Dora Ferreira da Silva: Mito e Arcaísmo

O desaparecimento de Dora Ferreira da Silva (1919-2006) poderia marcar a condenação de uma de nossas maiores poetisas a um lugar naquele cemitério dos poetas que é também o umbral de seu esquecimento.

por Rodrigo de Lemos

O desaparecimento de Dora Ferreira da Silva (1919-2006) poderia marcar a condenação de uma de nossas maiores poetisas a um lugar naquele cemitério dos poetas que é também o umbral de seu esquecimento. A passagem dos dez anos de sua morte é ocasião para lembrá-la à altura de sua figura e de sua obra.

A escritora Dora Ferreira da Silva. Foto: Reprodução.

Dora Ferreira da Silva teria realizado aquele “difícil e secreto matrimônio entre o que e o como da expressão verbal, entre um pensamento que se emociona e uma emoção que pensa”, como define Ivan Junqueira, lembrando Eliot, no prefácio a Appassionata (poema publicado postumamente pelo Instituto Moreira Salles em 2007). Impressiona sua dicção, nisso irmanando-se ela a outra de nossas grandes poetisas, Hilda Hilst. Não reside seu valor primeiro no cantar do seu verso (ainda que ele esteja ali), nem nas surpresas que revelam suas imagens (ainda que elas o façam em abundância), nem no uso dos sortilégios sintáticos e semânticos recenseados pelas retóricas (ainda que, de toda evidência, Dora Ferreira os conhecesse), mas na maneira como uma voz personalíssima parece planar, soberana, sobre o verso, indefinível e inapreensível por ele. Daí essa impressão de não-poder-não-dizer que comunica o artista “grávido do seu tema” (como queria Benedetto Croce) e que caracteriza os melhores de seus poemas. Quantas vezes um poeta iniciante, ou simplesmente pouco inspirado, não vê a própria voz cair refém das artimanhas com que se esforça a elevar sua linguagem à divindade da expressão poética?

Hades

Da profunda cisterna da Noite
tuas pupilas perseguiam estrelas frias.
Sombras em torno de ti rondavam. Só lágrimas
e a antiga alegria, pena, a mais severa,
Tudo perdido fora do círculo dos deuses
jubilosos. Tuas mãos pediam o fardo cálido,
pressentido na campina e a flor do único sorriso
que te movera além da treva. E ousaste!
Contra leis e deus. Tocara-te Amor
e tremias sob a Lua sublevada. Flores
perfumaram teu reino. Embora tristonha em seu trono,
Perséfone era o bem que te faltava.

Versos assim são dos momentos felizes da língua portuguesa. Despojada de qualquer veleidade de estilo, ela vibra como que sob um sopro inefável e se aviva mesmo em seus defeitos. Seria filistinismo repreender a repetição de “sob” no antepenúltimo verso (“Tocara-te Amor/ e tremias sob a Lua sublevada”) quando, com uns poucos toques sabiamente arranjados, Dora Ferreira da Silva cria nesse trecho uma imagem delicadíssima: o gesto do cupido travesso; a expressão toda física (e tão helênica, tão sáfica!) do ardor que seu simples toque provoca; a lua alta, figura da desmesura do amante e imagem da Perséfone inatingida.

“Hades” é uma das Hídrias, coleção de 25 pequenos poemas pela qual Dora Ferreira da Silva recebeu o Prêmio Jabuti em 2005 (ela já o recebera em duas outras ocasiões: por Andanças, em 1970, e por Poemas da Estrangeira, em 1996, ambos coligidos pela Topbooks em Poesia Reunida, ganhador do Prêmio Machado de Assis, da Academia). Não é o menor dos méritos de Dora Ferreira da Silva haver, nesse livro, encenado um grand retour do mito grego à poesia brasileira – mito grego que fora exilado pelo Modernismo como reminiscência de esmaecidas pastorais setecentistas e da literatura burguesa afrancesada (salvo, faça-se justiça, por incursões alto-modernistas como as de Drummond em partes de Claro enigma ou as de Jorge de Lima em Invenção de Orfeu). Nas Hídrias, o mito reveste-se de um tom de arcaísmo que não é sem lembrar Hesíodo – não, bem entendido, um arcaísmo de expressão (o português aí é definitivamente o português literário contemporâneo), mas arcaísmo da violência inocente com que nele se expressam as pulsões humanas mais primevas.

Mito e arcaísmo contribuem a situar muitos de seus poemas na linha da poesia órfica praticada também por um Rilke (significativamente, Dora Ferreira assina uma célebre tradução das Elegias de Duíno).

É preciso tempo
o vagar dos crepúsculos
o começo
a promessa
o findar das estações
um olhar calmo sobre a vida;
formas
contornam sensações
o céu infinito
explode cósmica
ternura.
(…)

Vivos e mortos
perambulam nas estradas
um sorriso nos lábios
O que dizem
no silêncio
agora pleno
da alma?

Appassionata.

Esses versos de Appassionata integram duas intuições fundamentais de sua poesia. Primeiro, a da permeabilidade mútua entre o mundo dos vivos e o dos mortos de que trata Rilke nas Elegias e cujo símbolo se encontra no mito do aedo que desce ao Hades em busca da amada Eurídice. Há também um traço, talvez pré-moderno na história das ciências ou da filosofia, mas característico de parte importante da poesia moderna: um orfismo por assim dizer cósmico que marca a obra de um Paul Claudel e que Mallarmé* formulara como a busca do poeta de oferecer uma “explicação órfica da Terra”. Música, palavra ritmada: vias para apreender a vastidão e os ritmos do cosmos – no caso de Dora, o infinito do céu é sentido em sua “cósmica ternura” nas variações da sonata de Beethoven.

Que em Mallarmé o orfismo poético vá de par com uma explicação intelectiva de um cosmos cuja impessoalidade sua arte aspira a igualar; que, pela música, Dora Ferreira da Silva faça a experiência de uma “ternura cósmica”, como a de um ente vivo – eis o que dá a ver a distância entre duas poéticas, uma cerebrina, outra de marcado apelo passional (Appassionata). Eis também o que revela o profundo arcaísmo na poesia de Dora Ferreira da Silva, para a qual tudo está cheio de deuses.

* A marca de Mallarmé faz-se sentir ainda em O Leque, poema editado postumamente, em 2007, em um elegante volume pelo Instituto Moreira Salles, que detem os arquivos da poetisa. Não somente o tema retoma os Éventail que Mallarmé compusera a partir dos leques de sua esposa e de sua filha; também a forma de apreensão do mundo é significativamente mallarmaica, não só pela referência à dança (arte de eleição do mestre francês), mas pela convergência com o propósito afirmado por Mallarmé de “pintar não a coisa, mas o efeito que ela produz”: “O leque se desdobra/ junto à face./ E dança desenhando os traços/ no ir e vir de sua pretensão:/ ser brisa. Fora, a noite./ Dentro: o teatro se ilumina”.

COMPARTILHE: