por Lourival Holanda
Em entrevista a Roberto d’Ávila, numa rede de televisão brasileira, Jorge Luis Borges dizia de sua admiração inconteste por Euclides da Cunha. Borges, talvez, não se furtasse à simetria que põe de par Euclides e Sarmiento. Ambas empresas literárias notáveis pela grande densidade expressional com que levantam a análise social em interpretação.
Desde os escritos de juventude Euclides persegue a forma literária, a despeito da força do paradigma positivista que fora o de sua formação. Esta busca é tanto mais tenaz porque tem a enfrentar percalços de certas circunstâncias de uma vida que tudo fazia crer pouco destinada à literatura.
A forma literária, deliberada, em Euclides da Cunha, é mais reveladora de seu propósito do que as supostas intenções de conteúdo sociologizante, emprestadas pelos primeiros críticos euclidianos. É o que resulta evidente ao ser a obra estudada pelos métodos formais mais modernos. Se hoje o texto guarda grande força e autoridade social, é sobretudo por sua qualidade literária, pela força da narrativa.
Natural, portanto, o primado da análise literária para um entendimento claro do propósito e força do texto. Os outros aspectos estarão subordinados a esse cuidado preliminar. Aliás, é lição de Paul Valéry: se, na operação cirúrgica, primeiro se procede a uma assepsia das mãos, na leitura, o cuidado preliminar é saber do que se está falando – já que o modo de dizer diz o modo de ver o mundo. Diminui-se assim o risco das falsas suposições.
Hoje parece fora de dúvida ter o texto uma marcada pretensão literária. Ainda que a obra esteja no bojo de um projeto político de testemunho e denúncia – que Euclides considerava da maior importância na ocasião –, o modo que escolheu para apresentá-lo é propositadamente literário.
A excessiva pressão ideológica que pesava sobre as leituras anteriores deveria fazê-las privilegiar o rendimento sociológico, em detrimento da qualidade propriamente literária do texto. Abriu-se assim uma lacuna que adulterava e reduzia a interpretação euclidiana. Sobretudo porque, para aquém dos estandartes ideológicos tão esperados, da parte de um republicano de primeira água, havia o contraponto crítico através do trabalho silencioso da sintaxe euclidiana, que revertia o dito, disseminando a dúvida.
O interesse redivivo pelo texto euclidiano vem certamente daqui: os tempos atuais veem na linguagem o código social por excelência. E a redescoberta atenta de Euclides, ou de Guimarães Rosa, dos raros a com ele suportar paridade, paga em dividendos de sabor e surpresa o custo de sua leitura.
Só o novo ajustamento, advindo da valoração do potencial linguístico da tradição moderna de leitura e da perspectiva do intercruzamento dos discursos, poderia fazer vir à luz aspectos atuais e pertinentes do texto euclidiano.
Com o tempo, diminuíram as reservas quanto às contradições das mensagens explícitas da formação e política euclidianas. A importância e o vigor da narrativa vinham menos do realismo documental do que da linguagem, dos elevados figurais por onde Euclides fazia a crítica de seu credo.
Tratava-se agora de equacionar a força dos referenciais com a preocupação com as relações internas do texto. A atitude cética em relação à primeira ação da República vinha dita num modo figural que dispensava o arrazoado argumentativo para deixar atuar o campo fértil das metáforas e analogias.
A complexidade das operações da linguagem literária suporta superpor significações, dirigir a atenção do leitor através de um uso singular da sintaxe, da gramática, da organização temática e da interação das figuras. Eis porque a leitura de Euclides recobra sua força crítica específica, nos dias atuais, quando o momento da nossa história cultural sente, com o abalo da mundialização – ponto de encontro entre culturas e credos –, a necessidade premente de voltar aos valores fundadores da cultura brasileira.
Já não havia ineditismo temático: Lélis Piedade ou Manuel Benício haviam trabalhado o tema de Canudos, recente ainda. Uma crítica mais formal aponta para o modo como Euclides diversifica a narração, onde o cuidado do historiador não é menor que o trabalho criativo.
Tomando a verossimilhança das narrações não é difícil mostrar que, mais que testemunha ocular, o que ali opera é uma pulsão de escritura. A força daquela poética, ousada e inovadora, vai singularizar o texto dentre os tantos sobre o tema. Euclides é, antes de um historiador, um artífice literário.
Há, certamente, ornamentações, interlúdios e ênfases que são do gosto da época. Mas a estética em Euclides vai de par com uma tensão ética. Seu intuito é elaborar uma linguagem que possa envolver os eventos e os valores num quadro interpretativo, em conformação com a leitura que então fazia do episódio de Canudos.
É verdade que ele já persegue, de há muito, o modo narrativo que vai ser sua característica. Muitos textos anteriores trazem já os sinais desta busca e um modo de dizer. Para o escritor, tudo é ritmo. Mas ele andara percutindo cordas soltas. É só n’Os Sertões que enfim sua atenção se concentra num tema – e numa linguagem de tensão única.
É verdade que ele trabalha dentro da convenção historiográfica de sua predileção, relatando, mais que registrando. O narrador não apenas apresenta seu material documental: ele, ao selecionar, toma posição – e, ao narrar, vai deixá-la implícita.
Assim, inserindo exemplos e alusões em seu discurso, em conformidade com a convenção clássica, às vezes dando à linguagem um tom escritural arcaizante, para fazer passar seu humor frente aos fatos; outras vezes criando, recorrendo ao registro oral, uma atmosfera de reconhecimento e simpatia: o ouvido urbano traz, próximo ainda, ecos do campo.
E, se Euclides recalcara suas origens remotas, durante o período de formação peregrina entre a Fazenda São Fidelis e Cantagalo, o impacto da linguagem da gente sertaneja iria fazê-lo recuperar as raízes latentes.
Recalcar uma linguagem é recalcar um modo de sentir o mundo. Euclides carregou, por muito tempo, a sensação de estar exilado, ainda que no horizonte próximo e comum. Como se percebesse uma fratura. Mais: uma ferida entre ele e a buscada adequação a seu mundo imediato.
O período de formação na Escola de Cadetes foi decisivo: ele, numa posição singular entre seus pares, cria seu padrão – seus pais fundadores. E projeta, nos heróis da Revolução Francesa, seus mentores. Sua concepção romântica toma numerosas variantes, ao longo de sua produção, mas sempre está voltada para a transformação do meio.
A intransigência ideológica do adolescente encouraçado em suas certezas é uma defesa diante do mundo que crê mesquinho e onde se sente um bárbaro. Como o mercúrio que teme esfacelar-se, dispersar-se, ele recusa os meios compromissos. E cria para si uma linha ética que finda por fechá-lo num círculo de ferro. Daí porque a excessiva sensibilidade de Euclides iria resultar numa constante tensão nervosa e resolver-se, enfim, num estilo de um arroubo calculado em efeitos surpreendentes.
O estilo de Euclides da Cunha, desde o início, dá indício de um sentido de intensidade. Sua tensão advém de ter que dizer a complexidade e riqueza dos fatos culturais dentro de um registro cientificizante que se presta mal a tal representação. Esta intensidade satisfaz o ideólogo, quando este se deixa cegar à profusão do real e se diz num discurso de supostas certezas.
No entanto, com o correr do tempo, quando a madurez alarga o olhar e dá peso a um propósito, fica o desafio de encontrar um registro literário que, abrangente, resolva os impasses das ideias na força de uma forma vigorosa. O homem, nele, permanecia desconfiado e susceptível, mas o artista madurava. Seu estilo, anterior a Os Sertões, mantém ainda algo de álgido na rigidez que faz pensar no porte hierático com que seus contemporâneos o descrevem.
É notável o método do proceder euclidiano: a) um entrelaçamento de registros; b) a forma de conectar as fontes; c) a disposição dos episódios, dando indício de um propósito programático.
Parece não ser intenção do narrador defender e convencer por um arrazoado jurídico. A primeira parte, “A Terra”, aparenta ser um descritivo neutro, dentro da convenção da historiografia de matiz positivista, de acordo com a formação euclidiana.
E Euclides está bem consciente das potencialidades da linguagem e de seus usos retóricos para conseguir seus objetivos. Prova disso é a arquitetura narrativa dramática: feita de modo a despertar no leitor o sentimento de adesão à causa de Canudos. Um apelo a exigir não só revisão do caso – antes: do descaso da República –, mas um reconhecimento formal da causa canudense. Mais: inculpação de crime capital da parte do Governo.
Em alguns momentos as alegações inconsistentes de Euclides tomam forma mais convincente justamente pela linguagem literária legitimadora. A forma discursiva neutraliza a inconsistência do contexto narrativo – tudo enfatiza a primazia do intuito literário de Euclides.
Euclides omite fatos sabidos por muitos. Disso dá testemunho Lélis Piedade, que relata o episódio do soldado arrolado à força e que, na entrada da Bahia, se joga no mar. Euclides sabe do episódio – se a ele não faz referência, é porque não cabe no seu projeto literário. Seu interesse está em outra parte. A questão política está aqui submetida à construção literária.
Não há, em Euclides, descrições ociosas. Tudo tem um propósito, nessa pensada economia de meios narrativos. Sobretudo a primeira parte, “A Terra”. A descrição do ambiente faz parte do sentido que o narrador quer conferir ao texto.
Em alguns momentos o narrador cria um quadro de referência política onde melhor pôr sua crítica. É quando então adota uma linguagem mais veemente, a parcialidade se diz a descoberto. Mas é um tom de exceção: sempre o narrador recorre ao jogo intertextual que confere uma unidade móvel à narração. Aqui ainda a intenção literária se evidencia no processo narrativo que se compraz em romancear os fatos.
A madureza transfere o impulso inflamado dos textos anteriores para um ritmo sonoro. Renuncia à segurança do credo positivista em favor de um fervor novo, interpretativo. No relatar os fatos Euclides expõe sua interpretação deles. E seu consequente risco. Texto agora onde a criação se congemina com a crítica. E onde vê a República – seu velho voto – com um olho novo.
O desencanto com a República nos moldes de então é o que dá o tonus novo ao texto euclidiano. Toca a corda sensível e a distende com mais cálculo. A desmedida da emoção de antes cede agora a uma indignação fria e ferina, com respeito aos homens e convicções anteriores.
Sua defesa dos sertanejos marca um reencontro cultural – denegado durante sua formação. É também seu verniz de cultura que ali passa pelo crivo crítico.
O que há de exemplar no caso Euclides – e o torna tanto mais importante porque oportuno hoje – é o pronunciado divórcio entre a adesão ideológica e sua resolução no impasse do existir cotidiano. Agora Euclides vai apaziguar a tirânica carência das raízes fazendo-as irradiarem num grande texto. Razão de seu êxito.
Talvez parte da razão do êxito de sua recepção atual venha do quanto o texto nos cobra de admiração pela honestidade intelectual de quem tem a coragem de reconsiderar, sob crivo crítico, os pontos que caducam em seu credo. Sem, no entanto, cair no desvanecimento da esperança.
Alguns textos de Euclides, anteriores a Os Sertões, dão conta do quanto ele investia no empreendimento literário.
Mais tarde, passado o clarão da mocidade, o entusiasmo que toma por transporte a abstração das grandes ideias revolucionárias, já ele aposta na realidade imediata – e, consequentemente, no cuidado formal. A consciência literária é então assumida como um destino.
Os textos dos primeiros tempos, tempos do entusiasmo e fervor juvenis, são arrebatados. Metáfora é transporte: a metáfora aqui avança retrocedendo ao étimo original – a poesia de Euclides não tem a força de sua prosa. Segue, nos motivos e na dicção, a estreiteza do horizonte poético da época.
A poesia de Euclides é tão mediana quanto a de um Sílvio Romero. A pátria, os heróis, os revolucionários constituem o círculo onde se move essa poesia presa às peias das ideias. Por isso merece ser lido o seu soneto a Dom Quixote, de 1890. Sem maiores novidades no ritmo ou na sintaxe, o soneto se alarga em leituras de sentido amoroso ou político, mas sempre deixando perpassar uma desilusão, um desencantamento, dito, no entanto, de modo feliz.
Porque há pior; é ir-se a pouco e pouco
Perdendo qual perdeste um ideal ardente
E ardentes ilusões – e não se ficar louco.
Crê ele também que, face à fugacidade dos fatos, “o que persiste é obra dos poetas”.
Canudos ecoa ainda hoje
Há mais de cento e vinte anos o país deixava o desgoverno de sua ignorância ir à cata do país profundo: “Convinha-se em que era terrivelmente paradoxal uma pátria que os filhos procuravam armados até os dentes […]”. Hoje, aqui e ali, a bala cala o clamor dos deserdados. Onde estão os canudenses, aqueles? Em que desmemória? E os de hoje, em que descaso? Sem o vigor da voz de Euclides da Cunha, a deslembrança teria tornado sem sentido seu sofrimento. No entanto, o episódio de Canudos ecoa, cada vez mais, na voz viva dos desempregados, dos sem teto ou terra. Cem anos depois, onde as migalhas dessa memória? Só em alguns meios – um encontro, um congresso –, resgatados, por um momento, da remota má memória: o chão real, emblematicamente coberto pelas águas de um sistema social que submerge ali o desconforto do episódio.
Mas “Canudos não se rendeu”: vinga-se e vence hoje na miséria lastrada pelas estradas de Norte a Sul de um país atônito. Cem anos – e haveria o que celebrar? Um texto – Os Sertões –, que, pela força de sua densidade expressional, nos bloqueia a desmemória.
Por certo, ainda e sempre, a função social do texto aqui se atesta: a recriar o havido, através da linguagem, para que, assim, o evento traumático seja lido, assumido, inserido como um sinal, um estigma, marcando a história nacional. O grande texto de Euclides cobra, de cada um de nós, a pertinência de um olhar crítico, atualizado, que mostre a radiação daquele fato pesando sobre o presente. A força do texto euclidiano está aqui em conjugar lucidez de visão e generosidade no debruçar-se sobre uma questão candente – expondo-se ao risco da interpretação nova e ao risco da forma de dizer-se. Risco da interpretação nova: já havia um quase consenso que sepultava Canudos numa interpretação de um episódio infeliz, feito a bem da República. Risco de um modo de dizer que conjugava, à ciência, um verbo barroco, desconcertante. Euclides havia ousado um registro pouco comum para dizer uma experiência desconcertante. De outro modo, como dizer o horror ali perpetrado “com a só fragilidade da palavra humana”?
Aí temos Os Sertões. Euclides se cria e se queria um intelectual sintonizado com seu tempo. O tom de indignação de seu texto resulta da generosidade de quem se quer, por inteiro, em prol dos deserdados: e ousa dizer ter sido aquilo um crime.
Os Sertões, nesse início de milênio, põe em xeque-mate a função dos promotores de cultura contemporânea. Cultura é o sentido imediato que damos às nossas práticas. Não somente sinônimo de entretenimento e lazer das tardes de domingo que, bem ou mal, urge preencher. E quase sempre confundindo exposição exótica do outro, dado em espetáculo. Cultura é mais a circularidade de saberes que dão sentido imediato à vida social de um determinado grupo. Se isso se perde, perde-se, com sentido, o cimento social. Hoje, no muito que se perde, perde-se sobretudo a indignação que dava pela sua falta. Quando as injunções políticas e sociais parecem estreitar o campo das realizações, é quando urge dar-se conta de que nada é mais prejudicial à cultura que resignar-se ao real. A inflação de desencanto acua o país a um pernicioso marasmo mental.
A atualização do texto euclidiano vem no sentido de pôr à prova o imaginário político para buscar novos modelos de convivência e de responsabilidade social a partir das letras.
O texto euclidiano desafiou, também, os tempos: persiste como modelo. Historicizável, como tudo o que fazemos, de um modo de ver o mundo, associando o saber ao agir. Embora seja obra que sofra de ser mais referenciada – ou: mais reverenciada? – que lida, sua presença carrega certo ranço de banco escolar. É só depois, quando a realidade nos provoca, que vamos nos dar conta da marcada laboração de linguagem desse poeta que se inflama a frio, na tessitura musical, na exploração das virtualidades verbais, para dizer, “com a só fragilidade da palavra humana”, o horror ali perpetrado. (Euclides fez violência à estrutura consensual da frase: deslocou, de modo desusado, o advérbio – e efeito é forte: chama a atenção para a fragilidade da palavra ante o desmedido do fato: a linguagem é só fragilidade, ela não dá conta do absurdo ali perpetrado.) Que registro, para dar conta do extraordinário, para pensar o impensável, sem cair na degradação da indústria das letras, extraindo dividendos sociais do tema?
A modernização que a República prometia levava de roldão as culturas a que o isolamento depauperou, desaparelhando-as. O impacto modernizador, ontem e hoje, choca por ameaçar homogeneizar as diferenças regionais. Havia, no entanto, uma reivindicação rural velada, buscando resistir às novidades que a metrópole impunha. Como diz Ángel Rama, “la modernización positivista, llegó a ser el modo expressivo de las revindicaciones rurales contra la aculturación violenta a que estaben siendo sometidas las regiones internas (el trágico episódio de canudos que contó Da Cunha en Os Sertões, 1902)” (em Transculturación narrativa en America Latina).
O procedimento literário aqui, a figura retórica – discurso figural e semiologização cultural –, permite ao narrador abordar o problema social pelo emblema figural. O narrador procede por encadeamento (leitura analógica) e por deslocamento (para elementos contíguos). A leitura euclidiana opera obliquamente, sem precisar cruzar diretamente o medusante mundo militar que o fascinara na juventude. A forma d’Os Sertões nasceu do impasse ideológico, como já Walnice Galvão apontara em Gatos de outro saco (1981).
Moeda corrente, hoje, entre as perspectivas historiográficas, o enfoque de novos objetos alargou a análise de outras expressões do complexo cultural. Todo historiador, um dia ou outro, se vê confrontado com um tipo de documentação assim. As histórias populares, a fabulação do mundo, a historiografia positivista dispensava, para ater-se tão só à superstição do informe factual.
A crítica negligenciou aspectos fundamentais dessa obra, seja porque a lia pelo prosaísmo positivista, seja pelo dogmatismo cientificizante. Nos cem anos de Canudos, vale tentar repor a pertinência social desse texto testemunhal.
A leitura do momento convertida em signo. O signo laborado com um empenho especial. O texto é já um emblema. Um sistema de interpretação. Euclides, a um tempo arrebatado e arredio, resolve a paixão política na literatura. Novelística e historiografia se fundem aqui.
A paixão de conhecer vem como uma transgressão, nesse engenheiro perdido no mundo das letras. Ou, talvez: nesse literato a quem as circunstâncias acuaram à engenharia de estradas. E aqui ainda, a escolha de um código já de pouca circulação em seu tempo: um cientificismo barroco, para dizer a complexidade do real social por outra via que não a apenas conceitual. Barroco por sua engenharia verbal, seu colorido forte, pelo gosto das metáforas brilhantes e figuras fortes: “homens inermes carregando armas magníficas”. Ou, vendo os soldados depauperados como “um feixe de ossos amarrados por um feixe de nervos”.
Processo ousado que permite dar conta de sua inserção social sem, no entanto, abrir mão de sua independência estilística. Porque é a estrutura barroquizante de sua frase que melhor se vai adequar à mestiçagem cultural da aquarela brasileira que Euclides pretende traçar a partir do episódio de Canudos. Seu afã escritural e científico corresponde a uma necessidade política e à reivindicação de uma liberdade artística. Assim como responde ao vazio cultural de que falava Capistrano de Abreu, de um país sem projeto agregador. E o dizer literário age como espaço crítico enquanto expressa insatisfação.
Surpreende a pertinência desse procedimento: procedimento único e inaugural, que permite um outro princípio redistributivo das temporalidades nacionais. À cata de captar as razões de ser daquele momento. Saber e ousadia. A liberdade na sua forma mais extrema: a da transgressão de um modo historiográfico. E aí, repensar a realidade nacional por um outro prisma: se não mais podemos acompanhar as civilizações assentadas, sugere Euclides, podemos mudar de direção.
Em tempos do espectro da globalização, é oportuno lembrar a lição de Euclides. Como a de Machado ou a de Nabuco, naquele momento em que o Brasil apenas começava a assumir sua diferença – mas que se mantinha ainda muito preso à atração medusante exercida pela “comum origem europeia”. Quanto, ainda agora, o Brasil ignora o Brasil? Euclides diz, com igual proveito e prazer, essa situação de uma sociedade que se desconhece, assombrada pelo outro nela mesmo. Problema permanente das culturas, desafio interculturalista: como num nevoeiro, o outro está sempre ali, próximo e desconhecido. É o gaúcho em Rondônia, é o nortista em São Paulo, é o soldado em Canudos: uma fragilidade ontológica faz como hostil o que não se entende de imediato.
A cultura nordestina é, por fim, assumida pelo Euclides que, vendo pelas lentes de um positivismo livresco, resistia a suas raízes: cavando pouco basta para ver sua ascendência baiana. Texto de maturação, já longe do calor da hora, para lembrar Walnice Galvão, que estabelece a distância das cadernetas de campo, das reportagens e a versão final d’Os Sertões, aqui Euclides submete seu material ao forno transmutativo das assimilações. Roberto Ventura chama a atenção para essa reviravolta da valoração euclidiana: aqui já ele está atento à cultura popular, à fidelidade do vaqueiro, à ciência ecológica, à força da tradição na identidade regional – especialmente no imaginário dos repentistas. O historiador nutre seu texto com crônicas, canções de cordel, coisas do folclore e outros informes.
