por Eduardo Wolf
As tarefas de um crítico literário são variadas, e se formam padrões gerais, dificilmente se pode discernir uma unidade essencial clara. Oscilam, tais tarefas, da simples recensão informativa de lançamentos e novas edições ao trabalho de rivalidade criadora, quando o crítico demonstra sua capacidade de ler determinada obra em registro inventivo, iluminando-a por meio da atribuição de novos significados. Nessa lida, entre seus afazeres mais evidentes, destaca-se a delicada tarefa de julgar o incontornável tempo presente: que obras agora merecem nossa atenção; em que medida apresentam-se para além da mera repetição de calendário no circuito vigente e ininterrupto de publicações; em uma palavra, que juízo expressa o valor do agora na literatura que se produz e que se lê.
Quando a obra em questão tem por matéria nosso partilhado presente, duplica-se a dificuldade da tarefa, a análise crítica recaindo sobre a obra e sobre o tempo que cabe a todos — autor, crítico, obra, leitor — compartilhar. Mais que julgar uma obra presente, nesses casos, a tarefa do crítico é também, em alguma medida, avaliar o próprio presente.
Jerônimo Teixera exerce essa função crítica lá se vão mais de duas décadas, e o faz na extremidade mais sensível da extensão do domínio da crítica, acompanhando a produção sua contemporânea, nacional e internacional, engajado na tarefa de decifração da matéria literária presente com os olhos de agora. Como em tantos casos dos afazeres jornalísticos, sua profissão, o amplo espectro de fenômenos de cultura e sociedade que vivemos e que nos afetam comparecem no horizonte dos objetos de contemplação para o entendimento crítico, do qual a literatura é caso especial, e, quando literatura sobre esses fenômenos, caso especialíssimo.
O que esperar, então, de uma nova incursão de Jerônimo Teixeira na ficção, depois de mais de uma década desde sua última publicação? Mais que isso, o que esperar da experiência de criação literária sobre o presente, nosso inescapável 2013 de conhecidas passeatas, de espantosas manifestações e de indecifráveis significados?
Essa é a matéria de Os dias da crise (Companhia das Letras), romance breve e agudo de Jerônimo Teixeira, que nos coloca diante, não de uma, mas de ao menos três crises, num deslocamento do crítico Teixeira da posição de juiz proeminente do trabalho literário para a de autor julgador de nosso tempo, sua matéria — deslocamento que, claro, move-me no tabuleiro, deixando-me em posição análoga à do crítico Jerônimo Teixeira: julgar a literatura presente julgando o tempo que nos coube.
Alexandre, o executivo protagonista e narrador de Os dias da crise, oferece o tom geral do romance: uma irritação quase sempre morna pontua seu balanço de certos aspectos de sua vida: a empresa em que trabalha e a crise que enfrenta; as relações pessoais (o irmão, a filha, um punhado de amigos, outros poucos indivíduos ligados direta ou indiretamente a esse núcleo). Essa moderada, tépida irritação apresenta-se ao leitor quase sempre com as roupas de uma ampla e sincera indiferença por tudo, dos menores episódios da vida cotidiana aos mais elevados anseios humanos, que por vezes acometem até mesmo os indiferentes.
Uma boa evidência disso é a alternância que encontramos já na abertura do romance. A epígrafe colhida em Dostoiévski, Sonho de um homem ridículo, desperta no leitor a expectativa da constante indiferença: “Viram mesmo que para mim tudo era indiferente e se alegraram muito”. As palavras de abertura do romance, contudo, contrastam com o espírito geral anunciado pela epígrafe e consolidado internamente ao longo dos curtos e ágeis capítulos seguintes: “Não gosto de ler. Ninguém gosta. Mente quem diz o contrário”. Entre a jogada do personagem (que lê, é claro) e o enunciado real está esse espaço em que a irritação — nunca, talvez quase nunca em demasia; quase nunca convertida em ação ou reação — e a indiferença vão se alternando. O tom oscila já do incômodo com a leitura para a descrição algo desligada e aérea da festa de aniversário do irmão, na qual Alexandre conhece Helena, professora de literatura brasileira (canção popular, em verdade) na USP; Helena desperta interesse real, o que em boa medida equivale a sexual, mas não o suficiente para quebrar um distanciamento indefinido de Alexandre, quer no primeiro encontro, quer com o romance avançado, no derradeiro momento em que a relação precisará se decidir.
E não parece haver crise dentre as crises de que nos fala Os dias da crise que não se nos apresente nesses termos. Afinal, o universo da vida empresarial pode ser pintado com cores ainda mais irônicas, ainda mais satíricas — pois na operação literária do livro, prevalece a sátira, quero crer –, mas também ali, na indiferença irônica com o novo CEO da empresa, Vladimir Eollo, e, vá lá, até em certa tristeza com os descaminhos da companhia e da vida profissional de Alexandre, pode-se ler certa irritação, quem sabe revolta, ainda que indefinida. Se nem o amor e o sexo, nem a vida profissional escapam dessa lógica, poderá alguma dimensão da vida de Alexandre escapar a isso? Nossas apostas recairiam, é claro, na relação pai e filha, que proporcionam o grande momento de toda a narrativa, ainda que não ganhemos a aposta.
Se a crise pessoal e a crise da empresa em que trabalha Alexandre operam nesse registro, resta conferir como aquela outra crise, a mais proeminente e cujo impacto transborda das páginas da ficção para a realidade política e social que nos acolhe não muito adequadamente (os mais realistas dirão que é o contrário, e que é a vida real que se derrama nas páginas do romance), como esta grande crise ganha vida na ficção de Jerônimo Teixeira. Que Alexandre nos diga, desde o início, que ninguém entendeu exatamente o que foi a crise de 2013 no Brasil, as chamadas “jornadas de junho”, parece ser mais que confissão de incompreensão de um processo político complexo e que, do lado de cá da ficção, de fora, sabemos que é exatamente assim — ainda não digerimos e compreendemos aqueles episódios que seguem nos acompanhando. Se digo que é mais que mera confissão de ignorância acerca dos fatos que tornam Alexandre “o mais improvável revolucionário” é porque creio que aqui convergem os elementos da ficção presente e da intepretação sobre o presente, como disse acima. Escrever sobre o tempo presente é tarefa arriscada, e nisso nada vai de novo; quando o presente é mais opaco que o usual, perdendo seus contornos com as névoas da confusão ideológica e a fumaça da combustão social, de que forma fazer disso matéria literária?
A confissão de ignorância sobre os episódios de junho de 2013 é o ponto de armação da narrativa de Os dias da crise, é o que permite o foco nas outras crises — a da empresa, da vida pessoal de Alexandre em seus diversos níveis –, mas é também o que permite o envolvimento inusitado do protagonista com os manifestantes. É, talvez, o elemento que dá unidade à experiência daquela quadra da vida para Alexandre, o ponto de articulação da trama: entre programaticamente indiferente e sinceramente incomodado. Vai nisso, penso, o juízo do crítico literário de tantos anos e do autor deste romance sobre nosso presente, avaliação política, posicionamento moral e criação artística se entrelaçando. O que mais junho de 2013, com tudo que se seguiu, pode obter de nós, se não isto: indiferença e incômodo? De Jerônimo Teixeira, obteve ainda este belo Os dias da crise.