Entre o Romantismo e Machado de Assis: a literatura nacional

Em seu artigo de estreia como colaborador do Estado da Arte, o professor da Universidade Federal de Pernambuco Eduardo Melo França escreve sobre a busca por uma literatura nacional: dos românticos a Machado de Assis.

por Eduardo Melo França

Quando se pensa em literatura brasileira, deve-se ter em mente muito mais do que um título supostamente inconteste e neutro sob o qual podemos agrupar de forma mais ou menos cronológica os textos escritos por autores considerados nacionais. A literatura brasileira é antes de tudo um conceito, uma expressão carregada de possíveis significados e propósitos estabelecidos. Como qualquer outra organização literária ou cultural, deve ser compreendida como um processo artificial; não apenas influenciado, mas conduzido por perspectivas críticas, teóricas, literárias, políticas, históricas, sociológicas e institucionais.

Pensando na forma como os mais diversos autores e obras ao longo da história são valorados e articulados em função da construção e manutenção da ideia de uma literatura brasileira, não se deve perder de vista que não são apenas os autores que projetam intenções e significados ao escreverem suas obras. Uma tradição crítica é igualmente responsável por lançar sentidos e arquitetar organizações que costuram silenciosamente toda essa teia de obras e autores, dando-lhe uma aparência de irrefutável naturalidade e incontestável teleologia. Por isso, mapear os propósitos implícitos e explícitos, assim como as principais etapas e atores envolvidos no processo de solidificação ou cristalização desse conceito significa desnaturalizá-lo, mas também criar novas possibilidades de ampliá-lo. Pensar em novos critérios de organização e análise das obras e autores que constituem a literatura brasileira nos permitiria investigar os meandros da construção e legitimação de uma ideia fundada no século XIX e que para seguir o rumo pretendido ora rejeitou ora privilegiou missões, autores, obras, temas, formas, teorias e metodologias.

Ao longo do processo de fundação da literatura brasileira, no século XIX, no Romantismo, a condição literária se equivaleu a um projeto nacional. Partiu-se do princípio de que, por um lado, para que fosse possível a existência de uma literatura nacional seria preciso antes que houvesse uma nação à qual ela fizesse referência, dela fosse fruto ou de alguma forma com ela se relacionasse ou expressasse. Por outro lado, a existência de uma literatura nacional passou a ser parte fundante de um projeto que pretendia elevar o Brasil à condição de nação, com território e organização política definida, uso expressivo da língua e cultura representativa. Naquele momento, em solo brasileiro, literatura e nação não se ultrapassavam, mas se equivaliam e se constituíam como realidade e ficção criadora uma da outra. Ser romântico era ser nacional, que por sua vez era ser moderno; a independência nacional nos levaria à independência literária e esta reafirmaria nossa autonomia como povo, nação e produtor de uma cultura autônoma.

Ao longo do século XIX, a interdependência entre uma literatura que precisava de uma nação para se tornar nacional e de uma nação que precisava de uma literatura para se legitimar com plenamente autônoma e independente nos fez crer que caberia também à literatura a missão de pensar, representar ou mesmo fundar o país, muito porque, se o Romantismo iniciou um projeto determinante de modernidade literária, este, em terras brasileiras, concretizou-se principalmente num gesto nacionalista. A fundação da literatura brasileira se confunde com a emergência de um ideal nacional e autônomo, que por sua vez se alicerça em um projeto romântico e moderno.

Se historicamente o século XIX marca a nossa separação política de Portugal, literariamente podemos dizer que as dimensões estética, social, filosófica e psicológica propostas pelos românticos europeus se harmonizaram na realidade brasileira com um objetivo específico e determinante: uma ruptura com o passado literário português e a fundação de uma nova tradição literária, simultaneamente nacional, moderna e romântica, radicalmente distinta da de Portugal, tal como ocorria entre as duas nações no processo histórico. Para que se instituísse uma fundação literária nacional brasileira seria preciso que se constituísse um momento de ruptura radical diante de tudo que antecede o ato fundador. De outra forma, permanecendo ligados a um projeto de continuidade que havia antes do século XIX, continuaríamos dependentes da literatura e cultura portuguesa.

