por Tiago Amorim
De que condições exteriores precisa um escritor para escrever? Para além dos pressupostos elementares, subjetivos, como vocação e domínio da linguagem, que elementos fora de si podem ser considerados determinantes na realização da sua arte? A pobreza, o gênero, a situação cultural do próprio país, inibem a produção literária?
Se o leitor, agora, pensar em Jacob Wassermann, Edgar Allan Poe ou Carolina de Jesus, ficará tentado a responder que não: o bom escritor não se furta ao dever pessoal de escrever por que está sem dinheiro ou apoio social. Sofre, sem dúvida alguma, e esse sofrimento acaba por ser matéria da criação, como podemos reconhecer nos livros dos três autores citados. Entretanto, também é inegável que algum favorecimento externo, o mínimo de garantias existenciais e um “sopro favorável” ao exercício da escrita possibilita, com menos angústia ou ressentimento, a realização de obras de grande valor.
Partindo de questionamentos semelhantes, Virginia Woolf se debruçou sobre o tema das condições mínimas necessárias para a escrita, dirigindo sua atenção para as mulheres. O ensaio publicado em 1929 sob o título Um teto todo seu (A Room of One’s Own, no original), é fruto das lições que proferira, um ano antes, em Cambridge, a convite de duas faculdades de público feminino. A questão então proposta para a autora de Mrs Dalloway, As ondas ou Entre os atos, era sobre a relação entre a mulher e a ficção ao longo da história. Respondendo ao que lhe fora pedido, Woolf não deixa, contudo, de desenvolver profundas reflexões sobre algo mais amplo do que a escrita feminina, ou as dificuldades das mulheres em fazer literatura: com o seu talento habitual para narrar, vai ao cerne daquilo que podemos chamar o núcleo de possibilidades da escrita. É a própria autora quem assim formula a pergunta que permeia todo o ensaio: “mas qual é o estado de espírito mais propício para o ato de criar?. É possível que alguém tenha a definição do estado que incentiva e torna possível essa estranha atividade?”
Woolf adota um método para responder a isso: contar uma história, como sói acontecer aos escritores. Escreve um tipo de discurso misto, em que o ensaio se faz ficcional, e a voz que predomina na condução do problema é a de uma personagem, Mary Beton, alter ego de Virginia que está disposta a conhecer os meandros da relação das mulheres com a ficção, passando pelos obstáculos que os homens, em seu conservadorismo histórico, teriam criado para manter o “segundo sexo” afastado da produção literária. Como se num diário, e começando pelo século XVI, o ensaio atravessa o tempo e ressalta as dificuldades enfrentadas pelas mulheres para se tornarem, além de musas inspiradoras, protagonistas da escrita. Com algumas tentativas mais ou menos falhadas, é com Jane Austen que, segundo Woolf, realiza-se uma obra de engenho capaz de provar ao mundo a capacidade igualmente legítima da mulher em escrever em prosa. Comparando a autora de Orgulho e Preconceito a Shakespeare, diz Virginia a dada altura do texto:
“Aqui está uma mulher dos anos 1800 que escrevia sem ódio, sem amargura, sem medo, sem revolta, sem sermão. Era assim que Shakespeare escrevia, pensei, olhando para Antônio e Cleópatra; e, quando as pessoas comparam Shakespeare e Jane Austen, talvez queiram dizer que a mente dos dois consumira qualquer impedimento, e por essa razão não conhecemos Jane Austen nem Shakespeare, e por essa razão Jane Austen permeia cada palavra que escreveu, assim como Shakespeare”.
O ponto em questão era, segundo Virginia, a ausência de ressentimento. Ainda que Emily Brontë ou George Eliot tenham exercido papel fundamental na trajetória de conquistas femininas na literatura – particularmente Eliot, que segundo Woolf realizara obras de incontornável valor -, foi Jane Austen a primeira mulher capaz de, assim como o bardo inglês, escrever livremente, sem dar a seus livros um tom impotente, ou de lamento pela sua condição social ou de gênero que, nas outras escritoras, parece haver. Austen, tanto quanto Shakespeare, é uma autora íntegra – leia-se “acima das próprias circunstâncias” -, e por isso conduz o leitor à verdade.
Justamente aí, ao comentar brevemente as criações desses dois grandes autores, é que Woolf fala de uma colaboração entre o feminino e o masculino, antes de tudo na mente do escritor – independentemente do seu sexo. A escrita, diz-nos a autora, é fruto da abertura para a totalidade, e os melhores escritores exerceram plenamente seus “lados” opostos, como num perfeito casamento:
“Um pouco de colaboração é necessária entre a mulher e o homem na mente antes que a arte da criação possa ser atingida. Um certo casamento dos opostos deve ser consumado. A totalidade da mente precisa estar aberta para termos a sensação de que o escritor está transmitindo sua experiência com perfeita plenitude. É preciso haver liberdade, é preciso haver paz. Nenhuma roda deve ranger, nenhuma luz deve piscar. As cortinas devem ser fechadas. O escritor, pensei, assim que sua experiência acabar, deve recostar-se e deixar que a mente celebre suas bodas na escuridão”.
