por Thiago Blumenthal
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A busca de Marcel pelas origens de sua obsessão por Albertine é apenas uma parte de uma série de amores, e de circunstâncias sentimentais, que precede mesmo a própria ideia de amor, e mais, de um amor sempre potencializado pelos espaços que o Narrador percorre. Essa dinâmica acompanha toda a Recherche e caracteriza algo muito maior, que se subscreve na própria ideia de arte (e da escrita de um romance memorialístico), e na ideia de uma maior compreensão do mundo através dela.
Para Marcel, o sucesso dessas aventuras significa ir além do mero detalhe, do comezinho, do cotidiano, para atingir uma essência que percebe somente possível através da arte, como Elstir que pinta sua paisagem do lado oposto de seu referencial. E Proust retrata esse movimento ao longo do romance como um constante ciclo que busca corrigir quaisquer desvios que possam ter prejudicado sua visão “maior”.
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Minha avó, porém, havia chegado a madame de Sévigné por dentro, pelo amor que tinha aos seus e à natureza, e ensinou-me a apreciar suas belezas, que são muito diversas das mencionadas. Iam impressionar-me muito, e com tanto mais razão porque madame de Sévigné é uma artista da mesma família que um pintor que eu havia de encontrar em Balbec e que teve grande influência em meu modo de ver as coisas, Elstir. Em Balbec, dei-me conta de que a Sévigné nos apresenta as coisas da mesma forma que o pintor, isto é, relacionadas com a ordem de nossas percepções e não explicando-as primeiro pela sua causa. (JF, p. 150)
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Marcel deliberadamente organiza a história de sua vida de modo que a vemos como ele mesmo a vê: como uma história de uma vocação invisível. Essa vocação invisível é quem busca redefinir seu mundo, seus amores, os espaços pelos quais passou, a dinâmica do tempo, para tirar-lhe algum sentido, alguma peça final do mosaico que está montando desde o início, desde as primeiras páginas com as lembranças em Combray.
Com Albertine, a impossibilidade de possuí-la transforma-se em um sentimento de posse narrativo; ela pertence à narrativa, à sua história, já é inevitável. Não mais possuí-la no plano real não tem tanta importância, uma vez que ela é repetidamente capturada e recapturada pelo texto, objetivo maior de uma vida que está, no papel, se redefinindo. Eis um projeto ambicioso, o da recontagem, o de possuir todos os elementos de sua vida, mesmo aqueles que lho escaparam, mas ambiciosa é a Recherche.….
O mais urgente era ler a carta de Albertine, já que eu pretendia achar meios de fazê-la voltar. Sentia-os em meu poder, pois, sendo algo que só existe em nosso pensamento, o futuro nos parece ainda modificável pela intervenção in extremis de nossa vontade. Ao mesmo tempo, porém, lembrava-me ter visto outras forças, que não a minha, agirem sobre ele, e contra as quais, ainda que me fosse dado mais tempo, eu nada teria podido. De que vale ainda não ter soado a hora, se somos impotentes diante do que vai acontecer? No tempo em que Albertine vivia em minha casa, eu estava decidido a tomar a iniciativa de nossa separação. (FG, p. 14)….
René Girard nota que o mundo proustiano é marcado não tanto pela ausência do sagrado, mas antes por sua profanação, e, contudo, para Marcel, somente o sagrado, através da arte, pode autorizar, por assim dizer, seus esforços. Sua busca por Mme. de Guermantes não difere da busca pela essência de Albertine, onde todo detalhe se mostra como uma manifestação acidental de algo mais genuíno. E esta essência precisa se tornar visível, em uma busca por uma linguagem puramente figurativa e livre dos acidentes que marcaram os acontecimentos narrados. Veja bem: os acidentes do enredo precisam ser ultrapassados pela linguagem, pela arte, esta é a sua busca. E neste sentido o espaço representa um elemento fundamental.
Não amamos uma pessoa isolada de seu contexto, de seu tempo. O par com Albertine se dá em uma dinâmica em que o ser amado, para ser amado, demanda uma investigação, para que então Marcel possa “investir” na relação algum amor. Albertine é uma ideia, uma ideia sensível. Por mais “genérico” que um amor possa ser (passando em um arco de Gilberte a Albertine), o amor de Albertine difere daqueles do passado tal qual o septeto difere da sonata.
Avancemos.
A proporção entre dois tipos de amor distintos, de um lado, e as duas composições musicais, de outro, recai sobre a concepção mais genuína de amor proustiano. É sabido que a música forma um dos grandes pilares da complexa estrutura da Recherche, e a música é, em si, com seus espaçamentos, com suas referências cruzadas, marcações, e simetrias (tal qual a arquitetura), um tipo de espaço a ser analisado aqui, sob a ótica do amor.
De fato, dois tipos de composição musical, de amplo contraste entre si, ocupam um espaço no romance bastante emblemático; o primeiro, em SW, e o segundo, em PR, que antecipa o desenvolvimento do último volume. A figura de Vinteuil assim constitui o grande pilar artístico da Recherche e seus trabalhos completamente opostos demarcam dois importantes momentos na vida e nos amores de Marcel: a Sonata em F para piano e o septeto.…..
