Cruzada em defesa das artes e dos saberes humanísticos

Saberes científicos e saberes humanísticos não podem crescer separadamente porque o conhecimento em geral deve estar a serviço da humanidade e não a humanidade a serviço do conhecimento ou da tecnologia

por Ana Boff de Godoy¹ Rodrigo de Lemos²

Nuccio Ordine, um dos grandes pensadores da nossa atualidade, Professor de Literatura e Filosofia na Universidade da Calábria, esteve recentemente no Brasil, a convite da PUC-PR, para participar do Ciclo de Conferências A Literatura Contra o Ódio e também do III Simpósio Internacional de Estética e Filosofia da Música, promovido pela UFRGS. Apesar da agenda apertada, fez questão de visitar a Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), onde recebeu, em 2017, o título de Professor Honoris Causa. Nessa visita, o premiado autor de A utilidade do inútil (publicado em mais de 30 países), A cabala do asno, Umbral da sombra, Clássicos para a vida e Os homens não são ilhas (os dois últimos ainda não publicados no Brasil) concedeu entrevista aos professores Rodrigo de Lemos e Ana Boff de Godoy, que agora publicamos.

Qual é o valor das artes e dos saberes humanísticos (daquilo que o senhor chama justamente de “inúteis”) especialmente em sociedades como a nossa, que valorizam a utilidade e a imediaticidade das coisas de um ponto de vista estritamente econômico?

Nenhuma palavra tem um significado absoluto: para compreender o sentido de uma palavra, é necessário analisá-la sempre do ponto de vista de quem a usa. Para os governos que escrevem as leis financeiras, “inútil” é tudo aquilo que eles cortam ou escolhem não apoiar economicamente: o ensino, a cultura, a assistência de saúde para os cidadãos, para os doentes graves e para as pessoas com deficiência. Para quem detém o poder econômico e político, é “útil” somente o que produz lucro, quer dizer, o que se traduz em dinheiro. É uma história tão velha quanto o mundo: quem comanda não quer que se eduquem cidadãos livres, capazes de cultivar o próprio senso crítico. As escolas e as universidades formam sempre menos estudantes “heréticos” (capazes de raciocinar contra a corrente e contestar os lugares comuns). Ao contrário: os jovens são criados como frangos de aviário, alimentando-se de verdades impostas por mercados, bancos e governantes, para depois se transformarem em consumidores passivos. De Platão a Ítalo Calvino – filósofos, literatos, cientistas – teceram, ao longo dos séculos, um elogio aos saberes inúteis, quer dizer, daqueles saberes que não produzem lucro, que não produzem ganho monetário e que, então, são injustamente considerados como inúteis em uma sociedade na qual contam somente dinheiro e mercado. Claro que são autores diversos, de época se culturas distintas, mas esses grandes pensadores – do seu ponto de observação particular – recordam-nos sobretudo que os homens precisam exatamente do que é considerado inútil: porque a literatura, a arte, a filosofia, a música, a pesquisa científica de base são necessárias para nutrir o espírito, para fazer-nos melhores, para tornar humana a humanidade. Escrevi um livro com o objetivo de ajudar os leitores a refletir sobre a utilidade do inútil e, naturalmente, também sobre a inutilidade do útil. 

O que é útil pode se transfomar também em instrumento de escravidão? 

Em um contexto planetário dominado por um consumismo voltado a si mesmo, quantas vezes são vendidos produtos e objetos como se fossem verdadeiramente indispensáveis? E também as invenções mais revolucionárias da técnica (pense-se no iphone ou na internet) podem se transformar em formas de escravidão: jovens estudantes que não conseguem desligar o celular durante as aulas (e aqueles que não desligam em um concerto, em um cinema, em um teatro, em uma conferência) se comportam como se estivessem drogados. O instrumento tecnológico é um pharmakon: pode curar e pode matar ao mesmo tempo. Tudo depende da dose, da quantidade. Mas há mais: especialmente na nossa sociedade, em que o aparecer conta mais que o ser, parece normal que o carro de luxo ou o relógio de marca tornem-se expressão do nosso modo de ser. Basta ler “O Mercador de Veneza”, de Shakespeare, para compreender como a exterioridade induz a erro: no reino de Belmonte, a bela Porzia casa-se com aquele que abrir a caixa de chumbo e não a de ouro ou a de prata. Sob a fachada exterior do ouro ou da prata, não há nada; enquanto que, sob a casca humilde de chumbo, Bassanio encontrará o grande tesouro. Trata-se de um topos que, partindo do Banquete, de Platão, atravessará todo o Renascimento, passando por Pico della Mirandola, Erasmo de Roterdã, Rabelais, Torquato Tasso, Giordano Bruno: as aparências enganam. Os verdadeiros tesouros são interiores, não exteriores. A dignidade do homem coincide com os grandes valores: o amor pela liberdade, pela justiça, pelo bem comum, pela tolerância, pela solidariedade humana, por toda forma de pluralismo (político, linguístico, cultural, religioso…). Valores que requerem esforço: sair do restrito perímetro dos egoísmos pessoais para abraçar o universal. Mas, para cultivar esses valores, são necessários aqueles saberes inúteis que nos educam à gratuidade e ao desinteresse, que nos levam a voar alto com as asas do pensamento…

O que o senhor pensa sobre os recentes ataques às faculdades humanísticas e às ciências no Brasil? 

