por Rodrigo Coppe
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Um dos aspectos que caracteriza a grande literatura, ensina Ezra Pound, é uma linguagem “carregada de significado até o máximo grau possível”. Elemento de sobra no A Mercadoria mais preciosa: Uma fábula, do escritor e roteirista Jean-Claude Grumberg. Vencedor de várias premiações pela dramaturgia que produziu, o francês nos brindou no último ano com essa história que nos faz mergulhar no terror insondável das deportações em massa, porém, de mãos dadas com a esperança. O escritor nos entrega uma breve, mas distinta e tocante fábula sobre a condição humana e seu entrincheiramento ontológico pelo mal.
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Ambientado durante a Segunda Grande Guerra, em que a indústria da morte funcionava a todo vapor, com seus trens cortando o Velho Continente levando judeus em uma viagem sem volta ao inferno, Grumberg nos ensina uma lição que deve ser repetida incansavelmente: a dignidade do ser humano é universal e deve ser defendida. “Os sem-coração”, como o pobre lenhador da fábula denomina os judeus, “têm coração. Os sem-coração têm um coração como você e eu”.
O sofrimento e a esperança são os temas da história desses lenhadores que presenciam cotidianamente um trem passando de lado a outro cheio de uma desejada e fantasiada mercadoria que aliviaria sua fome e frio. A vida humana esvaziada por inteiro de sua dignidade e os seus restos encontrados no esforço sobre-humano em salvaguardá-la.
Os papeis que são jogados do trem e que a “pobre lenhadora” recolhe, mesmo não sendo capaz de lê-los, logo é respondida em seu desejo. A tensão entre a vida e a morte é materializada em um “presente” que acaba por ser “descartado” desesperadamente por alguém carregado em direção aos campos da morte: uma “mercadoriazinha”, um bebê enrolado num xale de oração.
Utilizando-se da narrativa ficcional, o autor tenta contornar a nossa incapacidade de encontrar palavras para expressar a ofensa ao humano perpetrada pelo totalitarismo ao nos levar ao fundo intransponível, como expressou Primo Levi em É isto um homem?. Tal ofensa está enraizada no escândalo do mal e sua expressão na amplitude inimaginável da Shoah. A presença incompreensível da existência do mal em nós e suas irrupções e surtos contínuos e persistentes nos leva a concluir que sua realidade é mais a norma do que a exceção. No entanto, Grumberg abre um espaço nessa tessitura e deixa a nu a ambivalência da experiência humana, em que o mal e sua expressão maior nos campos de concentração nazistas é equilibrado pela força e coragem de uma mulher que não cede a nada em sua busca de salvar uma vida. No esposo, que insiste em ver naquela criança um “sem-coração” culpado por deicídio, também incide a compaixão e o amor que a esposa emana pela criança.
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O tema antropológico atravessa o texto e se encarna na grandeza e heroísmo de uma mulher que se arrisca e encara os perigos reais ao ir em direção à verdade do humano, sua existência e seu desejo de viver. A tenacidade de um coração que pulsa. Em tempos de embrutecimento e negação do outro, uma história de sofrimento e esperança que nos lembra o humano por trás de cada coração pulsante.
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