Por Idelber Avelar
Desde sua chegada à cena literária argentina, através da revista Literatura y sociedad, em 1964, Ricardo Piglia sempre combinou o ofício de escritor com a reflexão crítica sobre a literatura. Não se trata apenas de que Piglia tenha escrito grandes narrativas de ficção e grandes ensaios. Seguindo um de seus principais mestres, Jorge Luis Borges, os textos ficcionais e ensaísticos de Piglia se imbricam mutuamente: no ensaio, utilizam-se procedimentos ficcionais como a multiplicação de vozes e a invenção de referências; na ficção, recorre-se a procedimentos ensaísticos como o confronto de ideias e o silogismo.
Nos romances de Piglia os enredos, notavelmente engenhosos, sempre demandam perguntas teóricas. A narração está tão amarrada à reflexão metaliterária que seus romances, de certa forma, esvaziam de antemão o comentário do crítico, forçando-o a confessar que ele próprio já havia sido lido pela narrativa que pretendia analisar. O texto de Piglia se oferece como uma isca que seduz o leitor e da qual ele deve escapar por meio da crítica, como forma de não se converter em alimento do texto, mero grão absorvido e previsto pela ficção. O leitor de Piglia se sente frequentemente tomado pela sensação de que o ponto a partir do qual ele decidiu olhar o romance termina sendo um reflexo fantasmático produzido a priori pelo romance mesmo, como se a linguagem crítica estivesse sendo guiada a um enganoso abismo sem fundo. Nesse sentido foi Piglia, não Mujica Láinez, como se chegou a afirmar, quem escreveu os romances nunca escritos por Borges.
O primeiro deles foi Respiração artificial (1980), sem dúvida o romance mais importante e emblemático publicado durante a ditadura militar argentina (1976-83). Nele, o filósofo polonês exilado Vladimir Tardewski publica em um jornal de Buenos Aires os frutos de uma pesquisa à qual havia dedicado a vida. Escrito por ele em inglês e traduzido por um amigo ao castelhano, esse artigo seu, que ele já não podia ler, era tudo o que lhe restara. O texto relatava um possível encontro entre Hitler e Kafka, em Praga, por volta de 1909-10, no qual Hitler teria narrado a Kafka seus planos para Mein Kampf. Tardewski interpreta toda a obra de Kafka como uma resposta a esse encontro. Tomando ao pé da letra a distopia narrada por Hitler, a obra de Kafka seria uma antecipação do pesadelo por vir. Tardewski, por sua vez, teria em comum com Kafka essa abordagem urgente e desesperada à linguagem, esse intento de cifrar nela, cripticamente, uma dimensão profético-alegórica. O encontro de Tardewski com Mein Kampf havia sido obra do acaso. Enquanto buscava fragmentos de Hípias de Élis e acumulava material para sua obra sobre Heidegger nos pré-socráticos–isto é, o impacto retrospectivo do autor de Ser e tempo sobre nossa percepção deles–, Tardewski terminou com o livro de Hitler, graças a uma confusão no catálogo HI na biblioteca. A ironia impressionante era que uma leitura cuidadosa do pesadelo narrado por Mein Kampf tornava inútil seu projeto anterior sobre Heidegger e os pré-socráticos. O assunto era agora Heidegger em Hitler, já não tinha sentido buscar Heidegger em Hípias ou Parmênides. O grande pensador do século XX dirigia o pensamento a Hitler, convidando o leitor a ver no Führer a culminação da filosofia ocidental. Esta seria a verdadeira grandiosidade, a radical inteligência da obra de Kafka: permitir-nos ler Mein Kampf como a culminação da tradição filosófica inaugurada pelo Discurso do método, de Descartes. Em um mundo em que a razão encontrava sua culminação em Hitler, reduziam-se a duas as opções à disposição de Tardewski: a cumplicidade ou o fracasso. Graças a uma confusão de fichas bibliográficas, Tardewski vem a deparar-se com o fim da filosofia: “De modo que a filosofia havia começado a terminar para mim. A ordem da série HI no catálogo da biblioteca. Bastou, como você vê, uma simples mudança de fichas”.
A imbricação entre o ficcional e o ensaístico encontrou outra grande morada no gênero entrevista, do qual Piglia, como Borges, foi um grande praticante. Em Crítica e ficção, seu livro de entrevistas de 1986, Piglia inseriu uma teoria notável e original sobre o conto. O ponto de partida é uma anotação esparsa encontrada em um caderno de Tchekhov: “um homem, em Montecarlo, vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa e se suicida”. Piglia vê nessa anedota um embrião do conto moderno, já que ela opera contra o senso comum, que seria ir ao cassino, perder um milhão e suicidar-se. Como a anedota dissocia o suicídio da experiência do jogo, ela abre uma bifurcação. Trata-se, portanto, de duas histórias, a do jogo e a do suicídio. Daí vem a primeira tese de Piglia sobre a narrativa moderna: um conto sempre conta duas histórias.
