por Marcella Abboud
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Democracia para quem não acredita, 286 páginas, é o novo livro do professor, escritor renomado e jurista Georges Abboud, em pré-venda pela Editora Letramento. Na descrição da obra, uma oferta irrecusável: trocar o conspiracionismo pelo bom senso; o negacionismo pela fé objetiva na democracia. O livro, com 11 capítulos, prólogo e epílogo, propõe-se a um diálogo com aqueles que, por diferentes motivos — entre eles, a estupidez — não acreditam na democracia.
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Eu acredito na democracia. Aliás, a democracia é uma das poucas coisas nas quais ainda acredito piamente. Por isso mesmo o título me pegou de surpresa e, confesso, me deixou raivosa, com inevitável desejo do proibido: vou ler, até o fim, um livro que não foi pensado para mim. Engano típico dos coléricos: pressupor. Li, com a raiva que os descrentes na democracia (nomenclatura do autor) me causam, mas sai enternecida pela possibilidade de aprender como justificar, em termos práticos, mas também lógicos, minha crença democrática. Nesse sentido, na verdade, era justamente para mim que o livro era: como uma tábua de salvação, um apoio, um respiro no caos. Um be-a-bá dos principais conceitos que regem uma democracia constitucional nos moldados que supostamente vivemos — ou deveríamos viver.
E agora eu vou precisar que vocês, que ora me leem, garantam-me a presunção de inocência devidamente prevista pela nossa Constituição, como muito bem me lembra o autor. Não é porque eu sou irmã do Georges que eu não tive um cuidadoso olhar crítico, até porque o histórico literário de irmãos – desde Rômulo e Remo, Caim e Abel e Esaú e Jacó – não trazem uma tendência de predileção sanguínea. Brincadeiras intertextuais à parte, aqui estamos mais para Jorel e irmã do Jorel: ser irmã de alguém com a capacidade de escrita, o brilhantismo e a eloquência do Georges é um eterno e paradoxal fardo-sorte na minha vida. Eu sou a irmã do Jorel. Por isso, acreditem no que estou dizendo: estamos diante de uma obra fundamental para continuarmos respirando com o mínimo de segurança acerca da manutenção dos nossos direitos básicos.
Explico porque: em pouco menos de 300 páginas, o autor nos explica o que é democracia, sua relação com o constitucionalismo, com o conceito de dignidade humanas com as fake news, as minorias e a polarização. Além dessas relações, relativamente conhecidas, nos apresenta, ainda, conceitos como accountability, common ground e forbearance, todos eles mais arraigados à nossa experiência cotidiana do que imaginamos. De maneira didática, o livro nos fornece argumentos para 1. entender como a democracia, embora imperfeita, segue sendo a nossa melhor alternativa; 2. em que falácias se pautam seus inimigos; 3. como argumentar contra a estupidez desses inimigos. E não pensem que só porque sou uma ferrenha defensora da democracia este livro não me estapeou com luvas de pelica: mesmo o mais democrata dos leitores vai apender, refletir, sofrer em posição fetal, para depois reagir: não com a revolta das revoluções, como muito bem aponta o livro, mas com a revolta interna de quem enfrenta o seu próprio absurdo.
Se, ao invés de convencê-lo, o currículo quilométrico do autor e os termos em inglês o assustam, registro o ineditismo deste livro: não é, diferente das outras sete obras autorais, entre outras organizadas, um livro direcionado ao público especializado no campo jurídico. Na realidade, há uma generosidade em servir como a ponte necessária entre nós, público leigo, e o verdadeiro aparato que nos garante que não enlouqueçamos convencidos que vivemos um pesadelo pós apocalíptico: a nossa Constituição. Entender, de fato, como a Constituição é o núcleo da democracia, garantidora do pluralismo — e, por isso, também do dissenso — e sua função contramajoritária, isto é, que a democracia nem sempre tem a ver com o desejo da maioria — e ainda bem que não.
Mais do que nunca, reconhecer a importância do trabalho acadêmico e fazer divulgação científica tem sido atos revolucionários, e nisso o Georges é primoroso: é capaz de nos explicar aspectos básicos do Estado Democrático de direito com a erudição de Machado e Dostoiévski tanto quanto a clareza simpática dos jedis de Star Wars: sim, todos essas referências conferem aos ensaios uma unidade para além do tema, a abertura ao diálogo.
