Entre letras e leis: a obra póstuma de Stefano Cicconetti

Entre letras e leis: mais do que uma resenha, um tributo a Stefano Cicconetti, o Prof. Stefano, num ensaio de Anderson Vichinkeski Teixeira.

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(Reprodução)

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No final de 2021 a prestigiada editora milanesa Giuffrè publicou, em sua série “Diritto e rovescio”, destinada a veicular textos que tenham também pretensão literária, uma obra póstuma que merece especial atenção: Suonala ancora, Chet, de autoria de Stefano Maria Cicconetti. O primeiro ponto de destaque é o fato de ter sido a obra organizada, com especial zelo e carinho, pela sua esposa Maria Teresa Calabrò Cicconetti com base em textos localizados no apartamento do casal quase por acaso, como diz ela no seu Posfácio. O segundo ponto a destacar, de início, é a natureza em si do livro: sete contos, com temas distintos entre si, com aguçado senso literário em seu estilo redacional. O Professor Stefano teve sempre como uma marca singular em suas publicações acadêmicas o rigorismo científico e a capacidade de abordar conceitos jurídicos abstratos no âmbito do Direito Constitucional italiano sem perder a vinculação crítica com a dogmática em si da norma examinada.

Antes de seguir neste brevíssimo ensaio sobre Suonala ancora, Chet, algumas considerações biográficas precisam ser recuperadas. Stefano Maria Cicconetti (Roma, 13 de junho de 1940; Roma, 01 de abril de 2020) foi um dos constitucionalistas italianos mais importantes de sua geração. Nos anos 1970, iniciou sua carreira docente com passagens pelas Universidades de Catania, Genova e Perugia, mas também atuou como consultor parlamentar na Câmara dos Deputados até meados da década seguinte. Em 1994, assume a titularidade da cátedra de Direito Constitucional na Universidade Roma Tre, ocupando a função de Diretor da Faculdade de Direito entre 1998 e 2005. Em 2013, recebe o título de Professor Emérito da Universidade Roma Tre, ano em que entra em aposentadoria. Suas obras trataram de temas como direito parlamentar, fontes do direito, dogmática da Constituição italiana, mas sobre jurisdição constitucional, desde seus aspectos funcionais-estruturantes até sua necessária crítica à jurisprudência da Corte, é onde ousaria dizer sua obra possui uma singular originalidade. Desde 1972, quando analisa o tema da revisão constitucional, seja ela por processo formal, seja por processo informal, como em cortes constitucionais, Cicconetti dedicou sempre livros e artigos ao tema geral jurisdição constitucional. Em português, tive a honra de publicar em coautoria o Jurisdição constitucional comparada[1], obra cujo primeiro capítulo reflete a densidade e profundidade analítica que muito caracterizava Cicconetti, fosse como professor ou como autor.

Em meio à tragicidade inédita da pandemia de COVID-19, o falecimento do Professor Stefano ocorreu em razão de problemas de saúde que já o acometiam nos últimos anos. Todavia, ter se passado em um dos momentos de maior intensidade das medidas de restrição sanitária deixou mais dilatado todos os tempos para as devidas homenagens e reconhecimentos pela sua memória. Fora em 08 de abril de 2022 que a Faculdade de Direito da Universidade Roma Tre conseguiu organizar um evento em sua homenagem, tendo como tema de fundo os regulamentos parlamentares — um dos objetos de estudo mais relevantes para Cicconetti. Muito embora tenha sido um evento acadêmico, a “jornada de estudo em memória de Stefano Cicconetti” não deixou de também celebrar a publicação de sua obra Suonala ancora, Chet.

Conheci pessoalmente o Professor Stefano em 2006, depois de termos mantido intenso contato por email ao longo de 2004, quando eu buscava, a pedido do Professor Ingo Sarlet, no Mestrado em Direito da PUC/RS, aprofundar bibliografias acerca do tema da revisão constitucional na Itália. O denso artigo[2] “revisione della costituzione”, cuja temática atualizava algumas questões pontuais em livro precedente de similar título[3], fora o nosso ponto de partida para discussões que, mesmo por meio da frieza do contato por email, já revelam duas características distintivas do Professor Stefano: a gentileza na relação interpessoal e o amor pelas letras. Não é usual um autor cujo texto está sendo traduzido para outro idioma demonstrar preocupação com o modo como linguisticamente aquelas ideias seriam veiculadas em língua que não lhe é a materna. Esse ponto já me chamou atenção desde quando propusemos a publicação de seu artigo em português. Ao me relatar, ainda por email, as diferenças dentro da própria língua italiana que podem resultar em estilos redacionais incompatíveis com o rigorismo epistêmico da dogmática do Direito Constitucional daquele país, pude perceber que as letras eram para ele mais do que meios de expressar ideais.

No início do Doutorado, estive em Roma para visitar bibliotecas e o Professor Stefano muito gentilmente me convidou para conhecer sua biblioteca pessoal, onde estava instalado também seu escritório. Ingenuamente imaginando ver uma “sala” ou, no máximo, um espaço ampliado que serviria de biblioteca pessoal, deparei-me com, literalmente, um apartamento inteiro convertido em biblioteca pessoal! Embora tenha sido uma conversa rápida, nossos assuntos acabaram monopolizados pela minha curiosidade em saber como alguém com tão elevado rigorismo metodológico no Direito Constitucional poderia ter interesses literários tão diferentes e heterogêneos, passando desde textos da Antiguidade, em especial gregos, muitos dos quais bilingues, até romances policiais daquela mesma década em que estávamos. A conversa, por mais que tenha sido breve, foi-me altamente enriquecedora ao ver um célebre constitucionalista discorrer sobre o sentido das letras para a expressão humana mais ampliada. Letras não exprimem apenas ideias, intenções ou vontades: elas possuem o condão de vincular autor, leitor e objeto versado dentro de um mesmo universo de significação. Isto é, a palavra dita nunca deve ser tida como palavra solta, pois ela veicula algum sentido que talvez só seja compreendido por quem estiver imerso naquele universo de significação.

