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“Eu sou como o centro do círculo”
Dante e o amor até a época da Vita Nova
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por Eduardo Henrik Aubert
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De acordo com uma difundidíssima e veneranda narrativa das origens, a lírica amorosa italiana teria nascido na Sicília, por volta de 1230, no ambiente multicultural e plurilíngue da corte de Frederico II. É verdade que, naquele palco, uma série de funcionários cortesãos produziram uma língua literária (o “siciliano ilustre”) para falar exclusivamente de amor, reduzindo, com isso, o âmbito temático do modelo poético que estavam a adaptar, isto é, a lírica provençal, devotada também a temas políticos e morais candentes, assuntos que, no ambiente siciliano, eram exclusividade da língua latina.
Essa narrativa, contudo, deve ser revista no que tange ao postulado de uma primazia temporal absoluta, erro de perspectiva que acaba por impedir uma percepção da efetiva novidade siciliana. Afinal, somos confrontados com os traços de toda uma “tradição submersa” de lírica amorosa peninsular, anteriormente à produção siciliana e em paralelo com ela. Seu mais espetacular espécime é uma canção, dada à luz muito recentemente, no final dos anos 1990, preservada com notação musical e escrita pela mão de um escriba ativo entre 1180 e 1210. Está vazada em língua que aponta para a região centro-setentrional da Itália, conduzindo, assim, também a uma reapreciação da geografia literária daqueles séculos.
Em cinco estrofes de dez eneassílabos, com muitas correspondências pontuais na lírica trobadórica, o autor anônimo de Quando eu stava in le tu’ cathene dirige-se retrospectivamente ao Amor, afirmando ter suportado pacientemente as provações por ele impostas, submetendo-se e atendendo às regras da cortesia, o que, ao final, muito lhe aproveitara, pois, recompensado, encontra-se agora nos braços da amada:
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Eu so quel ke multo sustenea / fin ke deu non plaque cunsilare; / […] / mo son eu condutto in parathisu, / fra [su’] braçe retignuthu presu, / de regnare sempre su confisu / cun quella k’eu per la [av]er muria (“Eu sou aquele que muito suportou, / até quando agradou a Deus [ou “ao deus (do amor)”] me ajudar; / […] / agora sou conduzido ao Paraíso, / entre seus braços sou retido prisioneiro, / de viver estou sempre seguro / com aquela por quem eu morreria para ter”, v. 21-22 e 27-30).
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Se vista à luz desse patrimônio submerso, a lírica amorosa siciliana desponta mais nitidamente em sua efetiva originalidade, não como primeira forma de lírica vernácula na Itália, mas como “primeiro movimento unitário e institucional” da literatura italiana (Gianfranco Folena). Repudiando o concreto e o contingente — tão presentes em Quando eu stava —, os sicilianos cultivaram uma poesia áulica abstrata, que tem no soneto seu veículo preferencial, forma métrica criada justamente nesse contexto, provavelmente por obra de Giacomo da Lentini, dito por antonomásia “o Notário”. Essa forma se prestava perfeitamente a um desenvolvimento arrazoado e escolástico, casado com a partição métrica do poema, em que se vazava o tema amoroso como matéria de especulação e debate.
Não é acaso que, na forma como chega a nós, em grandes cancioneiros produzidos décadas depois, na Toscana, a recolha dos sonetos da escola siciliana se abra com um debate poético (é o gênero da tenzone) entre o Notário e o Abade de Tivoli sobre a natureza do amor — prelúdio e ponto de partida para a mais famosa discussão sobre o mesmo assunto entre o próprio Giacomo da Lentini, Iacopo Mostacci e Piero della Vigna (cujos sonetos foram traduzidos aqui, no Estado da Arte, por Sergio Duarte), assim como para toda uma série de tenzoni anônimas de mesmo tema. A moldagem da tradição poética pelos sicilianos é, pois, fundamental, por permitir que a poesia — pública, dialógica — se estruture como estímulo e meio para uma perquisição gnoseológica, canal apto a sustentar uma reflexão coletiva.
É essa a tradição recolhida e processada conforme a poesia siciliana vai sendo recebida nas regiões central e setentrional da península italiana — e que, necessariamente, vai interagindo com aquelas tradições hoje submersas que depara no caminho. Quando Dante se apresenta ao mundo como poeta do amor — até porque não é outra a matéria da poesia vernácula, no entender do próprio Poeta em sua obra de juventude (VN, XXV, 6) —, está operando no interior dessa fertilíssima tradição poética e de seus desdobramentos. Nas mãos desse poeta, por sua vez em estreita colaboração (dialógica e mesmo polêmica) com seu entorno, o potencial cognoscitivo da poesia amorosa vai se alargando e rendendo novos frutos.
Nesta contribuição, pretendemos explorar os termos em que Dante concebe a temática amorosa, o objeto de meditação central em toda sua produção escrita. Começamos, neste texto, o primeiro de um tríptico, com a concepção de Dante sobre o amor até a época de publicação de sua grande obra de juventude, a Vita Nova; nas próximas intervenções, à luz das reflexões aqui expostas, enfrentaremos as canções posteriores à Vita Nova e, enfim, no último texto desta subsérie, o poema sacro.
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O amor sob o fiel conselho da razão
A Vita Nova, que Dante publicou em algum momento entre 1292 e 1296, é, nos termos do próprio autor, um “livrinho” (libello); a despeito da extensão diminuta, é dotado de grande originalidade. Nele, como sugere o próprio título, Dante pretende dar notícia de uma viragem renovadora em sua vida, associada à experiência amorosa que tem Beatriz (certamente, Beatriz Portinari, nascida em 1266 e falecida em 1290) por seu objeto.
A arquitetura textual do livrinho decorre do arranjo de três tipos de texto: a prosa narrativa, em que vai tecendo um relato autobiográfico sob a perspectiva de uma experiência a um só tempo amorosa e poética; um conjunto de 31 poemas (canções, sonetos e uma balada), escritos, segundo alega, no calor dos eventos, e assim posteriormente recolhidos no libello; enfim, exposições técnicas sobre a construção dos poemas, as divisioni (divisiones, em latim, ou “divisões”), vale dizer, descrições de como a matéria dos poemas está segmentada. Ainda que se possam invocar precedentes distantes (por exemplo, a Vita Nova é um prosimetrum, “prosímetro”, forma antiga que mistura prosa e verso, remontando à sátira menipeia, mas diretamente colhida por Dante, por exemplo, na Consolação da Filosofia de Boécio), essa montagem da obra é inédita e sem dúvida sinalizava já então o aguçado engenho do poeta.
Embora muito certamente a Vita Nova não comportasse originariamente divisões formais em capítulos ou seções, ela obedece a um planejamento estrutural que se declina em três partes.
A primeira (VN, I-XVI) se abre com o primeiro encontro de Dante e Beatriz, quando ele contava nove anos de idade, mas se desenvolve efetivamente entre o segundo encontro, nove anos depois — nove é número chave associado a Beatriz: “esse número foi ela mesma, por analogia” (VN, XXIX, 3) —, quando Beatriz o saudou pela primeira vez, e o momento em que Beatriz passa a lhe negar a saudação, devido à indiscrição do poeta para com outra senhora, que ele fingia amar a fim de esconder aos indiscretos o verdadeiro objeto de seus sentimentos. Da recusa de saudá-lo, decorrem efeitos mortificadores para Dante, que depositava na saudação de Beatriz toda a sua beatitude (com um jogo de palavras entre saluto, saudação, e salute, salvação, acrescentando-se à ambivalência ínsita ao nome de Beatrice, que é, a um só tempo, nome próprio e epíteto, “aquela que beatifica).
A segunda parte (VN, XVII-XXVII) narra a superação do estado de prostração com a descoberta de uma nova matéria poética, a que corresponde uma nova forma de conceber a relação amorosa, segundo um forte imbricamento entre experiência amorosa e experiência poética. Trata-se do stile della loda (“estilo”, ou “poética do louvor”), quando Dante logra desprender sua felicidade da recompensa sinalagmática da amada (o guiderdone, “prêmio, contradom”, da poesia cortesã), consubstanciando-se a satisfação amorosa já e inteiramente no ato desinteressado de louvar a senhora. É com isso que encontra “sua beatitude naquilo que não [lhe] pode faltar” (VN, XVIII, 4).
Prepara-se com isso a terceira parte (VN, XXVIII-XLII), que se inicia bruscamente, deixando uma canção interrompida e sob o signo das Lamentações de Jeremias. Beatriz morreu, evento já variamente adumbrado, de modo em princípio encoberto e depois manifesto. A nova poética permite, contudo, que Dante continue a compor mesmo após a partida física da amada. Não sem riscos de recaída, contudo: passado o primeiro aniversário de seu trespasse, uma jovem senhora (referida como donna gentile) faz Dante crer-se tomado de nova paixão, direcionando-o, assim, no rumo das mesmas perturbações psicofísicas que antecederam a descoberta do stile della loda. Dante é salvo, mais uma vez, pela intervenção de Beatriz, que agora lhe aparece gloriosa em uma visão, suscitando mais algumas composições. Enfim, há uma ulterior, mirabile visione (“visão admirável, extraordinária”, VN, XLII, 1), que Dante não narra, mas que se compromete a revelar no futuro, quando tiver adquirido a preparação requerida para dela tratar como convém e, com isso, dizer de Beatriz o que nunca foi dito de nenhuma outra (VN, XLII, 2).