Coincidências da vida ou não, li o manuscrito de Democracia para quem não acredita enquanto lecionava sobre gênero dramático, com um estudo da tragédia Antígona, de Sófocles. Enquanto os tiranos do nazifascismo e os autocratas outsiders contemporâneos eram descritos por Georges, eu reencontrava o caos familiar e social instaurado pela tirania em Tebas. A tragédia, caso alguém não conheça, trata de um drama que é, ao mesmo tempo, familiar e político: Antígona, uma dos quatro filhos de Édipo, retorna a Tebas e encontra uma tragédia instaurada: os irmãos, Polinice e Eteócles, competem entre si, em lados opostos de uma batalha. Matam-se mutuamente (ah lá, estou falando que não pode confiar em irmão). O tio Creonte, tirano que controla Tebas na ocasião, tinha apoio de Eteócles, a quem dedica funeral honroso; a Polinice, contudo, relega uma das maiores violências e desumanizações: a impossibilidade do funeral.
Antígona não permite que isso aconteça. Mesmo sabendo que seria condenado à morte aquele que desrespeitasse Creonte, Antígona retira sozinha o corpo do irmão insepulto, e cava com as unhas a terra para cobri-lo. Daí, tragédia grega, né? É condenada à morte. Seu noivo, Hémon, filho de Creonte, suicida-se. A mãe de Hémon, esposa de Creonte, culpa o marido pela morte do filho e se mata também. Creonte amarga sua hybris (desmedida, presunção, orgulho: intraduzível ao português, mas visível nos nossos tiranos cotidianos), sofrendo com as mortes ao seu redor e com a população de Tebas que se volta contra ele. A mesma Tebas que ele crê defendê-lo. Impossível não lembrar do Georges descrevendo o líder populista outsider, que tem a “pretensão de ser o canal de comunicação direto com o povo. Ou seja, somente o líder populista conseguiria vocalizar os anseios do povo, as instituições e os partidos seriam mecanismos que desviariam essa comunicação direta” (p. 87)
O enredo de Antígona, não raro, é tema das aulas de direito: entre sepultar o irmão, obedecendo os ritos familiares e não o sepultar, para obedecer a lei do homem, Antígona se posta entre o jusnaturalismo e o direito positivista. Essa análise você não tardará a encontrar na internet.
Embora o paradigma constitucionalista conduza a obra de Georges, não é na figura de Antígona que me detenho quando penso na tragédia e no livro. A catarse, elemento grego fundamental para a concepção de tragédia, garante, pelo sofrimento, a purificação do erro trágico: toda arrogância e desmedida é cobrada de quem erra (comete o que chamamos de hamartia).
Creonte é um tirano. O édito que proclama para que não se sepultem o corpo de Polinice é uma decisão individual, egoica, autoritária, descontextualizada da política. Mas, por ser ficcional e trágico, a morte dos seus é o preço a ser cobrado por uma espécie de redenção. Há ilusão em esperar que a vida real traga a catarse.
Mas não foi Sófocles quem escreveu o enredo do Brasil contemporâneo. A hybris não está em desrespeitar à soberania divina. A desmedida é tentar passar por cima da Constituição que ,se não estabelece rituais específicos sobre os mortos e seus funerais, minimiza, por vias democráticas, as consequências violentas de um histórico colonial e patriarcal traumático, bem como a necropolítica quase trivial no cotidiano de 2021.
Em uma das passagens que mais me comoveu, o livro de Georges cita Camus para falar da estupidez, como força que “atua basicamente por dois caminhos”. Os dois, trago spoiler novamente, são muito familiares: “no primeiro, ela se lança como força autoritária e negacionista, degeneradora das instituições; e, no segundo, promove a exultação da simplicidade, em desfavor da complexidade” (p. 200).
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Situações complexas assustam, eu sei. Mas é com o discurso da simplicidade que autocratas, representantes chucros da ignorância, lideram uma marcha contra a democracia. É preciso encarar o que é complexo, afinal “no mundo pós-moderno, dar as costas à complexidade é um dos maiores equívocos que as instituições podem cometer”, Obrigada, Jorel, digo, Georges, por tornar acessível a complexidade sem simplificá-la.
Durmo, depois de ler seu livro, com mais raiva (dos inimigos) e consciência (da importância democrática): combustíveis para seguir defendendo a democracia — até para quem não acredita.
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