Embalados pela vontade de ruptura que nos levou à independência política, nossos românticos, no afã de fundar uma literatura nacional e igualmente independente, se colocaram em uma encruzilhada. Se a fundação de uma literatura brasileira autônoma dependia diretamente de uma ruptura completa em relação a qualquer traço da cultura e literatura portuguesa, um problema se impunha: como construir uma literatura originalmente brasileira se até aquele momento nossa cultura era fundamentalmente portuguesa? Ainda, a partir de qual repertório cultural e literária construiríamos essa literatura autenticamente nacional?

Ora, se até o princípio do século XIX todo repertório cultural brasileiro se remetia à uma herança lusitana, seria preciso refundar a nação, tanto política quanto culturalmente, sem que a sombra da colonização literária e política permanecesse. Como, então, fazer nascer essa literatura nacional, que expressasse uma condição autônoma e brasileira e que por isso fosse completamente distinta da portuguesa, já que o ímpeto de renovação romântica nos levara ao corte radical com o passado português? Em outras palavras, como produzir uma literatura brasileira se até então não havíamos problematizados suficientemente o que significava ser brasileiro? O que colocar nessa nova literatura que de uma forma ou de outra pudesse nos fazer diferente de Portugal. Bem, na falta desse lastro cultural essencialmente nosso, a solução rápida e aparentemente fácil para a construção de uma literatura nacional nos foi dada pelo Romantismo europeu/português, que nos chegava principalmente através de Denis e Garrett; a valorização e exploração literária da natureza exuberante e daquele que parecia ser o único sujeito autenticamente nacional, o índio.

Aos olhos da crítica lusitana, restaria, portanto, aos escritores brasileiros, a fim de se modernizar e construir uma literatura nacional, adotar como conteúdo temático e diferenciador as belezas da pátria, o autóctone, a cor local e o exótico como traço original definidor, marco da ruptura e instituidor da modernidade.

A persistência desse modelo romântico-historicista-nacionalista que nasce no Romantismo e parece persistente até os dias atuais também foi percebida por Regina Zilberman, que, apontando Ferdinand Denis como responsável pelas ideias que coordenaram nosso Romantismo, ressalta que o historiador francês transplantou para a literatura um modelo historiográfico no qual são “[…] as tintas [pitorescas da cor local] que garantem a nacionalidade da literatura. Ao fazê-lo, [Denis] estabelece um paradigma para a história da literatura que se mantém vivo contemporaneamente”.

Não podemos deixar passar como detalhe o fato de que se passado o século XIX e resolvido o problema da autonomia da literatura nacional os autores brasileiros alargaram seu leque temático e formal, podemos ainda assim perceber que a tentativa de reconhecer sistematicamente entre as obras brasileiras uma representação/expressão da nação é até hoje uma das marcas mais persistentes da crítica nacional.

A partir do Romantismo, de forma geral, entre autores e críticos, fazer literatura brasileira passou a significar, de diferentes modos, retratar a nação. A literatura brasileira vem sendo lida por importantes críticos como missionária de uma representação nacional. Mais do que isso, é longa a lista de estudiosos que tentaram encontrar na literatura nacional algum traço que a relacionasse incondicionalmente ao Brasil.