Como teremos ocasião de constatar nas seções seguintes deste texto e na sequência desta série, esse libello seria decisivo para os ulteriores empreendimentos poéticos de Dante, notadamente em função do diálogo com aquele que, no livro, é denominado seu primo amico (“melhor amigo”), o poeta Guido Cavalcanti (antes de 1259 — 1300), a quem a Vita Nova é expressamente dedicada (“meu primeiro amigo, a quem escrevo isto”, VN, XXX, 3).
Para entender esse percurso, é necessário individuar, desde logo, o centro da mensagem veiculada no libello: a descoberta de um amor plenamente compatível com a razão, perspectiva bastante inovadora diante de uma lírica de matriz cortesã, ocupada antes com o aspecto social da empresa amorosa, com suas muitas regras de “cortesia”, enquadramento em que o amor realizaria sua vocação na satisfação carnal, e não em um estado salvífico de beatitude; antes da satisfação ou na sua impossibilidade, o amor irrealizado constituiria sobretudo fonte de aflição manifesta em toda uma sintomática psicofísica. Conforme assinala Roberto Rea, “a ideia de um amor governado pela razão constitui a chave para compreender as vicissitudes e a verdadeira novidade que Dante vai contar”.
Ao falar em “amor racional”, é preciso entender um pouco e preliminarmente — o problema será tratado com mais propriedade em texto futuro desta série — o que isso quer dizer no final do Duecento. Trata-se especificamente, e em primeiro lugar, de uma forma de conceber o funcionamento psicofísico do sujeito e as alterações produzidas no organismo em decorrência do enamoramento. Entre as grandes novidades do século XIII, constam os desenvolvimentos no campo da chamada “ciência anímica” aristotélica (scientia de anima), a partir da recepção do De anima de Aristóteles, traduzido para o latim no século XII, mas influente sobretudo a partir da década de 1230, com a tradução do comentário de Averróis (1126-1198) para a língua latina.
Encontrando-se com a tradição médica galênica e fundindo-se com ela, a ciência anímica aristotélica entendia as diferentes operações psicofísicas como feixes de capacidades agrupadas, ou potencialidades, chamadas “almas” — a alma vegetativa, a sensitiva e a intelectiva, ou racional (cf. Cv., III, 2, 11-14) —, cuja atuação se processava por meio de agentes invisíveis, minúsculos e mobilíssimos, os corpúsculos chamados “espíritos” da medicina galênica, que, em um sistema circulatório, ou “corrente pneumática”, passando do fígado (sede do espírito natural) ao coração (sede do espírito vital) e então ao cérebro (sede do espírito animal), iam se purificando e se especificando para a realização de cada atividade. Ocorre que o enamoramento era visto como produtor de forte impacto nesse sistema psicofísico, podendo levar ao esgotamento dos espíritos, tornados incapazes de sustentar a vida, a percepção e o raciocínio, e podendo, assim, conduzir até mesmo à morte.
É desse modo que Dante, narrando liminarmente os efeitos do segundo encontro com Beatriz sobre seus espíritos, descreve os efeitos que sobre ele se abateram construindo três insistentes períodos anafóricos para se referir aos diferentes espíritos: In quel punto dico veracemente che lo spirito de la vita, lo qual dimora… (“Naquele instante, digo, em verdade, que o espírito vital, que reside…” , VN, II, 4); In quel punto lo spirito animale, lo qual dimora… (“Naquele instante, o espírito animal, que reside…” , VN, II, 5); In quel punto lo spirito naturale, lo qual dimora… (“Naquele instante, o espírito natural, que reside…”, VN, II, 6). E aqui se engata a novidade, pois, segundo Dante, desde então, ele passou a ser dominado pelo Amor (que ele hipostasia em personagem apenas por efeito literário, conforme explica em interessantíssima digressão metapoética: VN, XXV), mas de forma especial:
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Assim, o apagamento da razão, vale dizer, a incapacidade de operar com o juízo, não é o próprio da experiência amorosa, ainda que ele possa contingentemente afligir o enamorado. No extremo do livro, quando está no cume do envolvimento com a donna gentile, o intenso e desregrado desejo amoroso, de que vem resgatado por Beatriz, vem mesmo caracterizado como “adversário da razão” (avversario de la ragione, VN, XXXIX, 1), mas apenas porque desregrado. Mesmo no extremo do sofrimento amoroso — antes da epifania de que trata a segunda parte do libelo —, quando, após uma visão aflitiva, está definhando, é justamente o “conselho da razão” (VN, IV, 2) que o salva dos maledicentes, orientando sua fala. Para noção semelhante, de que os apetites irascível e concupiscente devem ser “cavalgados pela razão”, cf. Cv., IV, 26, 5-6.
Com isso, Dante não está talvez dizendo apenas que o amor pode ser refreado pela razão. Há uma ideia mais profunda, segundo a qual o amor — o verdadeiro amor — é inerentemente racional. Há um episódio essencial para a comunicação dessa ideia. Após o encontro extremamente aflitivo com Beatriz em que lhe vem negada a salutífera saudação, Dante se recolhe a seu quarto e, após pedir o auxílio de Amor, adormenta-se. Sobrevém-lhe então nova visão do Amor, hipostasiado sob o aspecto de um jovem em alvíssima vestimenta que chora e lhe dirige palavras em latim de difícil entendimento. Quando Dante lhe pergunta por que chora, Amor responde, de forma também enigmática: Ego tanquam centrum circuli, cui simili modo se habent circumferentie partes; tu autem non sic (“Eu [sou] como o centro do círculo, com relação ao qual todas as partes da circunferência têm a mesma medida; tu, contudo, não [és] assim”, VN, XII, 4).
Coube a Roberto Rea individuar a fonte desse passo, ou texto paralelamente derivado de sua fonte última comum, em um sermão do monge cisterciense Helinando de Froidmont († depois de 1229), no qual se comentam famosos versos de Horácio — satirista, como aquele que aparece em If., 4, 89 (Orazio satiro) — atinentes à caracterização do sábio, concebido em termos estoicos, por analogia com a esfera (Hor., Sat., 2.7, 83-88):
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Amor está dizendo a Dante que é racional — equilibrado e, ipso facto, conducente a uma vida equilibrada —, ao passo que o Poeta ainda não obteve esse equilíbrio, e a obscuridade que vê nas palavras de Amor assinala que, nesse ponto, Dante ainda não compreendeu a verdadeira natureza do amor. É notável, assim, que, nos episódios imediatamente subsequentes, Dante continue a sofrer, mesmo com um agravamento que se produz quando desavisadamente encontra Beatriz, acompanhada de diversas senhoras que, como a reforçar a perda da saudação, debocham dele (é o célebre episódio do gabbo, “deboche, zombaria”).
Esse desequilíbrio, sugere Rea, de forma articulada com a solução da crise do libello, advém do fato de que Dante está a buscar sua perfeição fora de si, nos singulares episódios biográficos, ao passo que, como no círculo, o amor deve ter em si mesmo o próprio centro. É essa a conquista essencial da nova poética dantesca, consubstanciada no stile della loda, que tem raiz em um amor desinteressado de correspondência, promotor, antes que destruidor, do equilíbrio psicofísico do sujeito enamorado. Tal descoberta, após uma crise da própria capacidade de produção poética, vem resolvida no episódio que dá origem à grande canção do livro, Donne ch’avete inteletto d’amore, canção que depois será lembrada na Comédia (Pg., 24, 49-51) como produção emblemática do stil novo (cf. nosso texto anterior nesta série sobre o tema). Voltaremos a ela e, mais genericamente, a esse ponto culminante da Vita Nova depois de uma incursão necessária por um item da complexa obra do primo amico de Dante.
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A aflição do amor
A poética cavalcantiana é insistentemente dedicada à “análise e à exposição dos movimentos do ‘eu’”, para retomar fórmula de Roberto Antonelli. Distingue-se, no seio do movimento stilnovista, pela turbilhonante análise interna, dramática e movimentada, das operações psicofísicas do poeta-amante. Com atitude científica, Cavalcanti vai poetando o esgotamento dos espíritos, a paralisia e a morte, frequentemente desbordando no limite em que a própria palavra está (quase) a cessar pelo esgotamento do eu que simultaneamente ama e escreve.
