenhum compromisso com a exatidão dos fatos, ao contrário, interessado apenas em seguir o número de páginas que já se havia imposto “como máximo para este livro”, decide traduzir “somente o necessário; o que não for, restará em fragmentos de Fábula na sua língua original; mesmo me dando conta de que isso pode afetar o verossímil”. 

César Aira.

O que segue é a história do “Cientista Maluco” argentino, que é o próprio narrador, o qual vai a um Congresso de Literatura a fim de clonar um gênio. O escolhido para o papel de gênio, sem grandes explicações, é o escritor e diplomata mexicano, nascido no Panamá, Carlos Fuentes, que também estaria lá e que é autor de “Aura”, um breve relato fantástico muito apreciado. A proposta do narrador era “boa”: ter um mundo habitado apenas por gênios, e não por “autômatos”, como o cientista via parte dos presentes.

Decidido, pois, a clonar Fuentes, afirma que “não me restava mais que esperar. Devia pensar em alguma coisa para ocupar o tempo. Como não tinha a intenção de assistir às tediosas sessões do Congresso, comprei uma roupa de banho e a partir do dia seguinte comecei a passar as manhãs e as tardes na piscina”.  

Sabe-se que Aira participou de congressos literários, inclusive de um na Venezuela, e isso pode ter inspirado a trama sua “novelinha”. Se o protagonista de O Congresso de Literatura for visto como alter ego do escritor, pode-se concluir que Aira não guardou uma boa impressão desses eventos. Para o narrador de Aira, congressos sempre eram tediosos, e ele os via apenas como uma “possibilidade de tirar férias e descansar”, ou de se “recompor e espairecer um pouco”, não em auditórios, mas na “piscina”, na água “limpa como um cristal bem lavado”.

O cientista vai, compreensivelmente, se afastando desse Congresso que deveria ter tido protagonismo na narrativa e para o qual havia sido convidado.  Confessa então sem nenhum pudor que dele se manteve “tão alheio que não poderia mencionar um só dos temas tratados nas conferências e painéis de discussão”. 

A história vai enveredando por fatos inusitados, como a aparição de larvas azuis, que deixam o narrador tão aturdido a ponto de ele se perder em descrições repletas de clichês, que ele próprio critica: “Parece a intromissão de outro enredo, por exemplo, o de um velho filme barato de ficção científica”.

Em O Congresso de Literatura, os acontecimentos realmente instigantes e importantes se desenrolam bem longe das discussões acadêmicas e científicas. Portanto, as experiências mais inesquecíveis e dignas de serem relatadas não provêm do nicho dos “gênios”, mas de um leque de pessoas comuns muito diversas entre si. 

Dirce Waltrick do Amarante é escritora, ensaísta e tradutora. Professora do Curso de Artes Cênicas e da Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina. Organizou e traduziu A palavra e o fio, antologia de textos em prosa e verso de Cecilia Vicuña.

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