Para Piglia, o conto moderno, de Edgar Allan Poe e Horacio Quiroga (e, poderíamos acrescentar, Machado de Assis), consiste na construção de mecanismos que permitem ao escritor cifrar a história 2 (o suicídio) nos interstícios da história 1 (o jogo). Trata-se, então, de narrar em primeiro plano a história 1, construindo secretamente a história 2, de tal forma que a surpresa no final advenha da emergência, na superfície, do que era secreto. O que está oculto no conto moderno, portanto, não é uma ideia ou uma substância, não é uma “mensagem do texto”. O segredo não é senão a história que não se conta.
Piglia sugere que a versão modernista dessa estrutura (Katherine Mansfield, Sherwood Anderson, o Joyce de Dublinenses e, poderíamos acrescentar, Guimarães Rosa de Primeiras estórias) realiza uma operação curiosa: ela abandona o final surpresa e trabalha a tensão entre as duas histórias sem resolvê-la nunca. Enquanto que o conto clássico à la Poe contava uma história anunciando que havia outra, o conto modernista narra duas histórias como se fossem uma. Essa é a essência da teoria do iceberg de Hemingway, emblematizada no conto “O grande rio de dois corações”, em que a história 2 (os efeitos da guerra em Nick Adams) se esconde completamente na trivial narração de uma excursão de pesca. Para Piglia, como Hemingway narraria a anedota de Tchekhov então? Ele contaria com detalhes a saída do hotel e descreveria o cassino, a técnica usada pelo jogador, as características da bebida. Não diria jamais que o jogador se suicidou, mas contaria a história como se o leitor já o soubesse. Substitua “cassino” por “rio”, “jogo” por “canoa”, “suicídio” por “loucura” e você tem a fórmula de “A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa. Não há final surpreendente porque a história 2 (o enlouquecimento) está completamente cifrada na história 1 (a ida ao rio), de tal forma que o leitor sai com a poderosa impressão de que somos todos, de alguma maneira, aquele barranqueiro.
Kafka introduz, segundo Piglia, a técnica de narrar com clareza e simplicidade a história secreta enquanto conta sigilosa, enigmaticamente a história visível. Como Kafka narraria a anedota de Tchekhov? Ele contaria a história do suicídio em primeiro plano, como a coisa mais banal do mundo. Todo o terror estaria situado na saída do hotel, que seria narrada de forma elíptica e ameaçadora. “Kafkiano” seria o nome que damos para esse perturbador efeito de que o mais terrorífico é a banalidade cotidiana, a saída do hotel, a entrada no casino, a aposta à mesa.
Piglia é o responsável pela descrição mais perfeita da estrutura dos contos de Borges. Em Borges, a história 2 é sempre a mesma (basicamente, a história do momento que define a vida de um homem) e a história 1 é um gênero literário. Para atenuar a monotonia da história 2, Borges vai brincando com as convenções de um gênero literário na história 1. A anedota de Tchekhov seria narrada por Borges com os estereótipos de uma tradição: a partida seria um armazém nos pampas e o relato seria colocado na boca de algum veterano das guerras civis do século XIX. A narração do suicídio seria construída como emblema da cena que define a vida do jogador.
Piglia sempre se interessou pela política como gênero literário. Quais são os registros, clichês e giros narrativos que determinam as formas como as histórias políticas são contadas? A teoria do conto de Piglia pode ser um instrumento poderoso com que compreender as formas em que se narra a política de hoje. Mais que em outros momentos históricos, vivemos hoje sob a égide da busca da história 2: invariavelmente, entende-se a política a partir da primazia de uma história supostamente secreta, um complô ou uma conspiração. Mas a literatura nos ensina que a história 2 não é nada sem a história 1. Mesmo que exista uma trama secreta, ela não se sustenta sem deixar traços no relato do que se desenrola na superfície. Como a superfície, em nossos tempos, vive no regime de visibilidade total da circulação frenética de notícias e da exposição absoluta das redes sociais, cada vez mais a política passa a ser marcada pela dissociação entre a história 1 e a história 2, entre o visível e o supostamente secreto. As tentativas de relacionar a história 1 e a história 2 enfrentam enormes obstáculos, não porque exista algum segredo que descobrir, mas porque a análise da trama é invariavelmente percebida como mais uma ocultação da história secreta. Essa dinâmica tende a produzir um viés de confirmação segundo o qual a história 2 já está dada de antemão e a história 1 não importa. Quebrar essa dinâmica, reinventá-la em outros termos, é um desafio para a democracia. Como ensina a teoria do conto de Piglia, a nuance é um problema ao mesmo tempo formal e ideológico, narrativo e político.