Talvez um dos casos mais expressivos dessa poética seja o soneto epigramático em que são os instrumentos de escrita a dar notícia do poeta moribundo, poema que, ao menos em uma recolha, provavelmente não autoral, era o último da série (Cav., VII, VIII, IV, XXIII, XVII, XL, V, XXI, XVIII, cf. Gorni), como se narrasse o fim da história do enamoramento:
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Esse soneto, então, que poderia funcionar como “epígrafe ou epílogo de todo seu livro de poemas” (De Robertis), admite ser lido como uma metonímia das palavras dolorosamente separadas do poeta (cf. Cav., XXXV, 35), que, dado que ele não mais subsiste para enunciá-las, precisam de abrigo. O fenômeno amoroso é sugerido (v. 8, com seus desdobramentos nos v. 9-11) como origem de um estado de desfazimento psicofísico marteladamente caracterizado no léxico (isbigotite, dolente, dolorosamente, destrutto, de que os três primeiros estão em posição de destaque, no fim dos primeiros três versos), todo ele conducente à “morte” (v. 10: presso a la morte), vocábulo que, aponta Maria Corti, “em acepção cavalcantiana, significa morte do equilíbrio racional e da contemplação da beleza em razão da operação destrutiva dos sentidos”. Poderíamos tecer considerações semelhantes sobre a estrofe isolada Poi che di doglia (Cav., XI), em que o poeta, cujos spiriti son morti (“espíritos estão mortos”, v. 5), frustra a expectativa de terminar a canção, mimetizando, pelo abreviamento da composição, o esgotamento de suas forças — inclusive para poetar.
Ao mundo poético cavalcantiano, subjaz uma concepção do amor bastante estruturada, que se capta parcelarmente em diversos poemas como os referidos, mas que ganha uma dimensão espantosamente sistemática em canção que precisaremos ler por inteiro, por sua centralidade para o percurso poético de Dante. Trata-se da famosíssima Donna me prega, objeto de diversos comentários antigos, já nos princípios do Trecento, por obra de médicos como Dino del Garbo (†1327), para quem Cavalcanti illa quae dicet referet scientifico modo et veridico, tracto ex preceptis scientie naturalis et moralis (“tratará daquelas matérias de que falará de modo verídico e conforme à ciência, extraído dos preceitos da ciência natural e moral”).
Para compreender essa canção (canzone em italiano, do provençal canso), convém esclarecer muito sumariamente no que consiste o gênero métrico em questão. Trata-se da categoria mais elevada no sistema genérico do Duecento italiano, em que é secundada pelo soneto e pela balada, destinando-se aos tratamentos de amplo fôlego. Consiste em composição de estrofes isomorfas (geralmente em número de cinco a sete), que, em sua forma “clássica” (codificada por Dante em DvE, II, 8-13), compõem-se de versos decassílabos, frequentemente entremeados de alguns hexassílabos. O isomorfismo significa que, em cada estrofe, há o mesmo número de versos (geralmente entre dez e quinze), com decassílabos e hexassílabos nas mesmas posições, e o mesmo esquema de rimas, embora sem repetição das terminações entre as estrofes.
Ademais, em cada estrofe, há quase sempre uma nítida divisão em duas partes, a primeira chamada “fronte” (passível de ser subdividida, como frequentemente ocorre, em dois “pés”, isto é dois subgrupos isomorfos), e a segunda, de “sirma” (também apta a se dividir, embora isso se dê com menos frequência, em duas “voltas” isomorfas). Por vezes — e é a recomendação dantesca no De vulgari eloquentia —, o primeiro verso da sirma rima com o último verso da fronte (expediente denominado concatenatio, “concatenção”), e os dois últimos versos da sirma rimam entre si (combinatio, “combinação”). Muitas canções — e é o caso de Donna me prega — têm uma última estrofe mais curta ao final, chamada congedo, ou invio (“despedida”).
Esta canção especificamente, com cinco estrofes formadas por dois pés e duas voltas, além do congedo, é um tour-de-force métrico, como se pode constatar pelos travessões que, no texto abaixo, assinalam as rimas internas do poema, responsáveis por impressionante arquitetônica em razão da qual 52 sílabas das 154 de cada estrofe estão predeterminadas pelo esquema rímico, conforme notou o poeta, crítico e tradutor Ezra Pound (1885-1972), um dos grandes responsáveis pela fortuna poética de Cavalcanti na modernidade. O virtuosismo métrico está imbricadíssimo com a densa articulação lógica do argumento, separando cada passo da argumentação e amarrando-o, em continuidade ou descontinuidade, com os demais, como um poderoso mecanismo de divisão e encadeamento.
Venhamos ao poema:
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A primeira estrofe de Donna me prega, de nítido caráter proemial e sem precisa correspondência entre as unidades métricas e a matéria, articula-se em três segmentos: primeiramente, as razões que levaram o poeta à composição (v. 1-4), em que se enuncia já uma definição preliminar do amor (v. 2-3); na sequência, o público seleto a que se dirige (v. 5-7); enfim, a forma do tratamento, isto é, pela filosofia natural (v. 8-9) e articuladamente, em oito questões (v. 10-13), as quais ocuparão depois as quatro estrofes sucessivas, uma questão na fronte e outra na sirma, com as pequenas modulações apontadas abaixo.
Há um movimento de alusões elocutivas eficiente entre as três partes da primeira estrofe. O início reescreve precedentes poéticos ilustres em que o poeta se dirige a uma figura feminina indeterminada e anuncia uma tratativa amorosa. É o caso da primeira canção do corpus lentiniano: Madonna, dir vi voglio / como l’amor m’ha priso, “Minha senhora, quero vos dizer / como o amor me arrebatou”; não menos importante neste contexto, é de mesmo teor a abertura da peça-chave da Vita Nova: Donne ch’avete intelletto d’amore / io vo’ con voi de la mia donna dire, “Senhoras que tendes intelecção do amor / eu quero convosco falar de minha senhora”). Esse direcionamento inicial se especifica, contudo, na sequência, ao delimitar um público que, assentando-se no princípio elitista do stil novo, segundo o qual toda comunicação pertinente envolve apenas os de “coração nobre” (cor gentile), radicaliza o conceito, dirigindo-se àqueles que têm conhecimento letrado (de onde a repetição canoscente, canoscenza) e, mais que isso, conhecimento específico em matéria de filosofia natural.
Por meio desse reenquadramento de uma tópica stilnovista, Cavalcanti prepara a incorporação de um referente distinto e peculiar; ocupando os últimos cinco versos da estrofe com os pontos (as quaestiones) sobre as quais se vai debruçar na sequência, emula formulação própria da tratadística escolástica, a saber, a divisio preliminar de seu tema. Destarte, uma estrofe que começa evocando célebres precedentes poéticos deságua num enunciado escolástico, preenchido ademais dos termos próprios à aristotélica scientia de anima (vertute, potenza, essenza, movimento). Donna me prega é, com essa imbricação frequentemente tensa entre exposição escolástica e tradição poética, “conjunto orgânico saturado de termos filosóficos com resultado surpreendentemente poético” (Maria Corti).
Deve-se destacar, desde logo, a definição preliminar do tema, nos v. 2-3. Por sua própria modulação (“frequentemente”, sovente), Cavalcanti indicava aqui, como poderemos constatar adiante, uma limitação da matéria: não todo e qualquer amor interessa à canção, mas aquele amor assinalado pela ferocidade e pela intensidade, o que os tratadistas concebiam como o amor hereos (adjetivo de etimologia duvidosa), o amor que é doença e aflição da alma, associado pelo médico Arnaldo de Villanova (†1311) a um “movimento da concupiscência, veementíssimo e irracionalíssimo”.
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Na segunda estrofe, de acordo com a divisio proposta (v. 10), Cavalcanti trata, na fronte, de “onde reside” o amor e, na sirma, de “quem o faz surgir”. Essa estrofe é essencial para a interpretação da sequência da canção, de acordo com a ideia central de que o amor, ou, compreendida a limitação da matéria acima destacada, o amor aflitivo, é algo que se passa naquele plano do organismo humano que, de acordo com a ciência aristotélica, denomina-se “alma sensitiva”, a qual seria, para certa vertente do aristotelismo, inteiramente apartada do plano racional, ou da “alma intelectiva”.
O amor reside, então, na alma sensitiva, aquele conjunto de operações que, segundo se explicará mais adiante (v. 29-31) constitui a perfeição (a completude) humana, declaração em que se vê sinal de que Cavalcanti aderiria à interpretação averroísta do De anima de Aristóteles, de acordo com a qual haveria duas partes da alma humana individual, a pars vegetativa (“alma vegetativa”) e a pars sensitiva (“alma sensitiva”), ao passo que a pars rationalis, ou intellectualis (“alma racional”) seria coletiva, imutável e eterna (este último predicado especificamente averroísta), ontologicamente separada da existência individual. As faculdades superiores da alma sensitiva individual se comunicariam, contudo, com a alma racional coletiva por meio de uma continuatio operada pelos espíritos, que fluiriam entre uma e outra.
