Crime, paranoia e complô: o Estado e a narrativa policial na Argentina

Idelber Avelar analisa o que acontece com o gênero policial quando o Estado se transforma não apenas em instância definidora da lei mas também, e paradoxalmente, em grande criminoso planetário.

por Idelber Avelar

Gênero intelectual por excelência, o relato policial inspirou parte da melhor reflexão crítico-literária no século XX. Na bibliografia contemporânea, há um texto saboroso e culpado de Ernst Mandel, líder trotskista belga da Quarta Internacional, intitulado Delightful Murder: A Social History of Crime, no qual Mandel exorciza sua culpa pelo vício de ler policiais com um livro apaixonado, que acabou sendo a grande obra do economista inventor da teoria do “capitalismo tardio”. Delightful Murder é uma história do gênero policial em suas relações com a modernização da polícia, a invenção da fotografia, o surgimento dos livros de bolso, a emergência do crime organizado e sua infiltração no aparato estatal. Menciono a obra porque boa parte da tradição policial argentina, tema deste artigo, gira em torno à pergunta acerca do que acontece com o gênero quando o Estado se transforma não apenas em instância definidora da lei mas também, e paradoxalmente, em grande criminoso planetário.

Ao contrário do Brasil, a Argentina desenvolveu cedo uma indústria editorial voltada para a literatura de entretenimento. Favorecida pela universalização da alfabetização, que foi precoce para padrões latino-americanos, a Argentina teve popularíssimas séries de narrativa policial vendidas em bancas de jornais já nas décadas de 1910 e 1920. O período formativo da tradição policial argentina remonta ao século XIX e inclui contos pioneiros como “La pesquisa”, de Paul Groussac, o lendário diretor da Biblioteca Nacional, e “La bolsa de huesos”, de Eduardo L. Holmberg, um dos fundadores da vertente fantástica que teria longa história no Rio da Prata. Os primeiros romances policiais, La huella del crimen e Clemencia, de Raúl Weleis (pseudônimo de Luis V. Varela), foram publicados em 1877, alguns anos antes que Carlos Olivera realizasse as primeiras traduções de Edgar Allan Poe, em 1884.

Em 1903, o uruguaio Horacio Quiroga publicava “El triple robo de Bellamore”, e ali o gênero já se estabelecia sob os signos da paródia e do minimalismo. A resolução ocorre no início do relato, mas o leitor percebe que se trata de uma teoria e nada mais: plausível, verossímil, mas sem demonstração de culpa irrefutável do acusado. O narrador pode muito bem ser o culpado. São três indicações, cinco páginas, uma teoria e nenhuma verdade final. No conto de Quiroga, toda uma tradição já se anunciava em microcosmo. Essa miniaturização das leis de um gênero é fenômeno comum na literatura argentina e atingiria seu apogeu, no caso do policial, com Jorge Luis Borges e “A morte e a bússola”. Nos anos 1910 e 1920, séries populares como La novela semanal e El cuento ilustrado apresentariam uma estética folclórica em que se misturavam o sentimentalismo e o justicerismo fantástico. Nos anos 1930, as coleções Misterio e Magazine Sexton Blake colocariam em circulação romances de ação e intriga. Esse período, o início do meio século de golpes e ditaduras militares na Argentina, coincidiu com a popularidade de Edgar Wallace, autor cuja receita era simples: “crime, sangue e três assassinatos por capítulo”. Em revistas dos anos 1930 e 1940 como Patorozú, Cascabel e Rico Tipo, Conrado Nalé Roxlo (que escreveu sob o pseudônimo Chamico) consolidou um recurso que nunca deixaria de fazer parte da tradição policial argentina: a paródia. Em exercícios intitulados “Ao modo de”, Chamico ironizou Chesterton, Conan Doyle e até Borges, com “Homicídio filosófico”, um relato que esvaziava a operação da inteligência, levando-a ao nível de gratuidade total.

Sob Perón (1945-1955), a narrativa policial construiria imagens da ordem em uma sociedade percebida como caótica. Para uma geração de escritores virulentamente anti-peronistas, a narrativa policial passou a funcionar como inversão e negação da desordem e da barbárie dos cabecitas negras (rótulo com o qual a elite argentina designou as populações mestiças que chegavam do interior com a modernização peronista). Perguntado sobre sua atração pelo romance policial, Borges respondeu: “frente a uma literatura caótica, o romance policial me atraía porque era um modo de defender a ordem, de procurar formas clássicas, de valorizar a forma”. Não é coincidência que esse seja o auge do relato policial clássico, analítico, com a série Séptimo Círculo, dirigida por Bioy Casares e Borges na editora Emecé. Em 1944, Borges publicaria “A morte e a bússola”, conto que leva o gênero ao seu limite. O relato concebe um esforço de deciframento perfeito cuja resolução, no entanto, leva à morte do próprio detetive, já prevista pelo criminoso como coroação de uma sequência geométrica de quatro assassinatos. O personagem de Borges é o detetive em um estado puro: ele paga com sua vida pelo sucesso de sua investigação. O seu sucesso é o seu fracasso. Ele morre para que o conto possa ser narrado.

