por Idelber Avelar
Em uma palestra recente dirigida a professores e estudantes da Universidade Federal de Santa Maria, propus a eles que as fortunas críticas recentes de dois escritores brasileiros, Raduan Nassar e Cristóvão Tezza, seriam emblemáticas da forma como o valor literário – a valoração literária sobretudo, ou seja, o ato de valorar em si – responde a uma lógica caracterizada pelo primado da contingência. No caso de Raduan Nassar, não se tratava somente da insólita combinação entre duas obras herméticas, um silêncio civil de trinta e oito anos e uma intervenção pública tão surpreendente como ideologizada em 2016. No processo de reavaliação pelo qual passa Raduan na sua volta às manchetes nos últimos dois anos, dos protestos contra o impeachment de Rousseff aos atos de campanha de Lula, impõe-se um deslocamento na interlocução do autor, que apesar de ser parte constitutiva de um cânone psicanalítico da literatura brasileira contemporânea, nunca havia sido exatamente um autor caro à crítica de esquerda, de cunho social.
A literatura de Cristóvão Tezza ofereceu-se bem mais que a de Raduan a uma crítica de cunho social. Com seus narradores ironicamente próximos da voz do autor, sua lúdica alternância entre exposição e ocultamento da biografia e sua nítida inspiração nas teorias da polifonia de Mikhail Bakhtin, a narrativa de Tezza com efeito se ofereceu para a exegese da crítica social durante bastante tempo. Artigos e teses foram dedicados à obra de Tezza do ponto de vista da metaficção, do dialogismo, da intertextualidade, dos limites entre a obra e a vida, da condição do sujeito na metrópole moderna e de outros temas caros à crítica de cunho social. Em paralelo com essa plasticidade social da obra de ficção está o labor de cronista de Cristóvão Tezza, a partir de 2008 na Gazeta do Povo,de Curitiba, e depois na Folha de S.Paulo, que ocasionalmente toca na política em sentido estrito.
Talvez um papel de marco organizador da prosa de Tezza nos últimos anos caiba à crônica “A confeitaria do Custódio”, publicada na Folha de S.Paulo em 15 de maio de 2016, contemporânea do texto em que Raduan Nassar protestava “contra o golpe” e apresentando uma tese diametralmente oposta à dele. Temos aqui o curioso acidente de que o escritor mais vanguardista e hermético, Raduan, defenda a tese mais simplista: a de que Dilma foi derrubada por um golpe de inconformados com o que ela fez pelos pobres. Antagonicamente, o escritor mais popular e linear na trama trabalha com a hipótese mais multifacetada e cheia de camadas: Dilma cai por uma combinação entre estelionato eleitoral, perda de apoio no meio político, incapacidade de dialogar, trapalhadas na economia e movimentos de autopreservação da classe política ante a Lava Jato. Em todo caso, a pesada crítica de Tezza à retórica do golpe ocasionou reação em redes sociais e entre acadêmicos de esquerda, e nos dois anos seguintes as crônicas de Tezza não voltaram à política. Mas, como em todo grande escritor, a resposta estava na ficção.
A tirania do amor seria apenas mais um relato de um divórcio de um personagem de meia idade em meio a rivalidades edípicas, se não fosse a forma como o romance se deixa atravessar pelas tensões do Brasil pós-Junho. A narração em indireto livre, em que a voz do narrador de terceira pessoa é tingida pela visão de mundo do protagonista, é essencial para a produção do efeito de A tirania do amor. Otávio Espinhosa, 54 anos, acaba de descobrir uma traição da mulher pela leitura de seus emails e está às vésperas de ser despedido na empresa de mercado financeiro em que trabalha desde o fracasso de sua tese de doutorado, intitulada “Os funcionários da coroa” e dedicada à ideia de que “o estamento do funcionalismo público brasileiro, blindado por fortalezas corporativas que unem do gari municipal ao procurador federal, representa a verdadeira classe dominante do país” (p.13). Previsivelmente, a tese é massacrada e seu orientador lhe confessa não ter lido os dois últimos capítulos antes da reprovação da banca. A ideia, para Otávio clara, cristalina, indiscutível de um “sistemático acesso, desde os tempos arcaicos da Coroa até a instauração também arcaica da Nova República, a todas as pequenas, médias e grandes benesses cotidianas do estado seletivo de bem-estar social, dos generosos quinquênios, adicionais, complementações, auxílios e ganhos judiciais em cascata e retroativos, às aposentadorias especiais mais generosas ainda, num nível de privilégios completamente vedado ao resto da população” é desqualificada como “descontextualização despolitizadora” por um membro da banca. Sem o apoio do orientador e sem vislumbrar um contexto em que sua tese pudesse ser aceita, Otávio abandona a carreira acadêmica.
Filho de mãe falecida logo depois de seu nascimento e de um pai estelionatário, tataraneto do Spinoza real, de quem herda uma forma imanentista e libertária de pensar, Otávio traz a singularidade do gênio para a matemática, inutilidade expressa no folclórico cálculo de raízes quadradas exibido desde a infância. Agora empregado como analista de conjuntura econômica em uma administradora de fundos de pensão, a Price & Savings, Otávio vê sua tese sobre o estamento estatal continuar atravessando sua vida, por exemplo nos enfrentamentos edipianos com o filho, adepto da teoria do golpe, acompanhante de ocupações do MTST e dependente do dinheiro do pai para o cartão de crédito estourado. Com o discurso levemente caricato, Daniel é o representante do discurso do militantismo anti-golpe e recorre a expressões levemente anacrônicas como “instituição burguesa”. Como é comum nos romances de Tezza, a narração em indireto livre a partir dos olhos do protagonista inclui uma série de flashbacks e flashforwards de volta ao presente da narração, em uma atividade constante de memória que se ativa através de gatilhos. Ao redor do protagonista cujos olhos são a lente do narrador, circulam também outros discursos, em itálicos, conversas reais ou imaginárias com Otávio: Rachel (sua mulher), Daniel (o filho), Lucila (a filha), Débora (a colega que ele idealiza romanticamente e com quem termina tendo um encontro amoroso ao final), Teresa (a amante com quem Otávio não tem a firmeza e os projetos que Rachel tem com o seu) e, claro, os emails de Rachel ao amante Augusto, onde Otávio confirma não só a condição de traído mas também de desprezado e talvez odiado pela mulher.
