por José Francisco Botelho
Em uma chuvosa noite de verão em 1936, no plácido balneário de Key West, Flórida, meu poeta favorito levou um soco no meio da cara. O golpe fatídico projetou-o a uma considerável distância, fazendo-o aterrissar em uma poça no meio da rua; nesse abjeto assento pluvial, viu-se obrigado a curar, salomonicamente, mais uma de suas famigeradas bebedeiras. A cena ganhará tintas ainda mais antológicas se, olhando para o lado, através da chuva, divisarmos o autor do soco. Além de proverbial figura literária da década de 30, foi também um célebre dispensador de murros e bofetadas, cujas habilidades pugilísticas tornaram-se legendárias de Michigan a Montmartre: era ele quem defendia James Joyce, seu amigo menos que atlético, em decantadas brigas de bar nas noitadas parisienses. Talvez haja algo de emblemático naquele drama desenrolado sob a noite chuvosa da Flórida: não representa exatamente o embate de forças titânicas, mas demonstra que as grandes mentes deste mundo não estão imunes a palhaçadas (o que, de certa forma, pode nos soar como um alívio). O homem que desferiu o soco era Ernest Hemingway, e o vate sentado na poça era mon frère du ciel, Wallace Stevens.
A luta, claro, não foi justa. Hemingway era um aventureiro na casa dos trinta, enquanto Stevens era um executivo com mais de cinquenta. Embora corpulento e grandalhão, o habilíssimo poeta e esforçado corretor de seguros não poderia competir, em simples termos de agon físico, com o jovem autor de O sol também se levanta – êmulo de toureadores, famoso algoz de leões africanos. Mas não deixemos que a natural simpatia pelo perdedor borre nosso juízo. Stevens, na poça, não era exatamente um Heitor derrubado por Aquiles. Ao que parece, a razão, neste caso, estava ao lado do mais forte. Diversos testemunhos garantem que Stevens era o que os americanos chamam de um mean drunk, um bêbado perverso. Além disso, não tinha espírito muito gregário em relação aos colegas de ofício. Por algum motivo obscuro, antipatizava e implicava com Hemingway. (Razões estéticas, quem sabe? Dificilmente haverá dois escritores mais diferentes).
Naquela mesma noite, durante uma festa, Stevens havia atormentado Ursula Hemingway com zombarias etílicas contra seu irmão. E jactou-se, em público: “Se ele estivesse aqui, eu o derrubaria com uma única porrada”. As Moiras então agiram, fazendo com que o desbocado Wallace se deparasse com um vingativo Ernest na saída da festa. Segundo os relatos que nos chegaram, Stevens foi o primeiro a investir, tentando acertar o escritor júnior na cara. Acertou-o, de fato: mas, em vez de machucar o rival, quebrou a própria mão. Hemingway, em seguida, tirou os óculos e encerrou o grande duelo com a rapidez cortante de uma frase sem adjetivos. Wallace Stevens passou cinco dias trancado no hotel, com o rosto inchado. Sóbrio, lesionado, com a hybris guardada no bolso, foi pedir desculpas pelo mau comportamento. Os dois escritores fizeram as pazes, mas Ernest não deixou de notar, mais tarde, em uma carta: “Garanto que nada se compara a Mr. Stevens voando de forma espetacular, especialmente quando o voo termina em uma grande poça de água na frente de um velho casarão em Waddel Street”.
Se refiro esse triste acontecimento, não o faço por simples apreço à fofoca literária (bem, não apenas por isso). Refiro-o por seu caráter simbólico. Para mim, pessoalmente, o duelo em Key West é emblemático em outro sentido: eu próprio lutei contra Wallace Stevens por anos. Mas não consegui acertá-lo. Minha luta se pareceu mais àquela entre Jacó e o Anjo; lutei até o raiar do sol e fatalmente perdi. Dentre os poetas que amo, Wallace Stevens é aquele que não pude nem jamais poderei traduzir.
Como o chimarrão, as cervejas stout e o raciocínio lógico, a poesia de Wallace Stevens é, em vários casos, um gosto adquirido. Muitos o acusaram de um hermetismo ostensivo e talvez vaidoso. (Robert Frost reclamou, famosamente: “Não gosto dele, porque me obriga a pensar demais”.) Não há como negar que suas imagens e metáforas tenham algo de implacável: não condescendem em nada; dizem apenas, e exatamente, o que vieram dizer. Por sorte, descobri Stevens em uma fase tão confusa de minha vida que até o mais árduo labirinto me parecia uma saída, e não uma armadilha. Guardo ainda hoje aquele primeiro exemplar: uma edição bilíngue da Companhia das Letras, com tradução de Paulo Henriques Britto. Fiquei obcecado por sua combinação de extravagância e ascetismo. Cada linha parecia conter uma verdade misteriosa, quase inapreensível, oscilando nos limites da compreensão. Senti naquela poesia obscura o raio de uma imaginação poderosa, capaz de nos remeter às fronteiras agrestes da mente humana. Reli-o com fervor apostólico. Muitos de seus versos se mesclaram de tal maneira a meus próprios pensamentos que eu teria dificuldade em imaginar a mim mesmo sem eles. “Death is the mother of beauty”. “The imperfect is our Paradise”. “The walker in the moonlight walks alone, and in his heart his disbelief lays cold”. “Place honey on the altars and die, you lovers that are bitter at heart” (Na tradução de Paulo Henriques Britto: “A morte é a mãe de todo o belo” – “A imperfeição é o nosso paraíso” – “O andarilho ao luar ia sozinho/ O coração frio de incredulidade” – “Deitai mel nos altares e morrei/ Oh amantes de coração amargo”).
Procurei os poemas que não haviam sido traduzidos por Britto e tentei, insensatamente, vertê-los eu mesmo. Fracassei reiteradas vezes. E acabei me convencendo de que não tinha talento para a literatura. Minha obsessão por Wallace Stevens quase me levou a desistir, precocemente, da escrita. Felizmente, encontrei consolo em outra obsessão: o conto. Decidi dominar o relato curto, para prolongar a alma. Depois vieram as traduções de Chaucer e Shakespeare. Esqueci Stevens por um tempo.
Passei anos sem relê-lo. Então, há cerca de um mês, por total acaso, nos reencontramos. Estava eu em New Haven, Connecticut, dando umas palestras. Uma amiga americana me levou para dar um breve passeio de carro na capital, Hartford. Lá pelas tantas, comentou: “Wallace Stevens morava aqui perto”. Perguntei se a casa ainda existia; ela disse que sim e me levou até lá. “Ele ia compondo seus poemas enquanto caminhava por este trajeto”, disse, mostrando-me a rua, adornada por esses casarões pontudos e solenes, típicos da Nova Inglaterra. Pedi que parasse o carro. Estávamos com pressa, mas ainda nos restavam uns minutos de passeio.
Então eu caminhei pela grama nevada de Connecticut, sob o sol de inverno, imaginando que era Mr. Stevens.
“Life’s nonsense pierces us with strange relation”, escreveu Stevens em um de seus melhores poemas. Como poderíamos traduzir isso? Talvez: “O sem-sentido da vida nos trespassa com nexos estranhos”. Aquela imaginada metempsicose, que não chegou a durar quinze minutos, me curou da tal angústia da influência. De volta ao Brasil, constatei, feliz, que continuava incapaz de traduzir Stevens e que isso já não importava. O anjo bíblico não me torcia mais o pescoço. Agora eu podia relê-lo em paz.