por Ary Quintella
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Aos 21 anos, fui a Veneza pela primeira vez. Era verão, havia muitos turistas, a cidade estava suja, vi apenas seu aspecto de parque de diversões. Minha reação principal foi de decepção. Pensei nunca mais voltar.
O contrário aconteceu. Revisitei a Serenissima várias vezes desde então. Gosto cada vez mais do que seu apelido reflete — a imponência serena sobre a água. Chego, surpreendo-me novamente com a beleza à minha volta, abstraio as multidões e fico me perguntando como pode haver no mundo um lugar assim. Minha razão habitual para ir é a Bienal de Arte.
Uma tarde, em setembro de 2019, saí do hotel para visitar, no Palazzo Grassi, a mostra do pintor belga Luc Tuymans, intitulada La Pelle. Quando vou ao Palazzo Grassi, penso, além do poder da arte, no poder do dinheiro. Colossal, situado à beira do Canal Grande, o Palazzo foi comprado em 2005 por François Pinault. Lá são montadas exposições de grande repercussão..
O que fazer quando você é um dos homens mais ricos do mundo, um dos mais importantes colecionadores de arte contemporânea e já possui um palácio veneziano? Muito simples, você procura obter a concessão de mais um marco histórico em Veneza. Em 2007, Pinault obteve o uso, por trinta anos, da antiga aduana na Punta della Dogana, na boca do Canal Grande. Ele dispõe, portanto, de dois espaços fenomenais onde expor parte de sua coleção e mostras temporárias. Não há crítica de minha parte nesse comentário. Veneza, arquétipo da cidade europeia bem preservada, de palco para uma volta ao passado, ganhou nova vida, ganhou novas facetas ao evoluir para um local de celebração da arte contemporânea. Não é um monumento inerte a um passado glorioso, como Bruges, que foi cenário, já em 1892, de um romance simbolista do escritor belga Georges Rodenbach intitulado Bruges-la-Morte.
De Luc Tuymans eu vira em Bruxelas, em 2011, uma excelente retrospectiva, termo aliás que ele questiona, pois suas exposições não seguem necessariamente uma ordem cronológica. É certamente o artista com a obra mais cerebral do mundo. Seus quadros parecem simples, muitos de uma beleza plástica à primeira vista inofensiva, e podem ser apreciados assim, mas possuem na verdade elevada carga histórica e cultural.
Temáticas recorrentes, embora não exclusivas, são o nazismo, os campos de concentração, o passado colonial belga, o nacionalismo flamengo, o uso do poder pelos governantes, a intolerância religiosa, todos denunciados sem histrionismo. Vemos uma de suas pinturas — frequentemente, elas são em tom pastel, e costuma haver pouca variedade de cor em cada tela — representando uma sala vazia. Trata-se de uma câmara de gás da era nazista. Um senhor de óculos, de ar paternal, é na verdade algum célebre criminoso. Uma maçã mordida é inspirada da foto tirada pela polícia da fruta deixada para trás por um assassino.
O livro do crítico de arte e romancista Gordon Burn publicado postumamente em 2009, Sex & Violence, Death & Silence: Encounters with Recent Art, inclui texto de 2000 sobre Tuymans. Burn fora entrevistá-lo em Antuérpia, onde o artista mora, e ouviu dele: “Violence is the only structure underlying my work“.
Tuymans pinta cada tela em um só dia. Ele antes pensa sobre a temática, lê para se informar ou se inspirar, faz desenhos preparatórios, mas o quadro é terminado no mesmo dia em que é iniciado. Sua exposição no Palazzo Grassi, montada pela curadora da Coleção Pinault, Caroline Bourgeois, e por ele próprio, foi mostrada de março de 2019 a janeiro deste ano. Terminando logo antes de a pandemia afetar o mundo inteiro, ela pôde ser visitada pelo público, ao contrário de tantas outras.
Caminhando pelas salas do Palazzo Grassi, tomando pouco a pouco consciência do conjunto de obras, lendo o folheto que eu segurava nas mãos, surgia uma iluminação sobre a intenção do pintor. Cada quadro passava a ser parte de sua visão, sem ilusões, sobre o efeito cruel que seres humanos podem ter sobre outros.…..
O rosto de mulher que ilustrava o cartaz é uma pintura inspirada de uma série brasileira da Netflix, 3%, de que eu nunca ouvira falar. Descreve, eu soube depois, uma sociedade onde as desigualdades sociais são incentivadas, em vez de combatidas.
Meu quadro preferido foi talvez uma natureza-morta, de 2002, pertencente a François Pinault, que, medindo quase três metros e meio por cinco, é enorme.
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A influência de Cézanne é clara. O espírito é sereno. Os objetos e frutas parecem flutuar. A tela porém está associada aos atentados de 11 de setembro de 2001, porque foi exposta pela primeira vez em Kassel, em 2002, na Documenta 11, na qual muitos artistas apresentaram obras que faziam referência aos atos terroristas. O que terá querido dizer Luc Tuymans? Evitou falar dos atentados? Ou, ao contrário, optou por uma natureza-morta — lembrete tradicional de nossa mortalidade — para a eles aludir sutilmente? O folheto da exposição informa que talvez ele tenha querido mostrar que a vida resiste às catástrofes e renasce. Naturalmente, como toda natureza-morta, a tela pode, e talvez deva, ser vista pelo que, de forma objetiva, é: uma belíssima composição, em tons suaves, eternizando alimentos perecíveis, assim como um retrato registra para sempre um indivíduo que fenecerá.