Vejamos, por exemplo, quatro autores basilares que retratam bem essa ideia e sua persistência: Sílvio Romero, Araripe Junior, Afrânio Coutinho e Antonio Candido. É muito importante notar que no final das contas a questão fundamental para esses críticos era encontrar um elo supostamente indissociável entre a nação, seu povo e a literatura por ele produzida. Para Sílvio Romero, assim como para Araripe Júnior, pois ambos partem do naturalismo de Hippolyte Taine, a produção nacional seria explicada se admitido seu condicionamento por três elementos: o meio, a raça e o momento. No caso de Romero, o elemento privilegiado era a raça. Para Araripe Júnior, o meio seria o fator determinante. Afrânio Coutinho, apesar de aparentemente livre das amarras românticas ou positivistas, mesmo que discretamente, lança mão da mesma tese de Araripe Júnior, a de que o meio seria determinante; a “obnubilação” causada pelo nosso clima nos portugueses que aqui aportaram criou nos trópicos um novo homem e uma nova história, o que inevitavelmente levaria a uma nova literatura. Por isso, para Coutinho, a literatura brasileira nasceria já no Barroco, coincidindo com a descoberta do Brasil, quando o português em terras tropicais deixasse de ser o mesmo português, por influência de elementos históricos e climáticos, e assumisse uma nova condição histórica e existencial. Mesmo Antonio Candido, ainda que bem mais sofisticado, apelando para uma chave sociológica não mais positivista e com importantes e pertinentes ponderações estéticas, permanece, do mesmo modo, na tentativa de traçar um elo irredutível entre a literatura brasileira e o Brasil, no caso a realidade nacional – a ideia central de Candido giraria em torno da tentativa de reconhecer na literatura brasileira a transformação do aspecto social externo em dispositivo literário interno.

O crítico Antonio Candido

Não se trata de negar que em determinados autores o Brasil e sua formação ocuparam um lugar central, como em José de Alencar, Gonçalves Dias, Lima Barreto, Euclides da Cunha e tantos outros; mas de reconhecer que a historiografia crítica, para forjar o conceito de literatura brasileira, empenhou-se na direção de instituir a relação entre nação e literatura como elemento fundador e definidor do conceito de literatura brasileira – não devemos perder de vista que há aqui a persistência do argumento romântico. Não se trata de criticar os autores que privilegiaram o Brasil como possível elemento literário, mas o pensamento crítico que insiste em classificar, valorar e organizar o que seria a literatura brasileira a partir da possibilidade de reconhecer em determinados autores esse traço de representação nacional. Como alega Sergio Paulo Rouanet, no Brasil se priorizou um pensamento historiográfico marcado por um modelo de identidade nacional tipicamente romântico, “historista” e empenhado na diferenciação em relação ao outro. Isto é, antes de nos lançarmos em investigações discursivas e artísticas sobre a dinâmica social e psicológica do Brasil e do Brasileiro, preferimos estabelecer rapidamente um limite literário diferenciador entre nós e o outro; não sabíamos quem erámos, mas queríamos nos diferenciar do outro.

A principal consequência da naturalização dessa interdependência estabelecida entre o processo de formação do Brasil, como nação, e da construção de uma identidade literária nacional e brasileira – ou, em outras palavras, da subordinação do eixo literário ao histórico – foi o empenho em delimitar e eleger os temas e formas supostamente mais apropriados para a concretização do projeto de nacionalidade literária, o que, por consequência, não deixou espaço para uma exploração da diversidade temática e formal. Como conclui Costa Lima, o veto à ficção e ao imaginário no século XIX brasileiro é decorrente de um compromisso nacionalista, de um empenho em construir uma nação e um literatura antes de tudo nacional.

Foi com essa vontade de fazer mais literatura brasileira do que literatura, adotando para si a missão de decidir quais temas seriam essencialmente nacionais e promotores de uma independência literária, que nossa literatura se tornou antes de tudo nacional e brasileira. O conceito de literatura nacional que nasce com o Romantismo deve ser compreendido antes como consequência de uma nova concepção de história, indivíduo e filosofia do que como um ponto de partida ou um desejo natural de cada nação e povo de ter uma literatura para chamar de sua. A demanda por uma nacionalidade literária é fruto de uma nova consciência histórica, da necessidade do homem de ver a si mesmo e aos seus atos não mais como entidades abstratas e imutáveis, mas como partes de momentos históricos e culturais particulares.

