por Ary Quintella
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Em dezembro, a São Paulo Review me pediu uma lista dos meus livros prediletos de 2021. Como trabalho na Malásia, e como as livrarias virtuais brasileiras não entregam no exterior e ainda não aderi ao livro eletrônico, não tive acesso, ao longo de 2021, à produção literária nacional. Pude apenas indicar obras estrangeiras.
Quando a matéria da São Paulo Review foi publicada, li as listas elaboradas pelos demais convidados. Um título chamou minha atenção – O castiçal florentino, de Paulo Henriques Britto. Era indicado pelo escritor Santiago Nazarian.
Embora eu nunca tivesse lido nada de Paulo Henriques Britto, sua obra me intrigava há algum tempo. Um amigo — mais virtual do que presencial, pois conversamos ocasionalmente mas só nos vimos uma vez — o crítico Mateus Baldi, nela fala com frequência.
Em março, um colega chegaria do Brasil para trabalhar em Kuala Lumpur. Encomendei vários volumes para que ele os trouxesse na mala, criando peso considerável na sua bagagem. Colocou-se a questão do que selecionar. Por maior boa vontade que meu colega tivesse, o bom senso me impedia de escolher tudo aquilo que despertava meu interesse.
Mas incluí na encomenda o primeiro livro de contos de Mateus Baldi, lançado este ano, Formigas no paraíso, que tem como epígrafe uma citação de Paulo Henriques Britto, e O castiçal florentino, título sedutor, com aroma fin-de-siècle que lembra Oscar Wilde. Há muitos anos, assisti em Londres a uma ópera curta de Alexander von Zemlinsky adaptada de uma peça inacabada de Wilde, A Florentine Tragedy.
Recebida, há poucas semanas, a pesada sacola em que meu colega trouxe de Brasília os oito ou nove volumes que eu selecionara, foi pelos contos de O castiçal florentino que iniciei a leitura.
O exemplar que me tocou contém graves erros de edição. Entre a página 128 e a página 161, os textos aparecem truncados, com fragmentos de uma narrativa intercalados dentro de outras, no que poderia ser um efeito estilístico, mas é claramente um erro cometido pela editora, a Companhia das Letras. É um tributo à qualidade da obra de Paulo Henriques Britto que eu tenha persistido durante as constantes idas e vindas necessárias para continuar a leitura ao longo do trecho defeituoso.
Fui amplamente recompensado pelo esforço.
No primeiro conto, que dá nome à coleção e que o autor já havia publicado, há dez anos, na revista Piauí, o narrador, um jovem convencional, sem maiores ambições intelectuais, cruza caminho com uma trupe de teatro alternativo. O texto mostra como pode ser pequena, e arbitrária, a distância entre a preservação de estratégias conhecidas de sobrevivência e a adoção de um passo transformador do destino. Sobre a peça que a trupe apresenta, cujo título é o do conto e o do livro, saberemos apenas que “o personagem do Inquisidor era o vilão”.
Há entre o primeiro texto e o último, “Relato”, uma notável simetria. De certa maneira, o livro termina como começa, embora os personagens e as situações sejam inteiramente diferentes nas duas histórias. Ambas tratam daquilo que é, acredito, o mais interessante para qualquer criador: o contraste entre a expressão artística e as exigências da vida cotidiana. Nos dois casos, os personagens principais se obrigam a decidir entre a arte e a cultura e uma forma burguesa de ganhar a vida.
Em “Relato”, Jesuíno Barroso, cineasta iniciante do Recife, quer adaptar para o cinema “um romance curto, ou novela longa” — essa dificuldade na definição já prenuncia as dificuldades que encontrará ao longo do conto — de um escritor obscuro e já falecido, Nestor Condes. O livro a ser adaptado se intitula Relato, uma obra onde “a narrativa era escassa, os personagens eram pouco mais que espectros e a ação era mais sugerida do que descrita”. O contrário, portanto, do livro de Paulo Henriques Britto, onde os personagens ganham um perfil concreto e optam por atos que determinam seu futuro.