A obra de arte que nos traz mais prazer estético não é necessariamente a que nos marca mais. Na exposição de Tuymans em Veneza, foi outra a tela a que dediquei mais tempo, a que mais me intrigou. Ela é a razão pela qual decidi escrever sobre a exposição, o que comecei a fazer em outubro, sem até este momento poder concluir. Uma obra de arte pode inibir a imaginação e a inteligência, ao provocar associações complexas, difíceis de examinar.
A tela se chama “Le Mépris“.
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Como foi pintada em 2015, eu não a vira em 2011 em Bruxelas. No vídeo sobre a exposição disponível na página do Palazzo Grassi, Tuymans diz que, se o quadro — pertencente a Mimi Haas, que vive em São Francisco e é viúva de um dos herdeiros da Levi Strauss — não pudesse ter sido cedido para a exposição, ele talvez pintasse nova versão, por causa de sua importância como “significante”. Trata-se de uma simples chaminé, mas carregada de numerosas conotações culturais, históricas e metafóricas. É a chaminé da sala de estar da casa de Curzio Malaparte na ilha de Capri. Malaparte fala nela, rapidamente, em La Pelle, livro lançado em 1949 que empresta seu título à mostra de Luc Tuymans e no qual, como em uma obra anterior, Kaputt, o escritor mistura realidade e ficção. Os dois livros narram situações em parte imaginárias, dentro de eventos bem reais — a II Guerra Mundial em Kaputt e, no caso de La Pelle, o período imediatamente posterior à libertação de Nápoles pelas forças aliadas em 1943. Malaparte descreve a decadência moral dos napolitanos, de que participam alguns soldados e oficiais estrangeiros, enquanto outros mantêm a retidão. Mostra que a população, após a guerra, desejava sobreviver a todo custo, sem considerações de princípios, tendo como único objetivo salvar a própria pele. Malaparte e Tuymans revelam ambos a corrupção moral por baixo da superfície — pele no caso do italiano, tela no caso do belga.
Malaparte nos oferece esta descrição, em La Pelle: “é uma imensa chaminé e, ao fundo da lareira, há um cristal de Iena. Por entre as chamas, vemos o mar sob a Lua, os Faraglioni surgindo das ondas, os rochedos de Matromania, e o bosque de pinheiros e de carvalhos atrás da minha casa”. Capri, por si, já é desde a Antiguidade um conceito carregado de significados, sinônimo de beleza natural e de decadência humana, por ter sido cenário do refúgio de Tibério, cuja vida na ilha foi descrita por Tácito e Suetônio, por este último de forma tristemente detalhada.
A Villa Malaparte, sobre um promontório, olhando de três lados o mar Tirreno, é um famoso exemplo de arquitetura moderna. Foi construída por encomenda do escritor no final da década de 1930. Sua celebridade ficou comprovada, e foi consolidada, pelo fato de Jean-Luc Godard a ter usado como cenário do terço final de seu filme de 1963, Le Mépris (O Desprezo). No vídeo onde explica a exposição, Tuymans confirma seu amor pela obra de Godard, dizendo ser Le Mépris “um desses filmes épicos, que já não serão mais feitos”.
Godard extraiu o roteiro de um romance de Alberto Moravia, com o mesmo título. A história trata do fim da relação de um casal de franceses morando em Roma, interpretados por Michel Piccoli — cuja morte, há poucos dias, aos 94 anos, talvez tenha me incentivado a terminar este ensaio — e Brigitte Bardot, então no auge da beleza e da fama. O personagem de Michel Piccoli, um dramaturgo, é sondado por um produtor americano, interpretado por Jack Palance, para refazer o roteiro de um filme, a ser dirigido por Fritz Lang — fazendo o papel dele mesmo — que recontará a Odisseia. O título alude ao fato de que a personagem de Brigitte Bardot percebe, ou supõe, que seu marido quer empurrá-la para os braços do produtor, por razões de interesse profissional e financeiro. Passa então a desprezá-lo, e com isso deixa de amá-lo. Em momento anterior seu marido já havia demonstrado desprezo social e intelectual por ela. Ao esbofeteá-la, irritado porque ela não quer ir à casa do produtor em Capri — a Villa Malaparte — ele diz: “Por que eu fui me casar com uma datilógrafa de 28 anos?”.