Um dos aspectos que define a modernidade romântica é sua pretensão de estabelecer uma relação de coerência e harmonia entre a realidade histórica, as formas e os temas, o que contrasta com o retorno às formas clássicas empreendido pelo Neoclassicismo na busca de um universalismo abstrato e anti-histórico. De forma mais ampla do que parece ter sido compreendido e explorado pelos românticos brasileiros, o que chamamos de cor local, tal como trabalhado pelos românticos franceses e alemães, resume a ideia de que a literatura deve refletir (criticamente, originalmente, ficcionalmente, etc.) a condição humana, mas em diálogo com as instituições sociais e imersa na realidade histórica na qual se inscreve.

A literatura nova, moderna e romântica mergulha na realidade histórica, reflete as ideias e dilemas do seu tempo e cultura, descrevendo e apropriando-se do que passamos a chamar de cor local. Victor Hugo, no seu clássico ensaio Do Grotesco ao Sublime, disse que “A cor local não deve estar na superfície do drama, mas no fundo, no próprio coração da obra, de onde se espalha para fora dela própria, naturalmente, igualmente, e, por assim dizer, em todos os cantos do drama, como a seiva que sobe da raiz à última folha da árvore. O drama deve estar radicalmente impregnado da cor dos tempos; ela deve, de alguma forma, estar no ar, de maneira que não se note senão ao entrar e ao sair que se mudou de século e de atmosfera”.

Se a literatura brasileira, na sua sede de identidade nacional, privilegiou uma imagem de cor local predominantemente pictórica, pitoresca e exótica, a concepção apresentada por Victor Hugo é muito menos descritivista e mais psicológica, filosófica e histórica. Victor Hugo explica o conceito de cor local como a apreensão e expressão de um modo de ser contextualizado no tempo e espaço, uma condição subjetiva particular, fosse ela condicionada pelo local ou pela época. A cor local, compreendida mais amplamente, seria aquilo que se relaciona com o que é característico do seu tempo, com um modo específico de ser na história e na cultura, mas não necessariamente com o simplesmente visual e exótico. De outra forma, tal como dito por Madame de Staël, ao fomentar a consciência histórica e, por consequência, de modo mais profundo, refletir a cor local, o Romantismo fundamenta uma harmonia entre arte, cultura, natureza e as instituições cultivadas pelo homem; valorizando, por conseguinte, os elementos nacionais, suas histórias, temas, lendas e mitos; o que, inevitavelmente, opunha-se ao processo artificial de assimilação da mitologia e das formas clássicas em plenos tempos modernos.

Se os princípios modernizantes propostos por Victor Hugo, Madame de Staël e Herder parecem em terras tupiniquins resumidos à representação do exótico, do tipicamente local – ou seja, a redução da cor local em cor nacional –, Machado de Assis, em seu ensaio “Instinto de nacionalidade”, publicado em 1873, demonstrou que a relação entre uma literatura nacional e a nação que lhe originou nasce menos de uma tentativa deliberada e institucionalizada de autonomia diante de um outro que nos precede e mais de um longo processo no qual ambas as partes, nação e literatura, mediada pelo indivíduo e a sociedade, dependem do amadurecimento mútuo dos dois lados.

Não apenas de índios em situações históricas ficcionalizadas se faz o nacional de uma literatura.

A cor local e o indianismo, tal como posta em prática pelos românticos brasileiros, simplesmente não era uma questão fundamental para o autor de Brás Cubas. Fosse a representação da natureza exuberante ou a assimilação do elemento indianista, Machado estava menos interessado em percorrer o atalho da representação nacional, que supostamente diferenciaria a literatura brasileira da portuguesa de maneira rápida e proclamada, como que um grito de independência, e mais preocupado em fazer uma literatura capaz de falar do Brasil, não através de uma imagem institucionalizada e exótica, mas a partir do brasileiro, das suas ambiguidades e contradições históricas, da força de seus desejos psicológicos, do seu aprimoramento social, de seus meandros culturais, retratando uma condição ao mesmo tempo nacional e humana. Toda a complexidade da tentativa de Machado em articular o nacional e o universal se resume na sua famosa sentença:“O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço”.

