‘Direita e Esquerda na Literatura’ (Parte I) – O processo da História

O ponto de vista de Berardinelli é que, após a Revolução Francesa, a política tornou-se a obsessão do Ocidente.

Por Fabrício Tavares de Moraes

Em sua crônica “E, por toda a semana, o artigo de Corção começou a badalar” (em O Óbvio Ulultante), Nelson Rodrigues relata a perplexidade de um seu amigo, “uma flor das esquerdas”, com certo artigo em que Gustavo Corção tratava ternamente do filho que fora enviado, à época, como representante do Brasil ao Vietnã. O homem estava perplexo porque “imaginava que, se o Corção passasse a mão pela face, havia de sentir a própria hediondez. Nunca lhe ocorrera que aquela besta-fera pudesse ter costumes, usos, gestos, como outro qualquer”.

Ao que parece, a humanidade do escritor católico e (usando os termos de Nelson) reacionário – seus outros aspectos e cuidados que não as opiniões políticas – jamais havia sido cogitada pelo companheiro de Nelson. Evidentemente não há de novo com as respectivas demonizações partidárias,  e mesmo na literatura – domínio em que a política necessariamente hesita, ainda que ocasionalmente, perante os ditames da estética – não é possível a alegação de neutralidade absoluta na crítica ou na apreciação de um autor que, em sua vida extraliterária, transita em espectros políticos antípodas aos nossos.

No entanto, permanece ainda a questão sempre intricada das relações entre os escritores, seus posicionamentos políticos e suas obras. Geralmente, damos o problema por resolvido apelando para uma síntese raramente satisfatória: a obra é um campo de forças tensionais, e ora cede à concepção política de seu autor, ora submete-se somente à estrutura supostamente neutra proposta pela imaginação.

O que, todavia, não explica as relações que tacitamente se instalam na própria formação de uma fortuna crítica de um escritor. Afinal, Knut Hamsun é ainda tão lembrado por sua obra-prima Fome quanto pela sua simpatia ao execrável nacional-socialismo; e Mario Vargas Llosa, por sua vez, é desdenhado por parte da esquerda, não sem certa afetação, devido aos seus posicionamentos à direita.

Todos esses fatos revelam que há, de fato, irradiações mútuas entre os domínios literário e político, a despeito de nossas reivindicações de objetividade. E este é o ponto do crítico italiano Alfonso Berardinelli, em seu riquíssimo livro de ensaios Direita e Esquerda na Literatura (Editora Âyiné).

O ensaio homônimo consta de poucas páginas (como todos os demais), porém sempre densamente pontuadas de referências literárias e filosóficas. Tenhamos em conta que Berardinelli é um erudito que abandonou o ensino universitário e por isso faz questão de afastar-se do pensamento produzido atualmente na academia europeia, em especial suas variantes pós-modernas. A título de ilustração, num de seus ensaios mais famosos dentre os publicados no Brasil, o crítico solicita abertamente: “não incentivem o romance”, um gênero que, segundo sua perspectiva, já sofre os efeitos da caducidade, juntamente com a democracia (uma de suas progenitoras).

Porém, focando no ensaio que dá nome ao livro, Bernardinelli, de início, confronta a obsessão política característica do pós-estruturalismo; isto é, o crítico italiano parte do pressuposto – que em outros tempos seria uma obviedade – de que a política não é a realidade última, nem a filosofia primeira. Em seus termos:

A política não abarca todos os pensamentos de um indivíduo, talvez nem mesmo os de um político profissional. Uma infinidade de atividades sociais continua a seguir seu próprio curso de forma autônoma, ignorando quase sempre quem governa e quem é oposição. Os escritores, e no geral os intelectuais e os artistas, mesmo quando se esforçam para compreender e definir o presente não o fazem com as categorias, as preocupações, a linguagem que imperam na atividade propriamente política (no Estado, nos partidos, nos movimentos sociais).

No entanto, isso não implica que a literatura (ou os literatos) abstenha-se da existência dos polos que habitualmente designamos como esquerda e direita. Com efeito, como classificaríamos uma obra como Santa Joana dos Matadouros, de Bertold Brecht, sem nenhuma referência à sua contestação política e retórica comunista? De certo modo, a literatura militante progressista origina-se quase simultaneamente à chamada literatura reacionária (Bonald, Joseph de Maistre), num processo relativamente recente:

Da metade dos anos 1700 até os meados dos 1900 a literatura não descuidou absolutamente da distinção e da oposição entre direita e esquerda. A primeira literatura de esquerda foi a dos iluministas, que atuaram como “filósofos militantes” inserindo na relação entre literatura e política uma nova consciência. […] A partir dos anos 1700 o caminho da liberdade de consciência e de pensamento, a favor de todos, pela liberação dos “servos” de seus “senhores”, foi contado como uma épica da modernidade que avança e do progresso que guia a história.

O ponto de vista de Berardinelli é que, após a Revolução Francesa, a política tornou-se a obsessão do Ocidente, apropriando-se, pois, da posição de chave interpretativa das realizações (e também das mazelas) do espírito humano. Entretanto, tanto a esquerda quanto a direita, diz o crítico, adotaram o historicismo em suas concepções, de modo que, para ambas, o mundo transformou-se numa arena dialética, em que passado e futuro, retrocesso e progresso, elites e subalternos definem-se mutuamente num contínuo ascendente e irrefreável.

Nesse sentido, também a literatura terminou sendo absorvida nesse movimento e amiúde convocada a apresentar-se perante o suposto tribunal da História (como dizem os ideólogos de todos os matizes). E assim diversas vezes o experimentalismo formal viu-se jungido às agendas e programas partidários, e não raro os críticos não foram capazes de diferenciar manifestos políticos e estéticos – como nos célebres casos dos filofascitas Ezra Pound e Marinetti, inovadores formais às suas respectivas maneiras.

Parte da história da literatura moderna é explicada pela elevação a hipóstases de conceitos como “reação” e “revolução”; como já disse Antoine Compagnon em várias de suas obras, o ímpeto antimoderno é uma característica da arte moderna, que é tanto uma negação da tradição quanto uma tradição da negação. É por isso talvez que a corrida desenfreada pela inovação técnica ao longo dos séculos XIX e XX coexista ironicamente com um desprezo crescente pela própria ideia de progresso.

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