A autorreflexividade hesitante de Otávio contrasta com o tom peremptório da mulher, advogada de sucesso, e com o ressentimento teatralizado do filho, que lhe agride com perguntas do tipo “como você se sente dando a alma para este sistema corrupto?” Em consonância com o esquema edipiano, a relação com a filha flui muito mais, como no diálogo de almoço que se segue às perguntas de Lucila: “pai, você ainda não me disse […] o que acha de eu fazer letras (ou história, você prefere?); dois, por que você não lê romances. Ah, e três, afinal, por que não matar o mandarim?” (p.73). Ali Otávio vislumbra a possibilidade de uma outra vida pós-escombros, pós-divórcio e pós-demissão. Mesmo com a filha, no entanto, que é um oásis entre o conflito edípico político com o filho e o desprezo da esposa, o diálogo de Otávio não é senão o de duas inseguranças que se abraçam (p.73). Curiosamente, é quando Lucila lhe traz uma pergunta de Daniel (sobre assassinar banqueiros), que Otávio encontra seu tom mais paternal e professoral em todo o romance: “aqui no Brasil, na verdade, em qualquer país emergente […] o único efeito de matar banqueiros seria um aumento imediato, talvez brutal, da taxa de juros, a queda também violenta da bolsa, a imediata valorização do ouro como ativo financeiro, e uma imensa especulação com o dólar, talvez com a quebra de alguns fundos hedge. Mas acho que nem isso […] Provavelmente, sob a força dos conselhos administrativos, a reposição imediata dos banqueiros e ação da polícia, tudo voltaria ao normal em poucos dias, com a classe média perdendo economias em fundos de renda fixa e alguns espertos e expertos (com x!) ficando mais ricos. O de sempre. É o dinheiro, não a política, que odeia o vácuo” (p.81). As teses de Otávio, anti-climáticas para o jacobinismo de Daniel, passam a marcar também a entrada de Lucila no limiar da vida adulta.
Condição de possibilidade de A tirania do amor é uma hierarquia discursiva em que Otávio aparece como personagem dotado de autorreflexão e complexidade vedada a Rachel, Daniel ou Lucila. Mas essa sofisticação intelectual não lhe serve de nada, e se expressa em uma formação quebrada em fragmentos, dividida entre a inspiração filosófica espinosiana, a tese liberal fracassada, o trabalho “prático” de análise de mercado e o livro de auto-ajuda que termina escrevendo sob o pseudônimo Kelvin Oliva. Como uma espécie de relojoeiro do trabalho intelectual, Otávio é um analista econômico que já não serve, um antecipador de tendências que já não tem lugar em uma realidade atravessada por um novo elemento: a operação Lava Jato. A Lava Jato surge como elemento novo, na medida em que traz a esfera penal para o mundo do mercado financeiro, mas ela não aparece, nem aos olhos do protagonista nem do narrador, como a desinteressada limpeza da política e do mercado que um certo salvacionismo de procuradores sugeriria. Em todo caso, agora é o discurso de Rachel, advogada contratada para defender Leritta, presidente da Price & Savings, e Sálvio, um dos diretores, que é o discurso autorizado, solicitado, valorizado. Junto com a descoberta da traição, do divórcio e da possível demissão, Otávio deve encarar a pergunta da mulher: “Você está envolvido?” (p.156).
A trama de A tirania do amor descreve um arco que vai da decisão de abdicar da vida sexual, no começo do dia, ao encontro amoroso com Débora, a colega e única mulher com quem parece ter genuína afinidade, à noite. O contato com Débora, que vai se desenhando ao longo do dia enquanto se sucedem os flashbacks, acontece por obra do pseudônimo de Otávio, Kelvin Oliva, o autor de A matemática da vida, auto-ajuda que é o duplo paródico, carnavalizado da seriedade e da sizudez da tese de doutorado sobre os estamentos estatais. O primeiro marido de Débora havia chegado um dia com o livro debaixo do braço – o único livro que Mateus jamais lera!– e Débora passaria à curiosidade por conhecer aquele que havia sido o guru de seu ex.
O gênero da auto-ajuda financeira está atravessado pela galhofa, mas esta também ecoa nas respostas de Otávio – em geral imaginadas, em vez de realmente ditas – às convocações do filho para que se “resista ao fascismo”. Aqui o tom é de sobriedade irônica ante a fé escoteira do jacobinismo adolescente: não há ruptura institucional nenhuma, você não está lutando contra os nazistas na Segunda Grande Guerra, é só o Brasil capenga e de merda de sempre em que tudo se mistura com tudo e o país está quebrado (p.70).
No Brasil da polarização política, A tirania do amor é um livro que irrita: crítico da universidade, que aparece como recinto de culto a fórmulas esclerosadas e em patente contradição com a realidade, cético quanto ao discurso salvacionista da Lava Jato, mordaz em seu retrato do mercado financeiro, o romance de Tezza embaralha as identificações esperadas e introduz uma possibilidade de respiro bem no momento de desmoronamento de seu protagonista. Ela termina sendo a melhor resposta para as simplificações redentoras, de direita e de esquerda.