Para Machado, um autor será sempre um gênio nacional, pois, ainda que sua existência seja marcada pela individualidade e negue os atalhos instituídos que expressam as marcas óbvias e exóticas de uma nacionalidade literária, todo sujeiro trás consigo inevitavelmente elementos que constituem sua individualidade e que se forjaram a partir da cultura na qual se formou. Ou, como diz Herder, que, tal como Machado, parece conciliar dois polos aparentemente opostos como a psicologia e a história ou o indivíduo e o nacional: “em certo sentido, toda perfeição humana é nacional, secular e, estritamente considerada, individual”.

Admitir um condicionamento nacional à representação da cor local simplificada ou ao indianismo, termos e ideias que no contexto nacional em última instância se confundem, não apenas limita o leque de possibilidades da fundação de uma literatura nacional, mas também da representação e problematização do que é ser brasileiro, do seu gênio, seu modo de ser, suas expressões culturais, sociais, psicológicas e principalmente daquilo que lhe transcende a nacionalidade.

Machado não nega a especificidade e nem mesmo uma certa “função” da cor local diante do cenário romântico e de independência literária e política. No entanto, é preciso lembrar que com a ideia de sentimento íntimo ele afirma a necessidade de pluralização e relativização das possibilidades de capturar e expressar um país e seu povo. Cabe ao escritor falar não apenas do seu conterrâneo, mas do ser humano. Pensando como Machado, a literatura deve encontrar o ponto de contato entre a humanidade no seu sentido mais largo e sua expressão nacional.

Machado escreveu o “Instinto de nacionalidade” tendo em vista a situação vivida pela literatura brasileira no século XIX. No entanto, por ora, pensemos as ideias postas por Machado nesse texto menos como uma proposta sobre a literatura brasileira e mais como um modo de ver ou teorizar a possível construção de uma literatura nacional. Em outras palavras, vejamos o “Instinto de nacionalidade” como uma visão psicológica-literária sobre as implicações de se conceber uma literatura que simultaneamente se pretende nacional e universal.

Pensando dessa forma, escapando da obrigatoriedade de temáticas cristalizadas, da apreensão de uma cor local definida e principalmente se livrando da missão nacionalizante da literatura brasileira que condiciona a literatura à nação, Machado relativizou o que deveria ser compreendido como literatura nacional brasileira e como representar o brasileiro. Se admitirmos a perspectiva machadiana como íntima e psicológica, tanto a literatura nacional escapa do verde-e-amarelo quanto o brasileiro dos hábitos supostamente mais locais e regionais. Ao contrário do que se pode pensar, não se trata de negar a condição nacional aos romances, poemas e personagens. Pelo contrário, a proposta machadiana é libertadora.

Machado lançou sobre a ideia de fundação de uma literatura nacional, enquanto elemento cultural representativo de um povo, um olhar francamente psicológico. A literatura brasileira deveria propor o indivíduo nacional, e não uma imagem de nação substancializada como fonte inesgotável de possibilidades de ser brasileiro. De forma concisa e talvez um pouco extrema, poderíamos pensar que Machado propõe uma literatura nacional que nasça não do Brasil, único, exótico e imagético, mas do brasileiro, admitindo sua pluralidade psicológica, íntima e individual. Mais lhe interessava reconhecer um certo sentimento íntimo de nacionalidade na diversidade das formas humanas e literárias do que na pretensão exportadora e exótica da cor local. Se pensarmos no que escreveu Afrânio Coutinho, diremos que o Instinto de nacionalidade se situa na passagem de um segundo para um terceiro e mais amadurecido tipo de nacionalismo literário, que nas suas palavras seria um “[…] brasileirismo [ou sentimento nacional] interior”.

