por Fabrício Tavares de Moraes
Muitos certamente sabem que após a Experiência “Trinity”, o primeiro teste nuclear da história, Robert Oppenheimer, numa alusão ao Bhagavad Gita, diálogo entre o príncipe guerreiro Arjuna e Krishna (encarnação de Vishnu), declamou os seguintes versos: “Tornei-me a Morte, a Destruidora dos Mundos”.
A imagem poética em questão refere-se à manifestação da forma universal da divindade, um ser de aspecto terrível (e todo deus é terrível) e sublime, com incontáveis bocas e olhos. A despeito da opinião de especialistas em sânscrito de que o termo “morte” é mais adequadamente traduzido como o “tempo destruidor de mundos”, a referência e a ocasião são emblemáticas.
A ideia de que o homem tenha talvez alcançado o status de uma divindade destrutiva é, sob certos aspectos, a consequência inevitável da divinização da técnica, a exaltação do domínio sobre a natureza. Mas ainda assim permanece um ressaibo ou nostalgia dentro daquilo que os religiosos chamam de “coração”: há o temor de uma divindade faminta, potência bruta e consumidora, espreitando de uma cornija no cosmos, ou, nas palavras de Stanilaw Lem, em seu Solaris, “um deus desesperado”, sendo “as novas e as supernovas… as velas de seu altar”.
Aliando essas duas percepções, a obra de Cormac McCarthy é o testemunho vociferante de um profeta do mundo sem Deus, bem como a teologia, por assim dizer, de uma “divindade sangrenta e bárbara”, conforme o título da obra de Petra Mundik, que analisa a influência do gnosticismo e de correntes esotéricas no universo ficcional do autor americano.
A tese de Mundik é que as obras, quando lidas em sua unidade simbólica, constituem uma espécie de teodiceia às avessas, uma obsessão com relação à ausência sensível (com perdão do oximoro) da divindade na terra. E o romancista, embora ateu, apresenta, recorrente e essencialmente, sua visão sobre a existência do mal em um mundo em que chamas tênues alumiam somente uns passos à frente daquele que porta o fogo.
Meridiano de Sangue ou o Crepúsculo Vermelho no Oeste, de McCarthy, nos dizeres de Harold Bloom, é o “Western supremo”, “a culminação de todo potencial estético que a ficção Western possui”, “encerrando, pois, a tradição”. Grosso modo, escrito numa linguagem ao mesmo tempo épica, arcaica, escriturística e hipnótica, o romance narra a campanha de escalpelamento conduzida por John Joel Glanton e subsidiada por autoridades texanas e mexicanas, de 1849 até o ano seguinte. A intenção primordial era a limpeza dos corredores sudoestes – leia-se o extermínio de índios americanos – até as minas de ouro.
Neste tocante, entretanto, McCarthy não inocenta o culpado: Apaches (que chegaram à América do Norte posteriormente, por volta de 1650) e os Comanches (que vieram ainda mais tarde à região) são descritos como assassinos, raptores e escravizadores – e, claro, escalpeladores. E do mesmo modo o exército do general mexicano José María Elias, cruéis ao ponto de aniquilarem todos os desvalidos ou feridos abandonados pelas expedições.
Acompanhamos a jornada do personagem Kid (o garoto), em nenhum momento designado com seu nome próprio, também produto residual de um mundo mais genesíaco do que social, coroado por caos e violência, que definirá não somente sua associação ao grupo de Glanton, mas também “seu gosto pela violência insana”.
Todavia, a principal figura – o ponto nodal em que convergem todos os assassinatos, discórdias e crimes e no qual culmina toda a escala da violência desencadeada já no princípio da obra – é o juiz Holden, um gigante albino de mais de dois metros de altura, robusto e forte ao ponto de segurar um canhão (e matar alguns infelizes) somente em seus braços.
Holden é o guia espiritual do grupo de exterminadores, assassino, estuprador, aliciador de crianças, dançarino e violinista exímio, conhecedor de todas as línguas e dos mais variados saberes: jurisprudência, geologia, astronomia, filosofia, paleontologia e desenho técnico – com o qual registra detalhadamente os objetos, “os ossos das coisas… as palavras de Deus”, com o intuito declarado de eliminá-los do mundo.
Curiosamente, todos os membros do grupo de Glanton tiveram um encontro com o juiz antes de se juntarem à expedição, o que mais uma vez adensa a sua aura preternatural. As partes mais vigorosas e memoráveis do romance de McCarthy são os discursos e reflexões de Holden, quando ele apresenta ao grupo sua teologia da violência, a ideia de que a guerra, essa força quase ctônica que traz unidade aos homens, é deus. Conversando com um ex-padre que então integrava o grupo, Holden expõe suas ideias sobre as origens da terra a partir de uma análise de minerais que tem em mãos: “uma ordenação de éons proveniente do caos arcaico”. Mais do que um gnóstico, o juiz é, no entendimento de Bloom e Leo Daugherty, uma entidade demiúrgica, um deus do caos ou da guerra.
Sem necessidade de descanso e afirmando que há de viver para sempre, Holden é o princípio de violência que impera e rege não somente a história americana, como alguns críticos interpretaram essa genealogia da violência, mas uma encarnação psicopata do mal, um ente anunciando que a história humana é erigida sob o signo da violência.
Nesse e noutros aspectos, McCarthy retoma todo o imaginário sombrio do gótico sulista norte-americano e sua obsessão com o mal metafísico, as perversões da alma humana e a violência incontida ou que ruma à destruição absoluta. Nesta linha que abarca Faulkner, Melville, Davis Grubbs, Flannery O’Connor e especialmente Tennessee Williams, McCarthy nos apresenta, em Meridiano de Sangue, um Caim maldito que perpassa e influencia os eventos, especialmente os fundantes de uma civilização.
Portanto, Holden é uma espécie de Shiva, um deus múltiplo e destruidor, que calca aos pés a criação, tornando-a uniforme e homogênea por meio da violência, com o intuito de remoldá-la. No romance, encontramos uma das cenas mais sombrias que corroboram essa analogia: o juiz toma para si, para fins sádicos, um deficiente mental, numa de suas caçadas por escalpos. Após matar ou causar a discórdia dos demais integrantes do grupo, Holden passa a caçar o Kid e o ex-padre, e vem conduzindo à sua frente, com uma coleira, o retardado: a Ignorância precedendo o Mal, ou, como Shiva, na sua dança destruidora-criadora, pisoteando o anão da ignorância.
Ao final do romance, vemos Holden tocando seu violino e dançando eximiamente após o reencontro com Kid, que naquele momento já tinha sua visão turvada pelas cenas de truculência e morte que presenciara. Seja como um deus hindu que não se contenta em destruir nada menos que o cosmos, seja como a morte celebrada pelos atos humanos, Holden “está dançando, dançando. Ele diz que jamais há de morrer”.