O processo de enamoramento tem início, como na unanimidade dos tratadistas e da lírica, com a visão do objeto real (v. 21; na célebre definição do influente tratadista André Capelão, no século XII, “o amor é uma paixão inata que procede da visão [procedens ex visione] e da desmedida cogitação do sexo oposto”). A partir daí, segundo Cavalcanti, a apreensão visual (operada, naturalmente, pelos espíritos da visão, onipresentes em seu corpus lírico) como que se bifurca para uma dupla fixação: de um lado, tem “sede e morada” no “intelecto possível”, isto é, na alma racional apartada do corpo individual, em estado de potência; de outro, “reside” “naquela parte onde está a memória”, isto é, na alma sensitiva (de que a memória, juntamente com a fantasia, ou imaginação, e a cogitação, ou estimativa, constitui, pela atuação dos espíritos animais, uma das operações interiores).
Como Cavalcanti explica (v. 24-28), na alma racional, ocorre apenas contemplação (consideranza), ou melhor, pode haver apenas contemplação, desde que haja passagem do “intelecto possível” para o “intelecto atual”, problema em tudo alheio à canção, pois não é assunto relativo ao amor hereos. É na alma sensitiva que, naquelas pessoas que sofrem um influxo de Marte — segundo a difundidíssima crença medieval no impacto dos astros sobre a vida humana —, planeta que comunica uma paixão irascível, voltada à conquista e ao domínio dos objetos de desejo, a forma vista passa a atuar negativamente. Passando, pela visão, de potência a ato, as operações do sujeito amante desbordam, em sujeito com tal disposição irascível, em um apetite desmedido (“[uma] desmedida cogitação […] acima de tudo deseja obter os amplexos do outro”, sempre segundo Capelão) por aquela figura fantasmática que se instalou em sua memória.
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A terceira estrofe segue à risca o programa da divisio (v. 11), tratando, na fronte, da “virtude” (que pode significar aqui o estado de integridade operacional dos processos psicofísicos) de que procede o amor (v. 29-34) e, na sirma, de sua potência, vale dizer, de seus efeitos (v. 35-42). As partes estão, contudo, mais articuladas do que pode parecer à primeira vista. Afinal, Cavalcanti principia por reformular, ou resumir, no primeiro pé (v. 29-31), o núcleo da estrofe anterior, vale dizer, a ideia de que a paixão de que trata é operação da alma sensitiva, e não da racional. Curiosamente, é procedimento recorrente nas canções dantescas essa retomada da segunda estrofe nos primeiros versos da terceira (cf., por exemplo, Donne ch’avete, v. 29).
Na sequência, no segundo pé, já vem anunciada a ideia que na verdade constitui o principal efeito da paixão amorosa, a saber, o impedimento da razão; em outros termos, a perturbação da alma sensitiva é de tal dimensão, que corta a continuatio entre alma sensitiva e alma racional e, assim, impede o contato com o “bem perfeito” (v. 39). Certamente, essa expressão é mais uma remissão aos textos fundamentais do aristotelismo; segundo a Ética a Nicômaco, a realização perfeita, o “bem último” (??????? ??????) da natureza humana é viver segundo a razão —, e a filosofia, assim, o empreendimento, poder-se-ia dizer, mais nobre da alma racional. De todo modo, não poderia estar mais bem caracterizado o antípoda do amor inerentemente racional e equilibrado que Dante descobre na Vita Nova.
O último verso levanta um problema de interpretação, na medida em que o objeto do verbo “esquecer” (oblia) pode ser tanto o amor como o perfeito bem. No primeiro caso, haveria um contradiscurso no interior da canção, coerente com a limitação das negatividades ao amor hereos, e, como veremos, compatível ainda com o conteúdo da quinta estrofe; no segundo, Cavalcanti estaria a dizer que não apenas o amor, mas outras causas que levam à negligência do perfeito bem são igualmente propensas a produzir o resultado da morte — provavelmente em sentido figurado, conforme destacamos acima para o soneto Noi siàn le triste penne.
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Na quarta estrofe, sempre seguindo a divisio proemial (v. 12), vêm tratados, no primeiro pé, a “essência” do amor (v. 43-45) e, no segundo pé e na sirma, “cada movimento seu” (v. 46-56). Naturalmente, já terá ficado evidente que o efeito de contenção da matéria em seus pontos previstos do texto é contraditado pela interdependência do tratamento do amor aflitivo entre as estrofes, o que permite mesmo sugerir que a poesia vá entrando na entrelinha do tratamento argumentativo, fosse já pela frustração da expectativa de contenção a cada retomada temática.
Assim, o amor passional, que já foi preliminarmente definido nos v. 2-3, e então subsequentemente nos v. 19-20, depois negativamente no v. 29 e, enfim, indiretamente, pela dimensão de seus efeitos, nos v. 35 e seguintes, vem agora definido diretamente como um apetite (voler) que extravasa a medida natural (misura), noção que aqui identifica uma moderação, ou um equilíbrio, regida e garantida pela razão (GDLI, s.v., 12), noção importante porque novamente não implica a condenação do apetite, mas do apetite desregrado.
Anunciando a integração entre fronte e sirma pela repetição de move no início do segundo pé (v. 46) e no segundo verso da sirma (v. 50), com poliptoto enfim no v. 54 (mova), Cavalcanti identifica primeiramente os efeitos externos das perturbações da alma sensitiva no amante (empalidecimento, choro, etc.), como fartamente exemplificado em toda sua lírica, mas muito mais amplamente na tratadística e na lírica amorosa medieval como um todo, a exemplo da primeira parte da Vita Nova, que põe em cena, para enfim superá-la, aquela concepção do amor, conforme ainda veremos em mais detalhe.
Na sequência, Cavalcanti descreve os movimentos internos, de que os suspiros são também o extremo sinal exterior (como vimos também em Noi siàn le triste penne), movidos por um apetite identificado à ira (a referendar o sentido da referência a Marte na segunda estrofe), todo voltado à perseguição de uma imagem interna (aquela que ficara impressa na memória, não o objeto real) e, justamente por ser interna, paralisante: é como se, na perseguição do objeto de desejo, o amante estivesse preso na própria mente, em que, naturalmente, só pode estar condenado à insatisfação.
É a condição de “estátua de latão” (statua d’ottono) vivida pelo amante exânime no símile de Guinizelli (cf. o soneto Lo vostro bel saluto e ’l gentil sguardo, v 12, que traduzimos e comentamos anteriormente nesta série), reelaborada já por Cavalcanti, com sua típica condensação metafórica dos símiles guinizellianos, em um soneto: “Eu me porto como quem está sem vida, / que se manifesta a quem o observa, ser / feito de cobre ou de pedra ou de madeira, / que seja movido apenas por artifício” (Tu m’hai sì pena di dolor la mente, Rime, VIII, v. 9-12).
Note-se, ainda, no que tange às recorrências poéticas, com frase começada em meio de verso, justamente na junção entre fronte e sirma (v. 48-49), a declaração, já guinizelliana, da conaturalidade entre amor (e, neste caso, amor aflitivo) e nobreza de ânimo (cf. a próxima seção deste texto), aqui identificada à paixão irascível, em uma conexão bastante própria, mas coerente com a autoimagem promovida por Cavalcanti em seu corpus lírico.
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Enfim, na quinta estrofe, são tratados os dois últimos pontos da divisio (v. 13-14), a saber, na fronte, o “prazer” do amor (v. 57-62) e, na sirma, a sua visibilidade (v. 63-68); contudo, os dois últimos versos (v. 69-70) são destinados a uma declaração com elocução inteiramente alterada, em que o próprio poeta se propõe testemunha da veracidade do que diz, recorrendo a fórmulas de forte ressonância jurídica (for d’ogne fraude, degno in fede). Traindo, assim, a expectativa da mera continuidade discursiva da matéria da sirma, que fora mesmo ampliada pela anáfora (For di, For d’), os dois últimos versos remetem ao conteúdo da fronte, a constituir destarte uma estrutura de anel, destacando ponto central da mensagem do poema.
A despeito de leituras segundo as quais, à luz do resto do poema, não se deveria admitir alguma positividade do amor (Tonelli), a estrofe trata efetivamente da correspondência do sentimento amoroso, que é a única real recompensa (merto, mercede) do amor. A mercede é a válvula de escape que impede a ocorrência das metamorfoses negativas que podem conduzir à morte. Nota Cavalcanti que apenas é a tal ponto prazeroso que mereça a denominação “amor” (v. 13), quando correspondido ainda por senhoras de alta condição, capazes de infundir o receio da frustração do desejo do amante, ao contrário das mulheres de baixa extração, incapazes de incutir tal temor (porque, subentende-se, podem ser tomadas à força). Há, assim — e é a reviravolta inesperada do discurso —, meio para obter satisfação em presença do amor passional, mas se trata de uma satisfação puramente física, consubstanciada na realização do ato amoroso. Nada tem que ver com a racionalidade.