Então a questão que dera causa às lições proferidas em Cambridge assumia novo matiz: já não importava tanto o gênero do escritor – em especial, os contornos da produção literária feminina, como se esperava que Woolf detalhasse pormenorizadamente -, mas a sua habilidade em conjugar, dentro de si, as oposições e complexidades da vida humana. À “peleja dos sexos”, deve sobrepor-se outra, de fundo íntimo e mais maduro:
“Toda essa peleja de sexo contra sexo, de qualidade contra qualidade; todo esse clamor por superioridade e essa imputação de inferioridade pertencem ao estágio colegial da existência humana, no qual há “lados” e é necessário que um lado derrote o outro, e é de extrema importância subir em uma plataforma para receber das mãos do próprio diretor um troféu ornamentadíssimo. Conforme amadurecem, as pessoas deixam de acreditar em lados ou em diretores ou em troféus ornamentadíssimos”.
A visão de Woolf é clara: as diferenças de gênero importam até certo ponto, jamais indiferente, como parte das pré-condições necessárias ao espírito individual que se pretende artístico, como pretenderam tantas mulheres com vocação para isto. É verdade, diz a autora através de seu alter ego, que ao longo do tempo essas mulheres não gozaram nem da mesma liberdade nem dos mesmos direitos para escrever ou, algo mais basilar ainda, trabalhar e receber o próprio dinheiro. De alguma maneira, as lições apresentadas em Cambridge naquele ano, coadunam com a próprio biografia de Virginia, ela mesma uma voz marcante e revolucionária na defesa de tudo o que “um quarto todo seu” representaria concretamente para as mulheres. Entretanto, como já se notou, é reducionista a leitura do seu ensaio que ignore todas as realidades ali tratadas, como alguns movimentos feministas o fizeram ao longo dos anos, imbuídos de viés ideológico usado para favorecer este ou aquele ponto de vista. A apropriação simplista das palavras de Virginia Woolf, dirigidas, assim, para um ataque ao suposto “sistema patriarcal” e seus desmandos machistas é, a meu ver, uma desonestidade intelectual. Um teto todo seu não é um texto propagandístico, ainda que preciso na análise da condição feminina ao longo dos últimos séculos – e da consequente atenção que chama para as disparidades e injustiças sofridas pelas mulheres. As lições de Woolf são, além disso, uma ode à escrita livre e um reforço ao dever de todo escritor, homem ou mulher, de ser fiel a si mesmo. Já perto do final do texto, confirma-nos essa perspectiva:
“Contanto que você escreva o que tiver vontade de escrever, isso é tudo o que importa; e se isso importará por eras ou por horas, ninguém pode afirmar. Mas sacrificar uma ínfima parte de sua visão, uma só de suas nuances, em deferência a um diretor qualquer com um troféu prateado nas mãos ou a um professor qualquer com uma fita métrica na manga é a mais abjeta das traições; e o sacrifício de riqueza e castidade que era tido como o maior dos desastres humanos é um nada em comparação”.
É esse o “estado de espírito mais propício para o ato de criar”: o que faz do mundo interior um espaço livre, jamais sujeito às pressões externas ou aos mandos coletivos. A voz que deve prevalecer é a pessoal, inalienável, e nem todas as dificuldades externas poderiam abafar o clamor ou vontade de escrever que ressuma desde o coração do artista.
Mas o ensaio tem seus pés no chão, e o título dado ao conjunto de lições de Virginia não é gratuito: existem, sim, condições materiais que favorecem a escrita, tornando menos dolorosa a expressão daquela voz pessoal insubornável. E se todos aqueles vocacionados para a escrita sofrem das mesmas necessidades para o fazer, é fato incontroverso que as mulheres foram ainda mais constrangidas para realizar seus projetos dessa ordem – muitas vezes a ponto de serem impedidas. Feita uma revisão histórica das limitações materiais e sociais impostas a elas, Woolf afirma que um espaço próprio e uma quantia de dinheiro anual são os requisitos mínimos para toda e qualquer escrita. Daí o “um teto todo seu”, em que o escritor ou escritora possa gozar da sua liberdade sem ter de dividir seu espírito entre os reclames da arte e os da vida cotidiana, emergenciais, contingentes. É desejável, depreende-se do ensaio, que o autor escreva sem a ameaça da pobreza, o perigo do despejo, a preocupação com as contas atrasadas ou a angústia de não ter qualquer garantia material futura.
Quem poderia discordar disso? Entretanto, somos forçados a reconhecer, especialmente os escritores, que a garantia de um teto não salvaguarda a realização da obra. Se, nas palavras de Chesterton, o homem é mesmo um vadio que anda sobre a terra à procura de uma casa, quem escreve talvez seja aquele tipo de gente sem fortuna que, antes das outras pessoas, já perdeu as ilusões sobre esta vida desabrigada. Como ensina Woolf,
“o que se conclui dessa imensa literatura moderna de confissão e autoanálise é que escrever um trabalho genial é quase sempre um feito de dificuldades prodigiosas. Tudo vai contra a verossimilhança que advirá da mente inteira e integral do escritor. As circunstâncias materiais em geral estão em oposição. Os cachorros vão latir; as pessoas vão interromper; o dinheiro precisa ser ganho; a saúde vai sucumbir. Além disso, acentuando todas essas dificuldades e tornando-as mais difíceis de suportar, há a indiferença notória do mundo. Ele não pede às pessoas que escrevam poemas, romances e histórias; ele não precisa disso”.
Tiago Amorim é professor e leciona filosofia e antropologia filosófica. Mantém o site A Vida Humana.