A complexidade do “Instinto” está no duplo nó que ele pretende não desatar, mas aprimorar e esclarecer. Sua proposta se situa numa encruzilhada entre a leitura psicológica e histórica da literatura. Ao mesmo tempo em que admite a ideia de uma literatura nacional e representativa de um povo, Machado sublinha o risco de só “[…] reconhece[r] o espírito nacional nas obras que tratam de assunto local, doutrina que, a ser exata, limitaria muito os cabedais da nossa literatura”. Além do que, Machado não parecia acreditar muito no índio como chave da descoberta de nossa essência nacional. Para ele, “É certo que a civilização brasileira não está ligada ao elemento indiano, nem dele recebeu influxo algum”. O autor do psicológico romance Dom Casmurro desejava compreender a literatura brasileira antes como literatura, da mesma forma que lhe interessava o brasileiro antes como ser humano. A chave que importa é aquela que nos permite ver na ideia de sentimento íntimo o reconhecimento do homem e do brasileiro não apenas nos símbolos nacionais ou nas temáticas pretensamente universais, mas em todos os atos e formas de representação literária. Lembremos do conto “O empréstimo”, do próprio Machado, e vejamos o uso que Custódio, personagem do conto, faz do pensamento de Sêneca[1]: “Cada dia, ao parecer daquele moralista, é, em si mesmo, uma vida singular; por outros termos, uma vida dentro da vida. Não digo que não; mas por que não acrescentou ele que muitas vezes uma só hora é a representação de uma vida inteira?”.

Publicada em Papéis avulsos, livro de contos no qual Machado mergulha definitivamente na investigação psicológica, a passagem acima nos faz pensar que, se a imagem de uma vida pode se concentrar num dia ou quem sabe apenas numa hora, podemos supor que a condição nacional, secular ou cultural, antes de ser representada através de imagens e símbolos instituídos, também pode ser expressa e por isso reconhecida em qualquer ato, por mais íntimo, psicológico e silencioso que ele seja. Certa vez, com precisão, Antonio Callado disse que Machado, “ocupando um espaço cada vez menor, é capaz de fazer tudo numa mesma casa. Machado, se ele continuasse um pouco mais, não deixaria ninguém mais sair de casa”. A leitura de Callado, assim como a associação estabelecida pelo próprio Machado com a emenda de Sêneca, leva-nos a pensar que essa densidade psicológica reconhecida apenas numa hora da vida também nos remete ao total relativismo da expressão nacional, que poderia, inclusive, ser apreendida dentro de casa e não no meio de uma mata virgem e opulenta. Um personagem é um sujeito do seu século, da sua nação e de uma cultura, não apenas quando retratado como um índio, entre árvores, vivenciando guerras históricas ou imerso em cenários característicos e bem definidos. O personagem se expressa e revela aquilo que o constitui de forma mais definitiva, suas raízes, possibilidades, ocidentalidade ou nacionalidade, em uma cena, em um minuto, tomando café, conversando, amando, chorando, orando, sorrindo e fazendo rir.

Machado de Assis, que nas palavras de Haroldo de Campos, “é nacional por não ser nacional”, com sua concepção íntima de literatura nacional descortinou as diferentes maneiras de reconhecermos traços literários de sentimento nacional e abrangência humana nas mais diversas elaborações formais, nas construções psicológicas de personagens, em digressões filosóficas, análise social de um determinado contexto, descrições de cenário, desdobramento de enredo ou qualquer outro aspecto relacionado à estrutura ou detalhe de uma ficção.

Partir da premissa de que as obras que obviamente retratam alguma realidade empírica brasileira estão mais relacionadas ao Brasil do que os romances de Machado de Assis, Manuel Bandeira, Raul Pompeia ou Clarice Lispector não apenas limita o leque de possibilidades da fundação e desenvolvimento de uma literatura nacional, mas também da representação e problematização do que é ser brasileiro, do seu gênio, seu modo de ser, de suas expressões culturais, sociais e psicológicas.

[1] A associação entre o conto machadiano e Sêneca foi explorada por Abel Barros Baptista no seu livro Três emendas de Sêneca, ver bibliografia.

Eduardo Melo França é professor de Literatura na Universidade Federal de Pernambuco.

COMPARTILHE: