por José Francisco Botelho
O conto – assim como as opiniões nuançadas, as amizades apartidárias, a lógica aristotélica, o uso da vírgula no vocativo… – é uma das vítimas levianamente sacrificadas em certos altares do gosto contemporâneo. De tempos em tempos, legiões de argumentos malfazejos se levantam, como alegorias de Bosch em um quadro da Paixão, contra a nobre e circunscrita figura do relato curto. Coletaremos apenas alguns espécimes dessa fauna hirsuta: diz-se, a respeito do conto, que é um “gênero menor”, simples treinamento para o romance, espécie de onanismo – salutar, mas superável – na puberdade autoral; e que, por seu nanismo, é incapaz de engendrar a experiência de imersão ficcional que caracteriza as narrativas longas. Antipatizo cordialmente com essas opiniões: alhures, poderíamos considerá-las apenas frutos equívocos da distância e do desconhecimento; mas aqui, no Continente do Conto, onde se forjaram Ficções, Todos os fogos o fogo e Sagarana, parece haver nelas algo de espantosamente masoquista. Permitam-me jogar fora o cilício. Vamos às refutações.
Comecemos por aquele que costumo denominar o “argumento volumétrico”: por ser literalmente menor que um romance – em extensão, em comprimento, em massa, como preferirem –, o conto deve ser-lhe, naturalmente, inferior. Essa conclusão se baseia no axioma primário de que o conto “dá menos trabalho para escrever” e, portanto, só poderia ocupar um quartinho dos fundos na famosa torre de marfim da Grande Arte. Mas esse cálculo de merecimentos e labores se embaralha em uma falácia de origem: está-se comparando, aí, a composição de um romance inteiro com a de um único conto. Ora, nesse caso, terei de recorrer à veemente réplica infantil: isso não vale. Não nego a existência do conto avulso, concebido para as páginas da revista especializada ou, vá lá, para o sítio virtual apropriado; mas ocorre que o contista elementar é aquele que se dedica à produção de narrativas curtas em sequência mais ou menos regular e no âmbito de um certo projeto estético – projeto que redundará, de preferência, em uma coletânea. E, nesses termos, nada garante que 100 páginas de romance sejam mais difíceis de escrever do que 100 páginas de um livro de contos. Em todo caso, ninguém precisa se contentar com minha módica opinião; recorramos à experiência de um profuso habitué de diferentes gêneros literários. Em 1976, Gabriel García Márquez estava escrevendo seus Doze Contos Peregrinos; na metade do terceiro relato, sentiu-se mais cansado do que se estivesse trabalhando em um romance. Refletindo sobre sua própria exaustão, concluiu o seguinte: “o esforço de escrever um conto curto é tão intenso como o de começar um romance. Pois no primeiro parágrafo de um romance é preciso definir tudo: estrutura, tom, estilo, longitude, e às vezes até o caráter de algum personagem. O resto é o prazer de escrever, o mais íntimo e solitário que se possa imaginar, e se a gente não fica corrigindo o livro pelo resto da vida é porque o mesmo rigor de ferro que faz falta para começá-lo se impõe na hora de terminá-lo. O conto, por sua vez, não tem princípio nem fim: anda ou desanda”.
Anda ou desanda: impossível achar melhor descrição para a perigosa elegância, a tensa suavidade, o exatíssimo pulo no abismo que o conto – diferente da mera anedota – exige. Se cada relato curto, para funcionar, deve ter a justeza criativa de uma acrobacia, então um livro de contos é formado por uma série encadeada de saltos mortais. Por outro lado, não creio que precisemos levar muito longe esse debate laboral: ele baseia-se, enfim, no pressuposto imperfeito de que a relativa dificuldade em se escrever um texto deva ser o fator crucial na hora de julgá-lo. A acreditarmos em sua Psicologia da Composição, Edgar Allan Poe expelia dolorosamente cada linha de seus textos, como quem comete uma violência meticulosa contra a própria alma; o bem-aventurado Lorde Dunsany, por outro lado, afirmava entregar-se ao chamado da escrita sem preocupação ou planejamento, no pitoresco intervalo de suas atividades de cavalheiro rural, jamais reescrevendo uma única frase; de toda maneira, por que a aspereza ou a suavidade desses métodos deveriam alterar minha apreciação de “Um coração delator” ou “Provável aventura de três literatos”? O Espírito sopra onde quer, como disse o evangelista: as ficções valem pelo que são, e não pelo percentual de dor que acrescentaram ao mundo no momento de serem produzidas. Porque, no momento da leitura, o que imediatamente interessa não é saber se o relato foi escrito entre goles de grogue ou entre escarros de tísico. O que importa é saber se ele anda ou desanda.
Vamos agora àquela que talvez seja a acusação mais injusta ao relato curto: a de que ele não pode gerar no leitor uma experiência tão profunda quanto a do romance. Ora, sucede que todo conto – para que ande e arda com a pungente sensação da vida – deve sugerir, em sua brevidade, a vastidão de uma existência imaginada. Na relação que os contos de um mesmo autor estabelecem entre si, há a possibilidade de leituras eternamente renováveis: pode ser que todos se passem em um mesmo mundo ficcional; pode ser que cada um exista em sua própria esfera; ou pode ser que representem universos adjacentes, comunicando-se por vias oblíquas e capilares. Trata-se, enfim, de uma leitura diferente – não inferior ou superior – à que experimentamos com a narrativa longa; e poderíamos até concordar com o crítico peruano José Miguel Oviedo quando ele diz: “pelo rigor e pela intensidade de sua linguagem, o conto está mais próximo da poesia que do romance”.
A César o que é de César, portanto, e ao conto o que é do conto: não um preparativo, não um treinamento, não um arrabalde, mas um dos cimos mais elevados na arte de narrar. E nada do que aqui vai dito implica em desmerecer o romance – até porque, admito, também estou escrevendo um.