O filme de Godard é uma obra de arte talvez perfeita, pelas referências culturais, os diálogos, as atuações, a beleza plástica, a tonalidade das cores, a música de Georges Delerue e certas inovações do diretor. Entre os temas que aborda estão o processo de criação artística, a relação do ser humano com Deus (“O homem criou os deuses, não foram os deuses que criaram o homem”, diz Fritz Lang), o desprezo como um dos motores nas relações humanas, e o poder do dinheiro — no caso, o do produtor americano — no mundo da arte. Esse último ponto de Godard parece, em retrospecto, curiosamente relevante, considerando que vi a tela de Tuymans, pertencente a uma milionária americana, no palácio veneziano de um bilionário francês protetor das artes, e cujo gosto e cuja coleção sem dúvida influenciam, de mais de uma maneira, obras de novos artistas. A chaminé aparece em uma cena curta mas determinante do filme, quando o personagem de Michel Piccoli se senta, em um banco colocado frente a ela, entre Brigitte Bardot e Jack Palance, afinal disposto, mas tarde demais, a afastá-los e a salvar seu casamento.
Ao ver a tela de Tuymans em Veneza, não tive como escapar do conjunto de suas múltiplas referências culturais. Vira o filme na infância, na televisão, e lera La Pelle na adolescência. Em um dos salões do Palazzo Grassi, eu estava diante de uma pintura inspirada em parte por um filme de Godard, por sua vez extraído de um romance de Moravia; a chaminé, presente no quadro e no filme, existe realmente no interior de uma casa em Capri, construída pelo autor de La Pelle, livro que emprestava o título à exposição onde eu via o quadro.
Ao voltar ao Brasil das férias na Europa, eu reveria o filme e releria La Pelle, confirmando assim o impacto que o quadro me provocara. Enquanto visitava a exposição, em Veneza, voltei três ou quatro vezes à sala onde ele estava exposto. Em todas elas, demorei-me a examiná-lo. Admirei sua simplicidade, que contrastava com o luxo do palácio. Era, contudo, uma simplicidade ilusória, pelo aspecto maciço da chaminé e pelo número de camadas de referência que a obra sempre portará consigo. Tuymans, no vídeo, diz com relação ao seu quadro: “So, everything is not really what it seems“.
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Além das culturais, razões pessoais, trazidas à tona naquele instante, grudavam-me em frente à pintura. Rememorei uma cena da primeira viagem a Veneza.
Naquele verão, paro uma tarde para comprar sorvete em um quiosque perto do Canal Grande. Na minha frente, há apenas um veneziano já de idade, a quem a vendedora sugere o sabor kiwi. Ele pergunta: “Kiwi? Cos’è, kiwi?”, ao que ela responde: “È una frutta esotica“. A fruta inicia então a sua surpreendente — existe sabor mais sem graça? — popularização pelo mundo e ninguém imagina ainda que um dia a Itália será um dos principais produtores daquele símbolo de “exotismo”. O veneziano deve ser bastante mal-humorado; ao se virar e me ver, pensando que sou francês, solta gratuitamente uma frase ofensiva sobre a França; quando eu lhe digo que sou brasileiro, o desprezo aumenta (“isso é pior ainda”) e vem a ofensa contra o Brasil. Aparentemente, ele acredita haver uma hierarquia no apreço devido aos países. Só a Itália fica no topo, e o Brasil abaixo da França.
Essa anedota sempre simbolizou, condensou, para mim, o desapontamento sentido naquela primeira ida a Veneza.
Vendo e revendo mais de uma vez a tela de Luc Tuymans, pensei naquela outra tarde de verão, de tantos anos antes. Perguntei-me como teria sido a vida daquele homem. Feliz, ele não me parecera ser. Provavelmente, sequer estaria mais vivo. Perguntei-me se aquela amostra de desprezo nacionalista do italiano servira de impulso para que eu virasse diplomata — na época, minha ambição profissional parecia ser outra. Percebi que eu nunca saberia a razão pela qual a cena tivera, na hora, importância, mas que, de alguma maneira, ela contribuíra, junto com tantas outras, para minha presença ali, naquele momento, no Palazzo Grassi. Nossas vidas são o resultado de uma soma de fatores, acumulados ao longo do tempo, muitas vezes desapercebidos. Entendi que, entre a longínqua tarde na primeira passagem por Veneza e a tarde da visita à exposição de Tuymans, diferentes existências haviam transcorrido, haviam se superposto, e que de muitas delas eu talvez nem tivesse consciência. Ao mesmo tempo, algumas haviam sido buscadas. Ao mudar nossa própria vida, acabamos modificando também a nossa personalidade. Ao entender, frente a Le Mépris, que eu sentira desprezo por Veneza na primeira viagem, surpreendi-me. Pensava ter havido apenas, sempre, a admiração que hoje sinto. E então, em vez de saudosismo, senti reconforto de não ter mais 21 anos.
Começava a anoitecer. A galeria ia fechar. Além de mim e dos guardas, já não havia ninguém. Saí. Minha mulher me esperava no hotel. Com pressa, peguei um vaporetto que parecia desejar meu embarque. No Canal Grande, os últimos raios de sol se extinguiam. Luzes se acendiam nos palácios e nas casas, nos hotéis e nos bares, refletindo-se na água. Os edifícios iam passando, sucedendo-se uns aos outros, enquanto o barco, implacável, avançava pelo canal. Sorri comigo mesmo, diante de um tão ostensivo simbolismo.
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Ary Quintella publica seus ensaios e crônicas na página aryquintella.com.
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