No primeiro volume é Swann que descobre a Sonata, composta por um músico cujo nome é a única coisa que ele pode se lembrar dele, e é também Swann que pondera longamente sobre os mistérios tanto da Sonata como de seu compositor, sem, contudo captar o significado mais profundo daquela música, uma vez que ele não consegue dissociá-la de seu amor por Odette.
Ora, como certos valetudinários a quem, de súbito, uma mudança de clima, um regime diferente, algumas vezes uma evolução orgânica, espontânea e misteriosa, parecem trazer tal regressão de seu mal que eles começam a encarar a inesperada possibilidade de começar tardiamente uma vida completamente diversa, Swann achava em si, na lembrança da frase que ouvira, nas sonatas que mandara tocar para ver se acaso a descobriria, a presença de uma dessas realidades invisíveis em que deixara de crer e às quais sentia de novo o desejo e quase a força de consagrar a vida, como se a música tivesse uma espécie de influência eletiva sobre a secura moral de que sofria. Mas, não conseguindo saber de quem era a obra que ouvira, não a pudera procurar e acabou esquecendo-a. (SW, p. 144)….
Mesmo quando esse amor é substituído pelo matrimônio em JF, quando então é Odette que toca a Sonata para o jovem Narrador (que, sabemos, está apaixonado neste momento por Gilberte), Swann supõe ter capturado a essência que o traz de volta ao Bois de Boulogne, durante as noites que passava com a sua outra Odette, antes do casamento. O mistério em torno dessa música está intimamente ligado a este local, e, mais acompanhará o Narrador por um bom tempo de sua vida, pelos locais onde passará.
Diferentemente de Swann, todavia, é Marcel que saberá contemplar a essência da arte, o que ocorre durante a noite em que se separa de Albertine (cujo nome ecoa o nome de Gilberte, para Merleau-Ponty). Nesta noite ele ouve o septeto, obra póstuma de Vinteuil, distinguindo o sentido da arte através da revelação da essência das coisas que a obra lhe evoca, e principalmente fazendo com que perceba sua vocação literária – é bom lembrarmos que Albertine se torna uma ideia sensível, uma personagem, mais do que um amor. São amores pré-concebidos, na totalidade do romance, em perfeita conexão com o espaço-tempo.
De certo modo, podemos afirmar que o amor por Albertine difere do amor por Gilberte na mesma medida em que o septeto difere da Sonata. Essa relação dialógica dos elementos na Recherche é uma estratégia comum ao texto proustiano, como Swann-Marcel, Méséglise-Guermantes, entre tantas outras.
Para Merleau-Ponty, as ideias musicais e, mais genericamente, ideias sensíveis são ideias negativas, no sentido de que não podem ser captadas pela inteligência, como os espaços que passam ao longo das janelas do trem, como a praia de Balbec, como os jardins de Combray. É neste sentido que então devemos interpretar a concepção proustiana de amor. Nesse, sentido nem o amor por Gilberte nem o amor por Albertine podem ser considerados positivos, ainda que sejam transmissíveis pela sua diferença. Não que lhes faltem realidade, mas essa realidade é transformada em algo sensível, próprio da arte, a partir da captura, não de Albertine, mas do septeto: na autoconsciência do escritor que está a lidar com uma matéria ficcional que requer polimento e reinvenção constantes.
Esses amores, assim como esses espaços, são reais na medida em que são e estão presentes a uma certa distância como nas notas, das quais é impossível se separar, e ainda assim tão intangíveis. Pelo fato de o amor ser real tal qual uma negação, sua efetividade lembra a da música executada durante a soirée chez marquesa de Saint-Euvert. Tal qual o violinista em relação à Sonata, os amantes parecem mais pertencer a seus amores do que seus amores pertencerem a eles, na mesma relação que nenhum espaço pode ser de fato conquistado, por assim dizer, pelo Narrador. O espaço e os amores demandam uma chave elétrica que troca de negativo para positivo — e vice-versa.
O mesmo ocorre com a festa final em TR, onde a chave é ativada-desativada, como espaço social aristocrático. Trata-se de uma crise profunda de um código social. A aristocracia que havia funcionado para o Narrador como um princípio de exclusividade, distinção esta que jamais pode ser atingida sem antes uma ordem social insubstituível e inimitável. Como centro irrefutável, a aristocracia oferece uma medida absoluta de valores morais e garante um contato social com uma fonte de genuína qualidade, historicamente verificável. A partir do momento que uma pessoa ou nasce nobre ou não, dentro da dinâmica social da Belle Époque, a base aristocrática de diferença social garante valor por sua ligação ao passado e aos espaços que estão sendo ocupados. O nome nobre marca, mais do que um passado, um espaço.
