Cristina Peri Rossi: leia uma seleção de poemas da autora uruguaia em tradução inédita

Seus poemas, diz o tradutor Pedro Gonzaga, possuem uma estrutura ao mesmo tempo narrativa, confessional, biográfica e metafísica.

Vencedora do Prêmio Cervantes em 2021, Cristina Peri Rossi nasceu em Montevidéu em 12 de novembro de 1941 e em 1972 se exilou na Espanha, fugindo da ditadura. Escolheu Barcelona para viver o exílio, “que foi uma experiência longa, dolorosa e abrangente”.

Entre as muitas leituras que podemos fazer de sua obra poética, uma me parece fundamental, e também uma maneira de escapar da sedução de sua voz: perceber que seus poemas possuem uma estrutura ao mesmo tempo narrativa, confessional, biográfica e metafísica. Esta compactação é o que dá aos seus versos uma força autoficcional e ao mesmo tempo autorreflexiva, mistura que permite que ela vá do erotismo ao humor e da melancolia ao escárnio com grande velocidade.

Sua obra completa está editada na Espanha e na América Latina.

Cristina Peri Rossi.

Montevidéu

Nasci numa cidade triste
de barcos e emigrantes
uma cidade fora do espaço
suspensa por um mal-entendido:
um rio grande como mar
uma planície deserta como pampa
um pampa cinzento como céu.
 
Nasci numa cidade triste
fora do mapa
distante de seu continente natural
deslocada no tempo
como uma velha fotografia
vertida em sépia.
 
Nasci numa cidade triste
de pátios com samambaias
claraboias verdes
e o envolvente olor das glicínias
flores roxas
flores lilás
 
Uma cidade
de tangos tristes
velhas prostitutas de dois por quatro
marinheiros extraviados
e bares que se chamam City Park.
 
E ainda assim
eu a quis
com um amor desesperado
a cidade dos impossíveis
dos barcos encalhados
das prostitutas que não cobram
dos mendigos que recitam Baudelaire.
 
A cidade que aparece em meus sonhos
acessível e distante ao mesmo tempo
a cidade dos poetas franceses
e dos quitandeiros polacos
dos marceneiros galegos
e dos açougueiros italianos.
 
Nasci numa cidade triste
suspensa pelo tempo
como um sonho inacabado
que se repete sempre.

*

A viagem

Minha primeira viagem
foi a do exílio
quinze dias de mar
sem parar
o mar constante
o mar antigo
o mar contínuo
o mar, o mal
Quinze dias de água
sem luzes de neon
sem ruas sem calçadas
sem cidades
somente a luz
de algum barco em fuga
Quinze dias de mar
e incerteza
não sabia aonde ia
não conhecia o porto de destino
só sabia aquilo que deixava
Como bagagem
uma mala cheia de papéis
e de angústia
os papéis para escrever
a angústia
para viver com ela
companheira amiga

Ninguém se despediu de ti no porto de partida
ninguém te esperava no porto da chegada
E as folhas de papel em branco mofando
tornando-se amarelas na mala
maceradas pela água dos mares

Desde então
tenho o trauma do viajante
se fico na cidade me angustio
se parto
tenho medo de não poder voltar
Tremo antes de arrumar uma mala
— quanto pesa o imprescindível—
Às vezes preferiria não ir a nenhuma parte
Às vezes preferiria seguir em frente
O espaço me angustia tal como aos gatos
Partir
é sempre partir-se em dois.

*

Le sommeil, de Gustave Courbet

Se o amor fosse uma obra de arte
estaríamos ainda deitadas nuas e adormecidas
a perna sobre a coxa
a cabeça sobre o ombro — ninho
resplandecentes e sensuais
como em Le sommeil de Courbet
cuja beleza contemplamos extasiadas
uma tarde, em Barcelona
(“Saímos de uma cama para entrar em outra”,
disseste).

Não teríamos despertado nunca
alheias à passagem do tempo
ao transcurso dos dias e das noites
em um presente permanente
de tempo paralisado
e espaço cristalizado.

Eu quis viver no quadro
quis viver na arte
onde não há fugacidade
nem trânsito.

Mas se tratava só de amor
não do quadro de Courbet
de modo que despertamos
e era o ruído da cidade
e era o reclamar da realidade
os cruéis menestréis
— as ninharias de que falou Darío —.

Tratava-se só de amor
não do quadro de Courbet
de modo que despertamos
e eram os telefones as faturas
os recibos da luz a lista do mercado
especialmente era o fútil,
o frágil, transitório,
o banal, o cotidiano
eram os medos as enfermidades
as contas dos bancos
os aniversários dos parentes.

Deixamos a sós
abandonadas as belas adormecidas
de Courbet

a sós
abandonadas no museu
nas reproduções dos livros

Tratava-se só de amor
diga-se, do efêmero
isso que a arte sempre exclui.

*

I love Cristina Peri Rossi

No portal da Amazon
aparece meu nome

ao lado de Michael Jackson
Madonna e George Clooney

vendem camisetas em três tamanhos
(pequena média grande)
para homens mulheres meninos ou meninas

as camisetas brancas
trazem uma inscrição
em letras vermelhas: I love Michael Jackson
I love Madonna
I love George Clooney
I love Cristina Peri Rossi
meu nome é o mais longo
ocupa mais espaço

Me pergunto quem terá tido
a tresloucada ideia de me amar nas camisetas
da Amazon

Gosto apenas de Não chores por mim Argentina
da Madonna
e detesto George Clooney
(Michael Jackson me dá um pouco de pena
teve uma infância difícil, como eu)

Dias mais tarde as camisetas seguem ali
no portal
a quem terá ocorrido
que tanta gente me ama

como não consigo acreditar

compro um par de camisetas I love
Cristina Peri Rossi

— Quem sabe ganhas um pouco de dinheiro —
diz minha amiga — que só com a literatura
não dá para comer
— parece que pode dar para se vestir um pouco
penso

Depois de quinze dias chegam pelo correio
as camisetas I love Cristina Peri Rossi

duas por cinquenta dólares mais dez de envio
Penso que me amar não é tão caro
poderia ser muito pior

Meu advogado diz que é inútil abrir um processo
a Amazon não responde
tem uma resposta robô igual para todos

não sei a quem presentear com as camisetas

Para mim, meu amor fica grande.

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