Sobretudo no Brasil, com esta classe incompetente no governo, não se torna fumaça somente a Amazônia, torna-se fumaça também o saber. Penso no recente tweet do Presidente que deu a volta ao mundo em poucas horas: Jair Bolsonaro anunciava que teria apoiado a transferência de fundos das faculdades de filosofia e sociologia às de “veterinária, engenharia e medicina”, para favorecer “um retorno imediato para o contribuinte”. Concordando com o ministro da Educação, Abraham Weintraub, o político ex-paraquedista acrescentava, em uma segunda mensagem, que “o papel do governo é respeitar o dinheiro do contribuinte” e “ensinar a ler, escrever e fazer contas” com vistas a “uma profissão que gera renda às pessoas, bem-estar à família e que melhora, por sua vez, a sociedade”. Uma impressionante série de banalidades e de lugares comuns pomposos que, infelizmente, difundem-se (em silêncio) em vários países do mundo. É trágico que logo no Brasil (onde vários presidentes foram acusados e condenados por corrupção!) a receita para poupar o dinheiro do contribuinte seja a de fechar as faculdades “inúteis” (porque não produzem lucro). Uma escolha que (além de criar estudantes que se inscrevem nas universidades com o único objetivo de ganhar e não para nutrir uma paixão) terminará por revelar-se catastrófica no plano cultural. Como podemos combater a corrupção sem a cultura? Como podemos prender os ladrões do Estado se, desde pequenos, fazemos os jovens acreditarem que a dignidade se mede com base no dinheiro que ganhamos?  

O senhor falou muitas vezes do valor universal da beleza e do cuidado com a natureza. Sustentou que a floresta amazônica é um bem comum que pertence à humanidade como uma obra de arte ou um monumento… 

Certamente. A tese sustentada pelo Presidente Bolsonaro de que a Amazônia pertence ao Brasil é verdadeira e falsa: verdade sob o ponto de vista formal, mas é falsa sob o aspecto universal. O mesmo discurso vale para o Coliseu ou o Partenon: não pertencem somente à Itália e à Grécia, porque são bens da humanidade. Quando fanáticos islâmicos destruíram os monumentos de Palmira, destruíram algo que pertence ao mundo todo. Trata-se de um patrimonium (quer dizer, que ganhamos de herança dos nossos pais) que não tem somente um valor econômico (como Bolsonaro gostaria de nos fazer acreditar!): tem um valor histórico, ético e civil. A Amazônia é um importante pulmão do nosso planeta: destruí-lo significa fazer mal não somente aos brasileiros, mas a todos os cidadãos da Terra. O mesmo discurso vale para a arte: a beleza, como a natureza, não pertence a ninguém em específico, mas é um bem universal. Defender a Amazônia e defender monumentos artísticos é um dever de todos os países e de todos os cidadãos… 

A nossa Modernidade foi marcada por divisões entre saberes científicos e saberes humanísticos e essa dicotomia produz reflexos importantes ainda hoje, como se pode ver, por exemplo, na organização dos currículos escolares e também na estrutura da Universidade. Entretanto, parece que a cada dia estamos vivendo uma espécie de descrédito quanto a ambos saberes. Também as ciências tidas por exatas (que sempre gozaram de prestígio por conta da sua metodologia de análise bem como pelo fato de lidar com dados mensuráveis) são agora duramente criticadas. As vacinas que erradicaram o sarampo não são mais administradas; as provas que sustentam o aquecimento global e a devastação da floresta amazônica, por exemplo, são ignoradas ou, pior ainda, são postas em dúvida. A que o senhor atribui esse fenômeno e quais são as possibilidades futuras?

Escrevi e disse muitas vezes: hoje os humanistas e os cientistas devem combater o mesmo combate contra o utilitarismo e contra a ignorância crescente. Saberes científicos e saberes humanísticos não podem crescer separadamente porque o conhecimento em geral deve estar a serviço da humanidade e não a humanidade a serviço do conhecimento ou da tecnologia (que a cada vez mais parece ser o objetivo da pesquisa!). A velocidade e o lucro estão pondo em risco a autenticidade da busca do saber. Os cientistas são demitidos quando sustentam verdades incômodas ao poder (como aconteceu no Brasil quanto ao desmatamento na Amazônia) e os humanistas desprezados por criticarem os falsos valores do dinheiro e do ganho. As escolas e as universidades são enfraquecidas porque o exercício da crítica deve ser tido sob controle. A única medida é a do dinheiro, enquanto um capitalismo rapaz está destruindo anos de conquistas ligadas aos direitos trabalhistas e aos direitos civis. Mas, e isto é muito grave, estamos confundindo “informação” com “conhecimento”. Ser submerso de notícias não significa ser mais culto. Ao contrário: a internet está cheia de bobagens (do tema da periculosidade das vacinas às teorias que sustentam que a Terra é plana!) e de falsas citações (circulam textos atribuídos a Shakespeare, a Einstein, a Borges e a tantos outros grandes escritores e cientistas que são inventados). Temos que começar pelas escolas e pelas universidades, da formação de novas gerações. Sem instrução crítica e profunda, séria e contra-corrente, será difícil imaginar um futuro próspero para a humanidade… 

¹ Professora de Língua e Cultura italiana na UFCSPA. Mestre em Literatura e Doutora em Análise do Discurso.

² Professor de Língua e Cultura francesa na UFCSPA. Mestre e Doutor em Literatura

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