Foi então que ele usa como exemplo os seus “textos literários da juventude”. Movido por uma óbvia curiosidade, tentei desenvolver o assunto sobre onde estariam tais textos, publicados ou não, mas percebi que ele recalcitrou por um momento diante da sua frase expressa em um momento no qual duas pessoas discutiam exatamente sobre estilos redacionais. E o seu rígido estilo no âmbito jurídico-constitucional parecia, ao meu sentir, naquele momento, não comportar a publicidade que um “romancista Sfefano Cicconetti” poderia desvelar com textos notadamente literários. Com mais curiosidade do que polidez, insisti no assunto e, com a habitual gentileza, o constitucionalista-autor me responde que: “Não foram publicados, pois são muito breves. Estão em algum lugar onde não sei até.”

Passados anos, uma década e meia, recebi pelo correio — já publicado em formato livro! — a excelente notícia, em meio à pandemia que tantas más notícias diariamente nos trouxe, de que sua esposa Terry havia encontrado tais textos em uma caderneta azul pálida perdida em meio aos inúmeros livros que o Professor Stefano deixara. No inverno romano de 2005 para 2006 não tive a oportunidade de conhecê-la pessoalmente, o que viria a ocorrer no ano seguinte, o que penso fez a rápida conversa sobre os “textos literários da juventude” terminar nunca referida a ela. Terry tinha também, além de uma especial afetuosidade e generosidade, essa mesma paixão pelas letras, tanto que muito cuidadosamente organizou a obra póstuma ao seu companheiro de décadas de matrimônio dando título a partir de um dos contos da obra: Suona ancora, Chet. Bom humor, perspicácia e gosto pelo jazz alimentam os personagens do conto que conclui o livro, refletindo aspectos que talvez Terry desejasse ver como mais marcantes na obra que organizava.

Percebe-se que, ainda jovem, na faixa dos vinte anos, Stefano logrou sucesso em prender o leitor ao longo de algo poderia virar um romance policial, caso fosse alongado, isto é, o texto que abre a sequência do livro: L’único testimone.Vencedor do concurso de contos da editora Mondadori, em 19 de agosto de 1962, a “única testemunha” é o único desses textos que fora publicado; desvela um jovem Stefano atento à importância de frases breves, com riqueza de detalhes e precisão em transformar ânimos subjetivos adjacentes à cena de um crime em palavras concretas e assertivas de quem sobre ela versa. Desde o sangue no chão, na segunda página, até o surpreendente final, no parágrafo derradeiro, o autor Stefano não esquece por nenhum momento que a locução verbal e a intensidade de adjetivos e advérbios precisamente empregados valem mais do que qualquer possível escatologia linguística que se pretenda empregar para deixar o leitor com a respiração presa até o final!

Não irei comentar todos os contos, cabendo ao leitor possivelmente interessado o prazer dessa leitura que muito ensina sobre as múltiplas possibilidades de emprego da língua italiana. Porém, há um conto que a mim chama especial atenção: Il nonno. “O avô” é uma breve história de um avô que recebe a visita de sua netinha. Nada mais sem graça ou entediante, poderia um desavisado pensar. O que me deixa profundamente surpreso é a capacidade de um Stefano, com não muito mais do que 20 anos de idade, compreender as preocupações e angústias de um idoso com a saúde aparentemente debilitada pela longa idade. Desde a percepção do tempo que muda, cessando a chuva, até o modo como se preocupa mais com o bem-estar e estudos da netinha pequena, em vez de ansiar pela sua maior presença física, são aspectos difíceis ou, diria até, muito raros, para alguém tão jovem se atentar. Particularmente, percebo e compreendo hoje, com o dobro de idade daquele jovem Stefano, os mesmos anseios e preocupações do nonno; não por estar na terceira idade, mas por acompanhar pessoas que nela chegam e dela passam, por ter alteridade em relação a elas, por compreender a importância relativa do tempo e o caráter único da experiência vivida — sobretudo quando bem vivida!

Enfim, sem pretensões de resenhar a obra Suona ancora, Chet, deixo meus anseios de uma boa leitura a quem essa possa interessar. Mas, no fundo, deixo uma homenagem a alguém que, embora não tenha sido formalmente meu professor, foi uma das mais importantes referências pessoais e acadêmicas que conheci ao longo da vida, o eterno Professor Stefano, e a sua família, na pessoa da sua adorável esposa Terry.

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Stefano Cicconetti (Reprodução)

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Notas:

[1] CICCONETTI, Stefano M; TEIXEIRA, Anderson V. Jurisdição constitucional comparada: Itália, Brasil, Alemanha, França e EUA. 2ª ed. Belo Horizonte, Fórum, 2018.

[2] CICCONETTI, Stafano M. Revisione costituzionale. Enciclopedia del diritto, XL, 1989, p. 134-157. Publicado em português “Revisão constitucional na Itália”. Revista de Direito do Estado, Vol. 8, 2008.

[3] CICCONETTI, Stafano M. La revisione della costituzione. Padova: CEDAM, 1972...

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