A invisibilidade do amor, a última quaestio, não levanta maiores dificuldades porque já fora anunciada pela primeira definição preliminar (v. 2-3); afinal, como acidente, amor não é substância que possa ser vista. Sua visibilidade é indiciária, como já esclareceu suficientemente a quarta estrofe, ao tratar dos sinais externos da paixão amorosa.
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O congedo expressa clara consciência da destreza do tratamento poético (adornata) e filosófico (ragione) dispensado por Cavalcanti à sua canção. Interpelando-a diretamente, o poeta a lança ao público — gesto tópico —, repisando, em uma terceira oportunidade, a seleção da audiência, à exclusão, agora explícita, dos demais ouvintes potenciais, cuja opinião não importa. A construção anelar repete-se aqui, portanto, já que a tópica elitista fora responsável pela viragem retórica da estrofe proemial acima caracterizada.
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Poesia dialógica no Duecento
Diante da noção pós-romântica de lírica, segundo a qual o “eu” falaria de si como expressão confessional, isto é, como extravasamento de subjetividade, e na qual, correspondentemente, o leitorado é uma eventualidade da recepção a que a criação poética permanece infensa, a leitura dos poetas líricos medievais, que também falam de seus sentimentos, convoca compreensão em tudo diversa. Neles, o texto poético é essencialmente dialógico, isto é, pressupõe e interpela o seu leitorado, formado já de leitores primários amiúde citados e intimados a um debate, já de um leitorado secundário, tendencialmente universal, que o texto pretende efetivamente atingir e cujo horizonte de leitura, por isso mesmo, molda sua feitura.
A produção poética é, assim, nesse contexto, um veículo para debater o mundo, um “instrumento de juízo sobre a realidade”, na expressão de Claudio Giunta, adotando atitude “exortativa, ostensiva, orientada à discussão e ao arrazoamento, não à confissão”. Recuperar essa dimensão da poesia é desfazer o engano de atitudes críticas que, buscando fugir ao anacronismo do paradigma da lírica confessional, conceberam a experiência poética medieval como um jogo compromissado apenas com os próprios textos, imaginando uma produção toda voltada seja ao culto da sutileza alusiva (como se o hipertexto se esgotasse na manipulação erudita de determinados hipotextos), seja ao refazimento perene de um código (reduzindo-se, assim, a uma infindável recombinação de convenções).
Ora, os fenômenos da intertextualidade, a ligar os textos entre si, e da chamada “poesia formal”, a ligar cada texto a um código de que é atualização toda por ele condicionada, devem antes ser vistos em perspectiva funcionalizada, na medida em que, nesse contexto, servem ao propósito de sustentar um sistema de comunicação poética (sistema, isto é, que se vale da poesia para falar sobre o mundo), visando a comunicar uma mensagem e a convencer os interlocutores de seu acerto. A poesia assume, assim, uma posição grave, embora não necessariamente sisuda, de intervenção no debate com o fito de impactar concepções e condutas.
Sob esse panorama, não é trivial constatar que a crise e a superação da crise na Vita Nova, antes e depois da epifania que se consubstancia na composição de Donne ch’avete, são eventos a um só tempo e inextricavelmente existenciais e poéticos, em que determinada forma de estar no mundo vem exposta em sua cabal inanidade, devendo ser suplantada por outra atitude perante a vida e a poesia. Nesse sentido, a mensagem da Vita Nova revela uma profunda dimensão moral, com pretensão de trazer à luz uma verdade fundamental sobre a realidade que deve tocar seu leitorado e dirigir sua conduta. O amor, inerentemente racional, não está fadado a triunfar de modo indiferente às atitudes do enamorado; as condutas devem ser tais, que permitam que ele seja assim apreendido e vivenciado.
A crise poética e existencial dantesca, nesse cenário, pode ser caracterizada como uma “crise cavalcantiana”, vale dizer, crise de um modelo de existência — metonimicamente significado, poder-se-ia dizer, pela atitude em face da relação amorosa — e de um modelo de poética a ele conexo. A intensidade crescente da alusão aos poemas de Cavalcanti conforme a crise avança é nítido sinal disso. Em um primeiro momento, após a negação da saudação por Beatriz, a primeira composição poética de Dante, buscando reconquistar a boa-vontade da amada, é significativamente uma balada, a única da Vita Nova, gênero métrico privilegiado por Cavalcanti, a promover “uma espécie de anúncio da fase mais decididamente cavalcantiana do libelo” (Donato Pirovano). A ela, segue-se um soneto em que pensamentos contrastantes se opõem na mente de Dante, dificultando a definição de uma matéria poética (ond’io non so da qual matera prenda, VN, XIII, 9), isto é, montando um curto-circuito para a palavra poética.
Em um segundo momento — e são as próximas composições recolhidas no libello —, após o episódio da zombaria, a interpelação da poética cavalcantiana atinge o paroxismo, com três sonetos que constituem “a seção mais intensamente cavalcantiana do libelo” (Roberto Rea). Os espíritos amedrontados, o esgotamento e a morte vêm vazados em um tecido de rebatidos calques tomados à produção de Cavalcanti. De forma exemplificativa, é o que podemos constatar ao colocar em paralelo o derradeiro soneto da tríade dantesca com alguns passos cavalcantianos de que a dicção poética dantesca é aqui devedora — mas nela empenhada, antes que mediante citações pontuais de passos determinados, por uma presença maciça da maniera de Cavalcanti:
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Coerentemente, o primeiro terceto, sem ecos cavalcantianos evidentes, é justamente o depositário de uma esperança de salvação — logo frustrada — alheia ao horizonte do primo amico.
Se a crise é, assim, cavalcantiana, sua superação é decidida e declaradamente guinizelliana, isto é, construída sob o signo da produção poética do poeta bolonhês Guido Guinizelli (†c. 1276), a quem Dante atribui uma paternidade decisiva para os poetas do stil novo (cf. Pg., 26, 97-99 e 112-114, e nosso texto anterior nesta série). Logo na sequência do episódio epifânico e decisivo centrado em Donne ch’avete, Dante, interpelado sobre a natureza do amor por um amigo que ouvira a canção, responde-lhe com um soneto agora infundido do sopro de Guinizelli:
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O primeiro quarteto está tão moldado pela abertura da principal canção de Guinizelli, Al cor gentil rempaira sempre amore, que subitamente remete à autoridade do “poema” (dittare) do “sábio” (saggio) Guinizelli. Reformulando aquele texto, Dante alça a conaturalidade entre “amor” e “coração nobre” afirmada por Guinizelli (“não criou ao amor antes que ao nobre coração / nem ao gentil coração antes que ao amor a natureza”, Rime, IV, 3-4), a uma identidade (v. 1). Vale-se então da estrutura comparativa (così… com’…) que provê a inervação da canção guinizelliana (são três símiles só na primeira estrofe, em meros dez versos, e dez no total, nas cinco primeiras estrofes), para introduzir o centro de sua própria mensagem, a saber, a conaturalidade entre amor e razão (v. 3-4).
Nesse diálogo com Guinizelli, a quem toma a contraposição entre amor em potência (v. 5-8) e amor em ato (v. 9-14), lá objeto de símiles elaborados, Dante vai entretecendo com o texto de seu antecessor o núcleo de sua epifania, deslocando, por isso, o campo semântico guinizelliano — que contrapõe a pessoa apta ao amor (de coração nobre, cor gentile) àquela incapaz de experimentá-lo (porque vil, vile) —, para o terreno que está desbravando: destaca, assim, a “senhora sábia” (saggia donna, v. 9) — aquela que atua sob o fiel conselho da razão, ao que parece — e o “homem de valor” (omo valente, v. 14).
Embora a crítica tenha identificado, nesse ponto da Vita Nova, diversos outros nexos com a produção de Guinizelli para além daqueles ostensivamente exibidos por Dante, parece-nos que a relevância da mensagem que Dante estava colhendo a Guinizelli seja de ainda maior monta. É o que pretendemos demonstrar na sequência, ainda que muito condensadamente. Para tanto, precisamos situar mais minutamente o momento capital em que irrompe Donne ch’avete.
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Depois da crise poética, sabendo precisar de matera nuova e più nobile che la passata (“matéria nova e mais elevada que a anterior”, VN, XVII, 1), Dante se depara com algumas senhoras, ausente Beatriz, para seu sossego. Vem interpelado, então, por uma delas, que lhe pergunta qual a finalidade do amor que nutre, já que não consegue suportar a presença da senhora sem sofrer um total esgotamento psicofísico. É o começo da epifania do Poeta, o qual responde que, se outrora o fim do amor fora a saudação de Beatriz (ed in quello dimorava la beatitudine, ché era fine di tutti li miei desiderii, “e nela repousava a beatitude, que era o fim de todos os meus desejos”, VN, XVIII, 4), desde que a perdeu, sua beatitude foi deslocada, por intervenção providencial de Amor, para quello che non mi puote venire meno (“aquilo que não me pode faltar”, VN, XVIII, 4).