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O que me decidiu a ir foi o nome de Guermantes, bastante afastado de minhas cogitações para que, lido num cartão, me despertasse um lampejo de atenção, suscitasse, nos desvãos de minha memória, um trecho de seu passado, envolto em todas as imagens de florestas senhoriais ou de floridos arbustos que então o escoltavam, e readquirisse para mim o encanto e a significação que lhe emprestava em Combray, quando, ao passar, de volta a casa, pela rue de l’Oiseau, via de fora, como uma laca escura, o vitral de Gilbert le Mauvais, senhor de Guermantes. Por um momento, os Guermantes se me afiguraram de novo completamente diversos da gente de sociedade, não sofrendo confronto com ela, nem com nenhum ser vivo, embora fosse um soberano: reapareciam-me como frutos do cruzamento do ar ácido e virtuoso daquela sombria cidade de Combray onde decorrera minha infância, com o passado que, junto do vitral, aí se vislumbrava na rua estreita. Desejava ir à festa dos Guermantes como se assim me pudesse aproximar da infância e das profundezas da memória onde a avistava. E continuei a reler o convite até que, revoltadas, as letras componentes desse nome familiar e misterioso como o de Combray retomassem sua independência e desenhassem ante meus olhos fatigados um apelido estranho. Como justamente mamãe ia a um chá íntimo em casa da sra. Sazerat, reunião que já sabia que seria muito entediante, não tive o menor escrúpulo em sair para a recepção da princesa de Guermantes. (TR, p. 120)
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A duquesa se encontra em uma posição mítica, também negativada (embora o termo hoje esteja tão amplo de sentidos), irreal, como as imagens da lanterna mágica, como Geneviève de Brabant, compartilhando a aura religiosa de seus ancestrais nos vitrais da catedral de Saint-Hilaire, mas como uma mulher vista de longe, tal qual uma catedral (que só pode ser observada à distância, tal qual uma sinfonia só pode ser ouvida em sua integralidade), incarnando uma imagem por ser decodificada, tipificada, ficcionalizada.
O duque e a duquesa, como somente a nobreza pode fazê-lo, incorporam o nome e a terra. Eles são Combray, o território de Guermantes, com seus mestres feudais cuja presença agora é apenas um ponto no mapa, pois não mais vivem lá. O espaço da nobreza, tal qual o espaço dos amores, é um espaço sensível, que demanda a sensibilidade da arte para ser completamente compreendido e absorvido pelo universo de Marcel/Proust.
Com um passado “presque descendu dans la terre”, eles dividem a terra da maneira que é peculiar à aristocracia, criando em Marcel a convicção de que algo especial é transmitido de uma geração a outra. Contudo, no curso do romance, a nobreza perde essa qualidade especial e parte importante da Recherche é a história dessa perda, tal qual com a perda de seus amores. A Recherche é uma história de perdas transformada em coisas sensíveis.
As ideias negativas, sensíveis, de mulheres e de amores narrados por Proust e comentadas por Merleau-Ponty nas notas dedicadas à “Instituição de um Sentimento” podem ser interpretadas em termos simbólicos em torno dos quais giram primeiramente Swann e logo depois Marcel. Essa ideia de instituição, para Merleau-Ponty, é o fundamento de uma história pessoal em contingência. Mais do que tropeços na vida dos personagens, essas mulheres, esses amores e esses espaços por eles ocupados, terminam por elaborar supernovas renovadas de sentido.
Pela coagulação espontânea em direções opostas, a caminhos opostos, a trajetos de trem que fazem o Narrador se perguntar onde ele está de fato, sem ter de obedecer a um modelo, a Recherche se constrói através de matrizes simbólicas pré-concebidas que podem, a curto ou a longo prazo, em milhares de páginas, influenciar a história. Combray não é mais Combray, Combray é o que ficou retido de Combray, como algo pré-concebido da memória do Narrador. Tal qual seu amor por Gilberte.
Tal qual o tema da mãe, o primeiro grande amor do Narrador, apenas em notas paralelas, sem cairmos em uma abordagem psicanalítica, que pode ser considerado por excelência o exemplo maior da concepção amorosa. É uma matriz que desaparece, ao longo da Recherche, não por forças externas, mas antes por uma desintegração interna ou porque um segundo elemento passa a predominar e mudar sua natureza. Como diz Roland Barthes, o romance de Proust finge seguir uma estrutura de tema e variações para então desintegrá-la por dentro e por completo. Essa é a armadilha da Recherhe.
Se uma diferença original rege nossos amores, como quer Deleuze, podemos entender a mãe como esse amor pré-concebido que serve de ideia sensível “maior” a todos os outros amores, sempre em constante explosão, para garantir que haja somente, e sempre, somente uma mãe, ainda que na forma de Gilberte ou Albertine. Entendida como matriz simbólica, o tema da mãe é mais complexo e pediria uma tese somente a ela, mas podemos sintetizar, em breves palavras, que a mãe parte em várias direções em seus variados espaços, acompanhando-nos (nós, os leitores), em diferentes direções e em diferentes províncias, gerando símbolos irreconhecíveis à primeira vista em todas as suas variações.