por Thiago Blumenthal
Sem revanche não há literatura. Ou talvez sequer haja vida. A questão ultrapassa a mera fundamentação darwinista, com a qual simpatizo, ou os primeiros escritos de Freud. Não é somente genética, nem é somente uma regulação de interações sociais de um ego reprimido, ou envergonhado, que foi abusado. A vingança nos atinge quase como um sistema de controle social. E ativa em nós, humanos, seres sociais e interdependentes, uma labareda que sai do coração e se cospe boca afora.
Darei neste semestre, com mais três professores, sendo dois do Direito, na Universidade Presbiteriana Mackenzie, um curso sobre Direito e Literatura. Um tema que já há um bom tempo me seduz, talvez desde as minhas primeiras leituras de Swift e de Balzac, embora ainda nesse tempo eu não instrumentalizasse nenhum material ou ideia teórica. Só me fazia pensar. A coisa foi criando corpo, como se diz, até que o professor Júlio Vellozo, do Direito, em uma aula que ministrei naquela Faculdade sobre Franz Kafka, me propôs o curso aos alunos da universidade, unindo os corpos docentes e discentes dos cursos de Letras e do Direito. Topei de imediato e trouxemos ao time os professores Cristhiano Aguiar e Silvio Almeida.
A ideia é fazermos módulos diversos, em semestres variados, com recortes distintos. Não faltam recortes. Dá para ter um módulo somente de russos, outro de americanos do pós-guerra, outro de literaturas diaspóricas. Os contornos podem ser geográficos, históricos, políticos, muitas possibilidades. Dá até para tratar, quem sabe, de ficção científica e direito. Contudo, nesse primeiro módulo, optamos pela literatura brasileira a partir de José de Alencar. Falaremos de Alencar, Machado de Assis, Guimarães Rosa e, por fim, Carolina Maria de Jesus, com seu Quarto de Despejo.
Mas não estou aqui para falar do curso, nem para fazer propaganda do mesmo (inscrições encerradas e esgotadas – com público externo, além dos alunos da universidade). Queria traçar aqui alguns exemplos e algumas ideias de como os dois campos se tocam. E principalmente reiterar a importância desse tipo de estudo interdisciplinar nas humanidades. Em um momento de crise nas humanas, creio eu que um dos caminhos é justamente o de aglutinar interesses afins e abrir as portas de cada gueto ou de cada superestrutura do conhecimento em um ambiente acadêmico que se faça ciência de verdade, em que ideias possam ser apresentadas, debatidas. E, em especial, que isso sirva para algo além dos corredores acadêmicos.
Pergunto-me qual a finalidade do conhecimento senão o de difusão a diversos e variados setores da sociedade. Vejo muita gente boa abrindo debates, em casas culturais da moda, mas que falam de si para si. Como diz o jargão, pregam aos convertidos. O difícil está em, por exemplo, fazer as pessoas lerem ficção em um ambiente em que a Literatura é mal vista, pouco apreciada ou filtrada pelas lentes do preconceito (antiquada, chata, inútil, you name it). Principalmente num palco acadêmico, de discussão séria. No último curso que fui de curioso numa dessas casas culturais apareceu um “psicanalista”, sem formação nenhuma, nem médica tampouco psicanalítica. E a manada aplaude, não se discute. Apenas se celebra o conhecimento. Que conhecimento não sei. Mas divago.
Em geral, o que noto em toda a história da literatura é que a lei se retrata em um tom de escárnio, mais do que propriamente de indignação. Antes de uma regulação mosaica, para ficar no caso do mito hebraico-cristão, pois não pretendo me estender no assunto (e talvez dividi-lo), temos uma ideia de um poder arbitrário de um status quo – o pai, em geral, ou o irmão. James Boyd White fala em algo como “cultura do argumento”, em livros como Justice as Translationou seu When Words Have their Meanings, como aproximação de uma ideia de justiça, de uma lei.