Em busca de autorização para filmar a obra do autor que tanto admira, Jesuíno Barroso visita a viúva de Nestor Condes e seu filho, um motoqueiro de mais de 60 anos que claramente não trabalha. O diretor iniciante deseja fazer um filme de arte, digno da qualidade puramente verbal do romance. O filho deseja um sucesso comercial, que corrija sua precária situação financeira. Impõe ao jovem diretor a inclusão no roteiro de cenas eróticas, totalmente ausentes da obra do pai.
Nas entrelinhas, Paulo Henriques Britto ilumina com ironia, sem dramatizá-los, dilemas da criação artística que ele próprio parece encarar com ceticismo: há diferença entre entretenimento e cultura? A arte tem de ser maçante para ser levada a sério? Jesuíno diz a Condes Júnior: “Se eu quisesse fazer um filme pra ganhar dinheiro, eu não ia pegar uma obra de seu pai”. E o filho do grande autor reage: “Com um público bem pequeno, que nem os livros dele?” Reforçando a percepção de que os contos que abrem e fecham o volume se completam, um amigo de Jesuíno diz a ele, a certa altura, que Oscar Wilde é quem tinha razão, já que “a vida é que imita a arte”.
Ao contrário dos textos de alguns autores nossos, em que os diálogos lembram às vezes traduções malfeitas de best-sellers estrangeiros, os diálogos em O castiçal florentino soam naturais e espontâneos, ajudam a caracterizar os personagens, e isso é particularmente evidente em “Relato”. O texto de Paulo Henriques Britto é vernáculo, seguro e competente; tem a capacidade de esboçar, em poucas linhas, um ambiente, uma situação, uma personalidade.
Cada uma das histórias se desenrola em uma atmosfera característica, particular. “Policarpo Azêdo, 35” é uma carta ou mensagem que o narrador escreve a alguém, talvez uma mulher, que aparentemente o abandonou. O narrador é o único personagem masculino e o conto é construído em torno a suas impressões de quatro mulheres desconhecidas com as quais interage, no caso de uma delas apenas com o olhar. Sua atitude obsessiva, seu estilo meticuloso, sua ingerência na vida alheia vão tecendo, sem que o próprio narrador se dê conta, o porquê de ter sido abandonado pela pessoa a quem se destina o texto. De si mesmo, ele diz que optou pela infelicidade, “pelo prazer maligno de negar a si próprio todas as coisas pelas quais as pessoas se estapeiam pela vida e pelo mundo afora, e procurar exatamente aquilo que todo mundo evita”.
“Um santo” consegue ser ao mesmo tempo estimulante, misterioso e engraçado. Joana d´Arc moderno, o narrador ouve vozes e é visto como profeta pelas beatas da pequena cidade onde encontra abrigo, provocando primeiro a inveja do mendigo e depois a do padre. No final, ele descreve sua própria transformação em uma figura mitológica.
Em “História sem nome”, o autor nos oferece várias possibilidades para desenvolver o enredo, ilustrando como pode funcionar a mente de um escritor que examina opções enquanto cria sua ficção. O surgimento de um revólver permite esta frase curiosamente forte: “a presença da arma de fogo altera tudo”, já que, segundo Tchekhov, “se uma arma aparece no primeiro capítulo, ela tem que disparar em algum momento”. Tchekhov é mencionado cinco vezes, como um efeito antes cômico do que de influência ou afetação erudita: “Longe de mim querer contrariar Tchekhov, que entendia dessas coisas melhor do que ninguém, certamente melhor do que eu”. Na verdade, ao terminar a leitura ficaremos na dúvida se a arma disparou.
Poeta e tradutor conceituado, Paulo Henriques Britto comprova, neste segundo livro de contos, povoado por ecos onde se percebem as vozes de pelo menos Henry James, Kafka e Tolstoi, possuir um estilo absolutamente próprio e pessoal. As ressonâncias, se existem, são homenagem, não influência. Um livro original, eficiente e cativante.
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Ary Quintella publica seus ensaios e crônicas na página aryquintella.com.
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