Em 1942, Bustos Domecq, pseudônimo de Borges e Bioy Casares, assinaria Seis problemas para Don Isidro Parodi, tornando a paródia a marca definitiva do gênero na Argentina. Preso por engano, o detetive resolve o crime dentro de sua cela, contando apenas com uma história trazida por um visitante. Operando somente com a razão e uma história que lhe é presenteada, Parodi é, ao mesmo tempo, imagem do poder e da impotência. Se a ausência de outros materiais valoriza a inteligência, a condição de seu autor anula as resoluções antecipadamente, uma vez que, por definição, elas não alterarão a vida do criminoso. Nos relatos de Borges e Bioy, a identificação racional e consensual de quem é o criminoso não significa que existam mecanismos para julgá-lo e puni-lo. Há um divórcio, portanto, entre o mundo da razão e o mundo dos fatos. Se, para Borges-Bioy, o gênero é a imagem de uma forma, isso não indica um caráter “apolítico” da literatura, mas todo o contrário. Para Bioy e Borges na Argentina de Perón, desenhar a ordem da inteligência no caos era o gesto político que o relato policial poderia fazer.

Quando Rodolfo Walsh publica a primeira antologia do conto policial argentino, em 1953, em cujo prólogo declara Isidro Parodi o livro fundador do gênero no país, o relato policial já é uma linguagem consolidada na Argentina, cuja importância advém dos usos a que se presta. Apesar de que houve na Argentina alguns autores que praticaram apenas o policial, como Eduardo Goligorsky, o gênero tem sido sobretudo um produto de escritores que o citam, atravessam, parodiam. Revisitar os usos do gênero é rearmar todo o cânone do país. Julio Cortázar e Ernesto Sabato, por exemplo, vilificam-no como gênero meramente matemático, sem vida, no qual o raciocínio elimina a sensação. Por outro lado, Borges, Bioy, Walsh e Antonio di Benedetto apropriam-se de pautas associadas ao gênero e as disseminam por todo o espectro literário, do testemunho jornalístico ao relato fantástico.

Do primeiro peronismo à ditadura de Onganía (1966-69), o policial deixaria de ser a metáfora da contraordem da inteligência e passaria a incorporar a violência dos fatos reais. A explosão de indignação popular conhecida como Cordobazo (1969) coincide com o auge do romance policial duro, que encontra seu espaço mais prestigioso na Série Negra, dirigida por Ricardo Piglia. Ao traduzir autores como Horace McCoy e Dashiel Hammett, Piglia reorganiza o cânone e instala uma imagem que viria a ser chave em sua própria obra literária: o aparato estatal como imensa máquina paranoica e ilegal, o Estado militarizado como o grande criminoso do nosso tempo. Aqui poderíamos remeter a gênese do relato policial a um traço que Piglia define como central em toda grande literatura, a capacidade antecipadora, premonitória, de cifrar no presente o pesadelo futuro. Essa capacidade está emblematizada no encontro entre o policial e o fantástico em “Loteria em Babilônia”, de Borges.

Borges imagina um poder estatal que começa intervindo na loteria apenas para intercalar algumas multas no censo de números favoráveis, e depois para garantir que os devedores paguem suas multas ou sejam encarcerados. Com o tempo, a loteria começa a sortear diretamente as sentenças de encarceramento. Pouco a pouco, a loteria passa a ser secreta, gratuita e geral. A Companhia (já assim conhecida) se encarrega da totalidade do poder público e consolida outra etapa na administração do acaso. Não seria conveniente então que o acaso interviesse em todas as etapas do sorteio e não apenas em uma? A partir desse postulado, não apenas as sentenças, mas também as formas, datas e autores de suas execuções passam a ser definidos por sorteio. O número de sorteios é infinito e ilimitado. Não importa o caráter real da Companhia, já que seu poder é absoluto, posto que ancorado na ignorância dos cidadãos acerca de qual acontecimento foi produto de seus desígnios ou do mero acaso. Já não há distinção entre o crime e a lei, na medida em que a lei passa a ser a disseminação planetária de crimes.

Aqui o conservador ilustrado Borges antecipa em quatro décadas o trotskista  Mandel. A tese de Mandel em Delightful Murder coincide com a de Borges que, ao exacerbar o gênero até o pesadelo, confere-lhe uma espécie de fechamento histórico. Para Mandel, a partir de O poderoso chefão, de Mario Puzo, a base de toda a sociedade passa a ser o crime, de tal maneira que a figura mais obediente à lei não é senão o criminoso mais completo. Quanto mais sangrenta a sociedade, mais sangrento será o bom cidadão que a sustenta: eis aí o axioma a que chega Mandel via Puzo, e que Borges antecipara quatro décadas antes. A conclusão de Mandel é de que com Puzo se fecha um ciclo histórico do gênero, “apresentar o principal cidadão norte-americano como o mais bem ajustado cidadão norte-americano”. Escrito em 1984 e ainda muito marcado pela Guerra Fria, o livro de Mandel conclui que a história do gênero se resume na passagem do mero crime organizado ao crime estatal planetário, atividade permanente de um Estado militarizado. A história do gênero poderia ser resumida, então, na trajetória que vai da continuidade entre lei e justiça na narrativa de enigma tradicional (Poe, Doyle), passa pela cisão definitiva entre lei e justiça no romance policial duro (Chandler, Hammett) e finalmente chega à indissociabilidade entre lei e crime nos relatos de Puzo. Essa trajetória foi miniaturizada de várias formas pela notável literatura argentina, muito especialmente em “Loteria em Babilônia”, distopia narrada por Borges em 1944, ano undécimo do pesadelo nazista. 

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