Opiniões judiciais, enfatiza, são ao mesmo tempo algo que faz parte da estética, da ética e da política. Em um mundo primitivo onde tais ideias não estavam muito bem ou nem um pouco cristalizadas, não poderia haver espaço para qualquer ideal judicial. Tanto que o Deus do Antigo Testamento não é lá muito célebre por suas coerências ou mesmo suas afinações com o mundo abrâmico. Nem nenhum deus totêmico, ou autoridade divina, tem condições de ser coerente o tempo inteiro em suas “leis”. Costumeiramente se contradizem.
Neste sentido a lei nos ensina como viver em um mundo em que cada cultura tem seu próprio solo, feito dela mesma, como uma língua é feita a partir de seus primeiros rabiscos em pedras ou paredes. E, ao conhecer-se uma lei, e segui-la, ou temer seus preceitos, o universo ficcional também se autorregula pelo trânsito de seu tempo, de seus deslocamentos narrativos em um determinado contexto. Como ignorar o peso da lei em Shakespeare, por exemplo? Ou em Kafka, para citarmos o óbvio. Ou, ainda, no caso de Alencar, que abordaremos no referido curso, olhar para os seus personagens como retrato de um status quo reinante no período decadente do Segundo Império, pré-republicano brasileiro. Onde uma figura como o temido Jão Fera, do romance Til, se vê incapaz de roubar uma carteira que praticamente lhe caiu na mão, mas ao mesmo tempo não concebe a ideia de pegar em uma enxada, algo que considerava “trabalho de escravo”. Há uma lei, mais do que isso, há uma dinâmica ética, estética e política que se interioria no pensamento de Jão Fera, e o papel de seu narrador é expô-la, nas sutilezas da literatura.
Nas artes, e o cinema se apropriou tão bem disso, a ideia da lei como “revanche” toca na questão da lei propriamente dita, formal, mas como uma peça de lei moldada em si própria, informal, que atiça a todos nós, personagens da vida real e ficcional, protagonistas de nossas vidas e meros leitores. Em termos psicológicos, a paixão pela revanche é a antítese do pensamento instrumental ou racional. Quando não se tem mais esperança (e quantas vezes na vida, ou diante das histórias que lemos, não temos mais esperança?), ou então não se fia em instrumentos legais, a revanche surge como saída possível. O que gera novos atos de revanche, em desdobramento, e assim temos o caráter aventuresco da literatura – e da vida, oras.
Culturas em que a vingança tem um papel significativo na regulação de interações sociais enfatizam uma espécie de senso de honra, nos ensinou Freud. E a vergonha, reação primeira à desonra, ajuda a ultrapassar o medo e faz com que a vítima retalie o ataque ou o abuso sofridos. E la nave va.
Interessante notar como na antiga lei romana, ou mesmo na anglo-saxã ou germânica, se um ladrão fosse pego em flagrante ele tinha uma pena maior (em geral, pena capital ou escravidão) do que se pego dias depois da infração. Por isso o sentimento de vingança permeia a vida e a literatura, e o direito. Porque enquanto o direito pode ser um instrumento que serve para excluir arbitrariedades, o tempo corre, o relógio é urgente. A vida nos ultrapassa, dirá a canção.
Mesmo na sociedade moderna, a vingança tem um papel especial, suplementar à lei formal. James Fitzjames Stephen, teórico legalista do século XIX, afirmou ser desejável o componente de ódio. Sem o mesmo, haveria pouca pressão para se fazer a lei formal.
Talvez a vingança seja um mau sistema de justiça. Concordemos todos para o bem e para a ordem das nações. No entanto, não nos ceguemos aos contextos das obras produzidas, e dos males produzidos pela humanidade e por seus personagens. A Odisseia retrata a vingança como um ato ordinário e não há como não vibrarmos, nós leitores de tantas e tantas gerações e culturas adiante, quando Ulisses abate com muito sangue a jorrar pelos versos, a flechadas, os pretendentes de Penélope e retalha as inúmeras donzelas que com eles se deitaram.