Mas onde estaria então essa beatitude — isto é, o que é “aquilo que não lhe pode faltar”? —, pergunta a senhora, a que Dante responde com a enunciação capital da poética della loda (que é, insistamos, elemento de todo um modo de ser no mundo): in quelle parole che lodano la donna mia (“naquelas palavras que louvam minha senhora”, VN, XVIII, 6). Confrontado com a incoerência entre o que afirmava agora e os poemas que compusera, Dante se põe a pensar longamente e enfim enuncia para si mesmo que propuosi di prendere per matera del mio parlare sempre mai quello che fosse loda di questa gentilissima (“propus tomar por matéria de minha fala [poética] sempre aquilo que fosse louvor daquela nobilíssima”, VN, XVIII, 9).
Não escapará ao leitor atento que a ocasião da descoberta é um diálogo entre um questionador e um respondente, que vai descobrindo a verdade de que já era portador em razão das perguntas que lhe são dirigidas. É, assim, o modelo do diálogo filosófico antigo que, significativamente, preside à epifania do amor racional.
Após alguma hesitação diante do elevadíssimo propósito, ponderando como prosseguir, veio-lhe à língua, quasi come per se stesso mossa (“como que movida por si mesma”, VN, XIX, 2), o primeiro verso, Donne ch’avete intelletto d’amore, com que foi se desenrolando a canção — também aqui com capital sinalização métrica, pois, assim como o momento cavalcantiano fora assinalado pela irrupção, até então inédita no libelo, de uma balada, nesse ponto de viragem, que constitui o centro mesmo da obra, surge a primeira canção da Vita Nova.
A estrutura de Donne ch’avete, com cinco estrofes de 14 decassílabos cada, vem destrinçada pelo próprio Dante na especialmente minuciosa divisione que a ela se segue (VN, XIX, 15-22). Nas três estrofes centrais, já que a primeira serve de proêmio e a última de congedo, o Poeta trata das virtudes de Beatriz, isto é, da nobreza de sua alma e da beleza de seu corpo. Embora um ou outro calque ao cancioneiro de Cavalcanti possa ser identificado, o procedimento é pontual e infenso à absorção da mensagem cavalcantiana: e.g., v. 6: Amor sí dolce mi si fa sentire ? questi è colui che mi fa sentire (Cav., XIX, 9); v. 60 [sobre a canção]: giovane e piana ? [sobre uma balada] va’ tu, leggera e piana (Cav., XXXV, 3).
É inteiramente distinta a apropriação — maciça, profunda, estruturante — de Guinizelli nessa canção, mormente de um hipotexto fundamental, a saber, o soneto Io vo’ del ver (que traduzimos em intervenção anterior nesta série). Esse texto se faz presente já desde a declaração da matéria na abertura da canção dantesca: v. 2-3: io vo’ con voi de la mia donna dire / non perch’io creda sua lauda finire ? io vo’ del ver la mia donna laudare (Guin., X, 1), em que se notará, para além dos empréstimos lexicais, modificados ou não, a significativa reelaboração da aliteração em /v/: vo’ con voi ? vo’ del ver.
Ao adentrar a matéria da nobreza da alma de Beatriz, que ocupa toda a terceira estrofe de Donne ch’avete, as remissões formam um tecido compacto: v. 30: or vòi di sua virtú farvi sapere ? ancor ve dirò c’ha maggior vertute (Guin., X, v. 13); v. 32: vada con lei, che quando va per via ? passa per via adorna, e sí gentile (Guin., X, v. 9); v. 33-34: gitta nei cor villani Amore un gelo, / per che ogne lor pensero agghiaccia e pere ? e non le pò apressare om che sia vile (Guin., X, v. 12); v. 39-40: ché li avvien ciò che li dona salute, / e sí l’umilia, ch’ogni offesa obblia ? ch’abassa orgoglio a cui dona salute (Guin., X, v. 12); v. 41-42: ancor l’ha Dio per maggior grazia dato / che non pò mal finir chi l’ha parlato ? ancor ve dirò c’ha maggior vertute: / null’om pò mal pensar fin che la vede (Guin., X, 13-14). Não se trata, à evidência, de empréstimos pontuais, mas de espécie de reescrita do soneto para os fins de estruturar estrofe capital, em que se pode dizer começar a loda de Beatriz propriamente dita (v. 30: “agora quero informar-vos a respeito de sua virtude”).
Parece, contudo, que, conformemente à citação da canção guinizelliana Al cor gentil no momento imediatamente posterior do libello, quando Dante trata de fundamentar sua compreensão do amor, seja efetivamente Al cor gentil o hipotexto decisivo de Donne ch’avete. Na segunda estrofe da canção dantesca, narra-se uma cena no Céu: um anjo se volta a Deus dando notícia da maravilha que é essa senhora na Terra, ao passo que o Céu clama por tê-la logo. Ora, é precisamente com um surpreendente diálogo no Céu, desta feita entre o poeta já morto e Deus, que Guinizelli terminara Al cor gentil. O modelo guinizelliano tem, assim, tal impacto, que conduz Dante a atribuir uma fala a Deus dirigindo-se aos celícolas, algo que o Poeta não realizaria em nenhuma outra parte de sua obra, nem mesmo no Paradiso.
O sentido da apropriação dantesca é, aqui, nitidamente, o de superação, ou avançamento, de uma ousadia. Com efeito, em Al cor gentil, Guinizelli ousava, como derradeira comparação na extensa série dos símiles propostos, comparar sua senhora a Deus, certamente respondendo desafiadoramente à crítica que lhe fora dirigida pelo poeta Guittone d’Arezzo († 1294), segundo a qual, em ao menos dois sonetos, Guinizelli indevidamente equiparara a senhora a matérias mais baixas que ela, depreciando com isso o seu valor. É assim que, assumindo seu atrevimento, na última estrofe de Al cor gentil, Guinizelli coloca o poeta face a face com Deus, que o repreende: “Atravessaste os céus e enfim a Mim chegaste / e Me ofereceste como termo de comparação a um amor profano (in vano amor): / ao passo que a Mim [apenas] convêm os louvores (le laude) / e à Rainha do digno Reino / pela qual se desfaz todo engano” (Guin., IV, 53-57). Ora, na reescrita dantesca, é o próprio Céu que pede imediatamente a presença daquela que é la speranza de’ beati (“a esperança dos beatos”, v. 28) e que está a louvá-la, declinando suas virtudes ao Criador: Madonna è disïata in sommo cielo (“Minha senhora é desejada no mais alto céu”, v. 29), resume Dante na transição para a terceira estrofe.
Constatada, assim, a presença estruturante de Al cor gentil em Donne ch’avete, pensamos que o fulcro da relevância de Al cor gentil para a epifania dantesca deva ser localizado mais precisamente na quarta estrofe da grande canção de Guinizelli. Veja-se:
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Note-se o eco entre o primeiro verso dessa estrofe (Spende ’n la ’ntelligenzïa del cielo) e o primeiro verso da correspondente segunda estrofe de Donne ch’avete (v. 15: Angelo clama in divino intelletto), onde não apenas o sintagma final do verso dantesco é calque do texto de Guinizelli — ambos, ademais, sintagmas preposicionais iniciados por in —, mas ainda a abertura sem conectivo e com verbo no presente, como a subitamente abrir a cortina do palco celeste, tudo denuncia a forte compenetração da concepção dantesca por sua fonte.
Há bastante discordância, entretanto, sobre como se devem entender precisamente os versos 47-50, que são, a nosso ver, o ponto nevrálgico desse diálogo. Vamos ao contexto imediatamente antecedente, nos versos 41-46: Deus resplandece nos anjos (“a inteligência celeste”, antonomásia derivada do discurso teológico), que, reconhecendo seu criador no Empíreo (a sede divina sita para além das esferas celestes do sistema ptolomaico), obedecem a Ele, isto é, põem-se a mover os céus (pois cada céu estaria em movimento, animado pela operação de uma dentre nove ordens angélicas, como no Paraíso de Dante); imediatamente, e ipso facto, vale dizer, com o mero ato de realizar a vontade divina, os anjos encontram sua plena felicidade, ou, literalmente, sua plenitude santa (beato compimento). Assim desenhado o termo de comparação (secundum comparatum), trata-se, com os versos seguintes, de explicitar a relação que entretece com o objeto comparado (primum comparandum).
A evidenciar a dificuldade da leitura, examinem-se algumas das paráfrases propostas para os v. 47-50, todas por eminentes especialistas: “assim, em verdade […], a bela senhora, uma vez que resplandece aos olhos de seu nobre fiel […], deveria comunicar(-lhe) um tal desejo, que ele nunca mais deixasse de obedecer a ela” (Contini); “do mesmo modo, a dizer a verdade, a bela senhora deveria conceder sua graça amorosa (que corresponde ao beato compimento do v. 46), imediatamente quando resplandece nos olhos de seu nobre amante um desejo, que não se afaste mais de uma absoluta obediência a ela” (Pirovano); “não diversamente, a bela senhora, se resplandece nos olhos de um homem nobre, suscita nele um tal desejo, que nunca deixa de obedecer a ela” (Inglese). Mais ou menos tudo está em questão aqui: qual é o objeto direto de dar (v. 47), qual é o valor semântico de poi che (v. 48), qual é o sujeito de splende (v. 48)?