Já nos idos de 1950, Philippe Ariès observava que “a uma civilização que elimina as diferenças, a história deve restituir o senso das particularidades”. É o que faz o texto euclidiano: tenta apreender a diversidade entre as temporalidades distintas, a partir das mudanças sociais. Das variantes das vivências culturais.
Ali, o delírio nacionalista implicava em rejeição da diferença – matriz da besteira banal, cotidiana, onde vinga a intolerância: confrontar-se diferenças não implica conflitar-se. O soldado no Sertão projeta como ameaçante o Outro – porque escapa à sua configuração mental. Como antes, Barleus ou Lope de Vega vendo como demoníaco o espaço novo, sul-americano. Vindos do Sul, soldados achavam-se como em terra estranha. “Era outra terra. Outros hábitos. Outra língua mesmo”. Já aqui um índice: toda recusa dialetal finda por ser letal. Começa-se por recusar-se ao outro o espaço da singularidade de sua fala – depois, finda-se por impor um padrão, um patrão, e, aí, cala-se então a voz do outro.
Os Sertões arrancam do esquecimento uma região que o país marginalizara. Euclides questiona aqui o julgamento circunstancial feito a Canudos – quando a paixão política alargou um mal-entendido até o desastre. Voo de volta da coruja de Minerva, o texto euclidiano levanta um processo contra suas ilusões, através do proceder literário.
A grande força do testemunho euclidiano vem do modo de reconstituição da vida social conjugada a uma análise antropológica empática. E que resulta numa abordagem nova, em nossas letras, da questão cultural. Assim, quando o argumento falha, o historiador muda de registro. Lá onde a implacável exigência do homem de ciência fracassa, a intervenção do registro poético opera. Este estilo híbrido faz a força do texto euclidiano. Daí a multiplicidade de vozes, de registros, que leva o leitor, pela superposição dos elementos, a ler além do documento. A ir à configuração do imaginário social. A unidade jornalística é aqui quebrada para fazer irromper a densidade expressional de uma linguagem que quer fazer justiça às nuances do real, que o discurso científico precisava ignorar, por não ter como dele dar conta.
É quando a figuração retórica vem para resolver o impasse conceitual. O que Euclides vê no Sertão, sua ciência não saberia dizer senão criando uma outra linguagem. O perceptum é mais vasto e vertiginoso, como o real, e não cabe num conceptum. Ainda aqui foi Walnice Galvão quem viu bem. Trata-se de uma “anatomia”, como se dizia no século XVII – uma imagem com função analítica. Esse, o processo euclidiano: tentar ver claro, distinguir causas e coisas. Função do intelectual, por certo. Que pode, inclusive, errar a mira: ele tem sempre a limitação de seu horizonte histórico. E Euclides se equivoca, em muitos momentos. Peca por paixão. Nunca por omissão.
Seu empenho está em mesclar registros, num modo que só à linguagem literária é permitido, para dizer com vigor as várias vertentes da vida. Em alguns momentos ele vai valer-se do registro irônico para melhor apontar o absurdo: uma criança perambula, com um quepe enorme que quase lhe cobre entre a cara, andando desajeitada. “O quepe, largo e grande demais, oscilava grotescamente a cada passo, sobre o busto esmirrado que ele cobria por um terço. E alguns espectadores tiveram a coragem singular de rir. A criança alçou o rosto, procurando vê-los. Os risos extinguiram-se: a boca era uma chaga aberta e lado a lado por um tiro!” (Os Sertões).
Em outro momento, um soldado, moço ainda, dorme, em plena campanha. Todo o quadro é bucólico, como quadra àquele registro. Vítima do assalto de 18 de julho, ficava ali sob uma quixabeira alta. “O sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão, e protegido por ela – braços largamente abertos, face volvida para os céus – um soldado descansava. / Descansava… havia três meses.” O grande lance do texto de Euclides da Cunha é o modo de relatar a barbárie daquele embate de mal-entendidos. Um modo que parece absolver o absurdo do mundo em beleza. Mas, hoje, cem anos depois, quem conta a história dos que, herdando o abandono social ontem comum a Canudos, descem dos sertões, da mata, e que se põem nas periferias, nos pés de ponte, as mãos mendigas – ante a indiferença de nosso olho urbano que já os incorporou à paisagem?
A leitura d’Os Sertões é uma necessidade. Se o texto é uma festa da linguagem, por seu modo singularmente denso, é sempre necessário, por ajudar a detectar as insuficiências do passado para considerar possível fazer face às insuficiências do presente.