Penso que uma meditação atenta desses versos conduza a outra leitura, que podemos parafrasear como segue: da mesma forma como os anjos, ao volver os céus, obedecendo a Deus, imediatamente obtêm d’Ele uma felicidade completa, assim também o enamorado de nobre coração deve (dovria) [o condicional em -ía, herdado da língua áulica siciliana e da lírica toscana dela dependente (Rohlfs, §§ 593-594), tem aqui sentido de potencialidade, não de irrealidade; cf. os casos análogos em Guinizelli: II.25, II.27, II.28, V. 9-10, VII.11, XVI.12-14] obter da bela senhora [empregando, para o primum comparatum, estrutura inversa àquela desenhada em torno de consegue, já que aqui é a senhora que dá (dar)] uma felicidade igualmente completa, ou uma plenitude igualmente beata [complemento elíptico no segundo paralelo, pois idêntico, constituindo, assim, o elemento central do tertium comparationis], tão logo [poi che introduz uma subordinada temporal que ecoa o sentido de al primero no secundum comparandum] uma vontade de sempre obedecer a ela resplandece nos olhos do enamorado [talento é sujeito de splende nos v. 48-49, como Deo crïator é sujeito de splende no v. 41], isto é, tão logo ocorre o enamoramento.
Assim compreendido o sentido da comparação, o núcleo da mensagem de Guinizelli é que o enamorado deve estar plenamente realizado tão logo é tocado pelo sentimento amoroso (referido metonimicamente pela vontade de obedecer, que vale pela sujeição à senhora), e não permanecer na expectativa de uma incerta e incontrolável satisfação física do amor. Aqui está, portanto, a chave para um amor que não espera recompensa e é, mesmo assim, inteiramente feliz, um amor racional, depurado do apetite da concupiscência, que non puote venir meno. Em vez de mover os céus, o nobre enamorado contempla e louva a senhora — afinal, na última estrofe de Al cor gentil, Deus repreendera o poeta justamente porque, em princípio, só Ele e Nossa Senhora deveriam ser objetos de louvor. Nesse sentido, uma poetica della loda está ao menos in nuce em Guinizelli.
Não é, portanto, exagero afirmar que Dante recupera a Guinizelli a poetica della loda, recolhendo a justificativa fundamental dessa poética em Al cor gentil e um exemplo de sua realização em Io vo’ dal ver. Evidentemente, essa poética ganha dinâmica própria em Dante, com a nota distintiva conferida pelo problema da racionalidade, conforme já constatamos. Com isso, de todo modo, o riquíssimo tecido intertextual de Donne ch’avete e, mais genericamente, da Vita Nova, vem claramente funcionalizado para estruturar uma mensagem epitomada na “passagem de Cavalcanti a Guinizelli”, com as subsequentes elaborações de sentido atinentes às especificidades do que Dante pretende comunicar com o libelo.
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A Vita Nova e Donna me prega
Diante dessa dinâmica direcionada das apropriações dos dois Guidi na Vita Nova, contrapondo conspicuamente o segmento anterior a Donne ch’avete (e mais genericamente à descoberta da poesia della loda) àquele que se segue à canção, estamos em condição de melhor entender a intertextualidade forte que se pode constatar entre a Vita Nova e a já analisada canção cavalcantiana Donna me prega. O caso em tela, o “dossiê das relações entre a Vita Nova e Donna me prega”, como poderíamos chamá-lo, é episódio à parte no dialogismo da lírica do Duecento, diante de relações textuais estreitas — “uma correspondência formal extensa e isomorfa”, em expressão de Maria Corti —, tornadas mesmo incontornáveis em face do amplo intercâmbio poético entre os autores, notadamente da já referida dedicatória do libelo dantesco ao primo amico e da fortuna recíproca de cada poeta na obra supérstite de seu companheiro.
Poder-se-iam colher referências cruzadas um pouco por todo o libelo, de que oferecemos liminarmente dois exemplos inequívocos, o primeiro significativamente entre o incipit da Vita Nova e o início da segunda estrofe de Donna me prega, e o segundo entre um verso do prototípico soneto della loda, Tanto gentil e onesta pare, e verso da quarta estrofe da canção cavalcantiana: in quella parte del libro de la mia memoria (VN, I, 1) ? in quella parte dove sta memora (DmP, v. 15); che ’ntender no la pò chi no la prova (VN, XXVI, 7, v. 11) ? imaginar nol pote om che nol prova (DmP, v. 53).
A tais retomadas pontuais manifestas, soma-se uma extensa série de sobreposições menos evidentes, mas igualmente significativas: palavras únicas no corpus de um ou outro autor, implicadas apenas nesses textos, correspondências de séries rímicas, bem como toda sorte de sobreposição de argumentos, em geral em sentido oposto.
Um ponto privilegiado de observação dessas correspondências é a já discutida canção central da Vita Nova, Donne ch’avete, poema que, anos depois, Dante citará conjuntamente com Donna me prega no De vulgari eloquentiae (DvE, II, 12, 3). Entre essas canções, por exemplo, não apenas diversas rimas se correspondem, mas ainda palavras-rima, ou rimantes, conjuntamente com termos antecedentes com que formam sintagmas e, o que é mais surpreendente, na mesma ordem. Veja-se, a título de exemplo:
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Como bem notou Nicolò Pasero — a quem se remete para outros pontos em que o fenômeno ocorre na canção —, para além dos mesmos rimantes se encontrarem na mesma ordem, arrastando outros vocábulos com que formam sintagmas, o texto cavalcantiano exibe ainda traço explícito de polêmica (chi ben aude), inserindo-se assim claramente em contexto dialógico. Essa polêmica se insinua, ademais, como contraposição ao próprio conteúdo da estrofe dantesca: se, para o Alighieri, trata-se de enfatizar o milagre visível (si vede) e sua intensa luminosidade (risplende), para Cavalcanti, é justamente a absoluta invisibilidade que vem destacada (non si vede, mezzo scuro, luce rade).
As correspondências emergem talvez ainda mais claramente ao fim, entre a última estrofe de Donne ch’avete e o congedo de Donna me prega:
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As identidades lexicais, novamente em posições equivalentes nos poemas (pela estrofe em que ocorrem, pelo verso e por sua posição no verso), assinalam indubitavelmente o estreito parentesco desses textos. É diante dessas evidências e constatando que, nessa relação, quem está polemizando com o outro texto é Cavalcanti, que se tem falado em Donna me prega como uma “refutação global da Vita Nova” (Enrico Malato). Afinal, se, como vimos, é o corpus guinizelliano o hipotexto decisivo de Donne ch’avete, a Vita Nova, com Donne ch’avete em seu centro, é o hipotexto fundamental de Donna me prega.
Com adensamento particular da dialética diante da canção Donne ch’avete, as composições expressam duas noções distintas e, em ampla medida, conflitantes do amor, nos termos do quanto vimos até aqui: de um lado, o amor que é imagem mesma da razão, “centro do círculo”; de outro, o amor que é, “por definição, o irracional absoluto” (Enrico Fenzi). A quinta estrofe de Donna me prega parece decisiva a esse respeito, pois, nos dois últimos versos antes do congedo, enuncia refutação direta da poetica della loda, com recurso, ademais, a uma distintiva elocução jurídica, já por nós assinalada: “sem nenhum engano, afirmo, digno de fé / que apenas dele [do amor correspondido] nasce recompensa” (v. 69-70). E esse, naturalmente, diferentemente do amor que se revela a Dante na Vita Nova, é um amor que puote venir meno.
Sob o signo geral da refutação, assinalado já no v. 4 de Donna me prega (sì chi lo nega possa ’l ver sentire), a contraposição é ainda de ordem elocutiva. Afinal, se, na estrofe proemial de Donne ch’avete, tratava-se de uma recusa da elevação estilística, em prol de um tratamento “leve” da sublime matéria (leggeramente, v. 12), Donna me prega não apenas se constrói de acordo com a já destacada complexa engenharia métrica das rimas internas, como ainda declara, também liminarmente, a vontade de operar uma demonstração filosófica, o que redunda na afirmação da existência e do domínio, pelo autor, de um registro elocutivo próprio à sutilíssima matéria.
Muito se especulou — e se continua a especular — sobre a dimensão pessoal do diálogo entre Dante e Cavalcanti, havendo intérpretes que buscam reconstruir um “dissídio” entre os poetas, que teria redundado em efetiva ruptura da amizade, a explicar inclusive por que Cavalcanti, cuja presença se identifica por toda a Comédia, é tão escassamente referido no poema de modo direto, à diferença de tantos outros antecessores poéticos de Dante. Ora, a dimensão pessoal da comunicação entre Dante e Cavalcanti — que se deve pressupor existente, naturalmente — permanece intangível.
Entretanto, conforme veremos em breve, no próximo texto desta série, no ambiente de intenso dialogismo que caracterizava essas experiências poéticas, é possível ir traçando também os caminhos de refutação de Donna me prega por Dante, até desbordar na Comédia, em que uma estruturadíssima perspectiva anti-cavalcantiana do amor está estabelecida.
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Agradecimento
Gostaria de agradecer a leitura e as preciosas sugestões a Alexandre Hasegawa e a João Carlos Mettlach, meus dois primeiros leitores em toda esta série.
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Indicações de leitura
Servimo-nos das seguintes abreviações: Cv (Convivio); DmP (Donna me prega); DvE (De vulgari eloquentia); GDLI (Grande Dizionario della Lingua Italiana); PL (Patrologia Latina).
Os textos dantescos foram aqui citados a partir da edição da NECOD: D. PIROVANO; M. GRIMALDI (ed. e com.). Nuova edizione commentata delle opere di Dante: volume 1, Vita Nuova, Rime. Roma: Salerno, 2015 e 2019 (em dois tomos). Excetuamos apenas o v. 39 de Donne ch’avete, em que não acolhemos a conjectura ciò che li donna, in salute, e mantemos o texto Barbi. Os de Cavalcanti, de acordo com: R. REA; G. INGLESE (ed. e com.). Guido Cavalcanti, Rime. Roma: Carocci, 2011. Os de Guinizelli, enfim, segundo: D. PIROVANO (ed. e com.). Poeti del dolce stil nuovo. Roma: Salerno, 2012. Nossa numeração segue a dessas edições. A ampla anotação dos textos nessas obras é material que se lê com imenso proveito, e a recolha de Pirovano é essencial também para o comentário de Cavalcanti. Para muitos desses textos, seguem indispensáveis as lições e os apontamentos de Contini: G. CONTINI (ed. e com.). Poeti del Duecento. Milano/Napoli: Riccardo Ricciardi, 1960, 2 v.; G. CONTINI (ed. e com.). Letteratura italiana delle origini [1976]. Milano: BUR, 2018.
Não seria possível fornecer uma bibliografia, nem mesmo condensada, sobre o problema do amor em Dante e nos poetas de seu entorno. Remeto aqui apenas a três textos essenciais: B. NARDI. Filosofia dell’amore nei rimatori italiani del Duecento e in Dante. In: IDEM. Dante e la cultura medievale. Bari: Laterza, 1990, p. 9-79; A. DI GIOVANNI. La filosofia dell’amore nelle opere di Dante. Roma: Abete, 1967; E. MALATO. Amor cortese e amor cristiano da Andrea Cappellano a Dante. In: IDEM. Lo fedele consiglio de la ragione: studi e ricerchi di letteratura italiana. Roma: Salerno, 1989, p. 126-227. Note-se, também, um estudo mais recente, muito estimulante: N. TONELLI. Fisiologia della passione: poesia d’amore e medicina da Cavalcanti a Boccaccio. Firenze: SISMEL, 2015. A edição crítica do grande tratado de André Capelão, grande súmula das concepções cortesãs do amor, é: E. TROJEL (ed.). Andreae Capellani regii francorum De amore libri tres [1892]. München: Eidos, 1964.
As questões teóricas sobre a poesia dialógica encontram amplo desenvolvimento em obra citada no texto: C. GIUNTA. Versi a un destinatario: saggio sulla poesia italiana nel Medioevo. Bologna: Il Mulino, 2002.
Sobre cada um dos textos aqui discutidos, a bibliografia é muito ampla, especialmente no caso de Dante. Por isso, indicamos apenas os textos diretamente empregados na confecção deste texto. Para a Vita Nova, entre as edições comentadas: D. DE ROBERTIS. Dante Alighieri, Vita Nuova. Milano/Napoli: Riccardo Ricciardi, 1980; L. C. ROSSI (com.). Dante, Vita Nova [1999]. Milano: Mondadori, 2016. Ainda para a Vita Nova, entre os estudos: R. REA. “Ego tanquam centrum circuli” (VN 5, 11). In: F. BRUGNOLO; F. GAMBINO (coord.). La lirica romanza del Medioevo: storia, tradizioni, intepretazioni. Padova: Unipress, 2009, p. 739-756; R. REA. Amore e ragione nella Vita Nuova. Studi romanzi, n. 14, 2018, p. 165-195; R. REA. Dante: guida alla Vita Nuova. Roma: Carocci, 2021.
Para Cavalcanti, entre as edições: D. DE ROBERTIS (ed. e com.). Guido Cavalcanti, Rime con le rime di Iacopo Cavalcanti. Torino: Einaudi, 1986. Entre os estudos: E. FENZI. La canzone d’amore di Guido Cavalcanti e i suoi antichi commenti. Genova: Il Melangolo, 1999 (de onde citamos o comentário antigo de Dino del Garbo); R. ANTONELLI. Cavalcanti o dell’interiorità. Critica del testo, n. 4 (1), 2001, p. 1-22; M. CORTI. Una diagnosi dell’amore. In: IDEM. Scritti su Cavalcanti e Dante: La felicità mentale, Percorsi dell’invenzione e altri saggi. Torino: Einaudi, 2003, p. 9-41 (e, no mesmo volume, uma refinada análise do soneto Noi siàn le triste penne, nas p. 42-49); G. GORNI. Guido Cavalcanti: Dante e il suo “primo amico”. Roma: Aracne, 2009 (onde se discute, entre outros problemas, a série de nove sonetos).
Para Guinizelli, entre as edições comentadas: P. PELOSI (com.). Guido Guinizzelli, Rime. Napoli: Liguori, 1998; L. ROSSI (ed. e com.) Guido Guinizzelli, Rime. Torino: Einaudi, 2002. As paráfrases da quinta estrofe de Al cor gentil que transcrevemos no texto estão nos Poeti del Duecento de Contini e nos Poeti del dolce stil nuova de Pirovano, citados acima, bem como em: G. INGLESE. Scritti su Dante. Roma: Carocci, 2021. Na interpretação dessa estrofe, fizemos referência a: G. ROHLFS. Grammatica storica della lingua italiana e dei suoi dialetti [1949-1954]. Trad. Torino: Einaudi, 1966-1969, 3 v..
Para as relações entre Dante e Cavalcanti (e, sobretudo, entre a Vita Nova e Donna me prega), além das obras já arroladas, servimo-nos de: G. CONTINI. Cavalcanti in Dante [1968]. In: IDEM. Un’idea di Dante: saggi danteschi. Torino: Einaudi, 2001, p. 143-157; E. MALATO. Dante e Guido Cavalcanti: il dissidio per la Vita Nuova e il “disdegno” di Guido [1997]. 2. ed. Roma: Salerno, 2004; N. PASERO. Dante in Cavalcanti: ancora sui rapporti fra Vita Nuova e Donna me prega. Medioevo romanzo, n. 22, 1998, p. 388-414; R. REA. La Vita Nuova e le Rime, unus philosophus alter poeta, un’ipotesi per Cavalcanti e Dante. In: E. MALATO; A. MAZZUCCHI (coord.). Dante fra il settecentocinquantenario della nascita (2015) e il settecentenario della morte (2021): tomo II. Roma: Salerno, 2016, p. 351-381.
Para as relações entre Dante e Guinizelli, além das obras já listadas, é útil: V. MOLETA. Guinizzelli in Dante: Roma: Storia e Letteratura, 1980.
Lidando com a relação entre os dois Guidi e sua apropriação na Vita Nova: G. CAPPELLO. La “Vita Nuova” tra Guinizzelli e Cavalcanti. Versants, n. 13, 1988, p. 47-66; M. GRIMALDI. Sacro e profano in Guinizzelli e Cavalcanti. P.R.I.S.M.I: revue d’études italiennes, n. 16, 2019, p. 115-146; S. CARRAI. La presenza dei due Guidi nella Vita nova. Chroniques italiennes web, n. 32. 2017. Disponível em: < http://www.univ-paris3.fr/chroniques-italiennes-recherche-par-numero-page-2-479331.kjsp?RH=1488359347838 >
O interessantíssimo Quando eu stava lê-se em: A. STUSSI. Appendice. In: C. SEGRE; C. OSSOLA. Antologia della poesia italiana: Duecento. Torino: Einaudi, 1997, p. 607-620. Para a importância dos traços da tradição submersa: A. STUSSI. Tracce. Roma: Bulzoni, 2001.
Sobre os sicilianos, encontra-se uma excelente introdução em: G. FOLENA. Cultura e poesia dei Siciliani [1965]. In: IDEM. Textus testis: lingua e cultura poetica delle origini. Torino: Bollati, 2002, p. 81-158. Os textos desses poetas se leem convenientemente em: D. PIROVANO (ed. e com.). Poeti della corte di Federico II. Roma: Salerno, 2020.
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