por Jacques Fux
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I.
Ele lamenta profundamente que a sua vida tenha chegado ao fim. Ele não teve amigos, não teve filhos, nunca conheceu uma mulher. Ele nunca sentiu prazer em desfrutar de uma bela refeição, em fazer uma viagem a uma praia, em conhecer uma pessoa. Nunca gostou de jogar conversa fora, nunca se incomodou com a existência dos outros e nunca se importou com a própria vida. Nunca viveu, nunca amou, nunca foi amado. Mas mesmo assim lastima o inevitável fim. Ele sentirá saudades, muitas saudades, do fantástico mundo que inventariou só para si próprio.
Ele desaparece em 1973. Oitenta e um anos não vividos, mas de profunda imaginação e dor. Ele era uma pessoa reclusa, solitária e completamente isolada do mundo físico. Um ermitão. Um asceta. O maior dos eremitas. Escritor e artista? Ele escondia um grande segredo. Um mistério que o pulsionava a acordar e devotar todas as horas do seu dia durante vários anos. Décadas. Vidas. Um sacerdócio que o compelia a viver, e fugir, da própria loucura. A sua missão na Terra.
E ele ressurge surpreendentemente após sua morte. Seus vizinhos entram em seu apartamento para limpá-lo e descobrem um impressionante mundo. São mais de trinta mil páginas escritas. Milhares de desenhos, cadernos, jornais, revistas. Um outro universo. E nada era sem razão. Nada era por acaso. Nada era contingente. Havia ali, talvez, o maior dos romances já escritos, com 15.145 páginas. Sua autobiografia, da vida que inventou ou que recalcou, com 5.084 páginas, e um outro livro iniciado, mas não finalizado, com 8.000 páginas. Além disso, os vizinhos estupefatos diante de algo que nunca compreenderam, ainda encontraram o registro de mais de dez anos de anotações sobre a temperatura e o tempo. Tudo catalogado e contrastado com a previsão fornecida pelo Jornal local, muitas vezes dissonante com as notas. Ali tudo estava ordenado de um modo definitivamente provisório ou de um modo provisoriamente definitivo. Que diferença faz? Tudo era arte. Criatividade. Loucura. O mundo naquele quarto inóspito era mais que infinito. Inumerável. Impossível. Como já dizia Blanchot: “No imaginário reside o infinito”.
E assim viveu alguém que nunca viveu de fato. Mas que se eternizou. Assim é o projeto artístico e enciclopédico de Henry Darger. Com um valor inestimável. Incalculável. Inverossímil. E sem razão alguma.
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II.
Ele era católico. Permaneceu temente à invenção de qualquer outro deus. Frequentava a missa com assiduidade. Diversas vezes por dia. Venerava e odiava a religião, mas vivenciava receios profundos: “Será que sou um verdadeiro inimigo da cruz ou sou um santo muito arrependido?”. Tinha medo, muito medo do que a religião era capaz de fazer. Seu corpo é prova viva disso. Ele tem as marcas da fé, da devoção, da santidade dos padres e das freiras cravados em seu cadáver. Ele foi abusado, espancado, subjugado em função de algo que nunca compreendeu. Teria sido culpado por algo que jamais imaginou? O sobrenome de sua mãe, Fullman, teria sido responsável pela tortura? O nome, e a cultura inventada da sua própria mãe, que desapareceu quando ele ainda era muito criança, e que não ele não guarda nenhuma lembrança, seriam os responsáveis pela sua loucura, pelo seu sofrimento, pela sua herança maldita e pelas perversões católicas tatuadas em seu corpo? A culpa do deicídio, “o seu sangue recaia sobre nós, e sobre nossos filhos” foi sentido por ele, mesmo sem se atinar? Sua família foi convertida à força no passado? Sua mãe assimilou uma outra cultura? Ele, e sua memória, diluíram-se ao longo do tempo? Viveu o esquecimento da aculturação? Por que Deus, padres, freiras, impingiram tanto sofrimento a ele? Ao mundo? Será que, então, a loucura, e a arte, foram a sua única saída?
A verdade ardilosa é que ele apenas viveu recluso. Escondido. Encarcerado na sua própria prisão. Na sua própria arte e vontade de profanar a si mesmo e ao mundo. Um mundo que ele excluiu por vontade e trauma. Um mundo que o descartou, por contingência e crueldade. Ele viveu preso como um menino. Isolado e desconhecido como algum criminoso. Porém foi redescoberto e glorificado como um dos maiores artistas ‘outsiders’ após sua morte. Sua loucura, sua obra, sua imaginação, ilustram diversas questões políticas, institucionais, culturais, religiosas, estéticas. Seu desaparecimento como louco está profundamente ligado ao seu ressurgimento como artista único.
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III.
Ele escreveu um romance. O verdadeiro romance. Aquele escrito para nenhum leitor. Aquele que vive, ama, pulsiona, só em busca da verdadeira arte do autor. Mas um autor que não deseja, de forma alguma, criar arte, imponência ou beleza. Autor que escreve pois é só naquele instante que está vivo. Só naquele instante que compreende, e justifica, a razão contingente do seu sangue vermelho, cruel e ridículo, que insiste em correr nas veias daquele que sofre. Artista que deturpa o sentido, o ato, a experiência. Seu romance: The Story of the Vivian Girls, in What is Known as the Realms of the Unreal, of the Glandeco-Angelinian War Storm, Caused by the Child Slave Rebellion, com suas 15.145 páginas, escrito durante sessenta anos (1911 a 1971) é magistral ou terrível? Isso importa? São quinze vezes mais fantasias que própria Mil e Uma noites, que promete a eternidade. São sessenta anos de labuta, um evento comparável a Goethe, a um Fausto reinventado. Uma experiência vislumbrando o nada.
O livro narra uma guerra épica entre a nação cristã de Abbieannia e seus aliados, contra os ateus de Glandelinia. Este último, um estado autoritário que deseja perpetrar a escravidão das crianças forçando-as a trabalhar em sinistras fábricas. O autor inspira-se na Guerra Civil Americana, nas alusões aos jovens, pobres e urbanos de Charles Dickens, e nos mundos fantásticos de Oz e outras invenções de L. Frank Baum, Assim ele constrói sua criação. Assim ele apresenta todos os problemas que vislumbrou. E assim ele aparece com todas as soluções que deus nenhum é capaz de fornecer.
Nessas quinze mil páginas ele questiona a fé, a bondade, a coragem, além de se recordar constantemente das experiências dolorosas de sua infância, quando viveu em uma casa de ‘caridade’ para meninos em Chicago. Ele, personagem, e também o Salvador do próprio livro, narra suas desventuras no asilo em que de fato viveu. Esse lugar era destinado para pessoas portadores de deficiência mental. Na cidade de Lincoln, Illinois. E foi lá que o autor/ator/criança foi confinado em sua adolescência. Dor narrada em busca de uma expiação.
Essa sua arte, ou seu fingimento apócrifo, simbolizaria a descrição de seu estado mental interno: uma externalização perturbadora de sua experiência traumática familiar; uma eterna revisitação das cenas horrendas de sua infância, uma tentativa inútil de penitência e expiação. Quase fadado ao esquecimento. Ao desaparecimento. Ao lixo.
Mas em 1973, boom! Ressureição. Milhares e milhares de páginas redescobertas. Ele era o novo Santiago. Um Artur Bispo do Rosário ainda mais meticuloso. Um verdadeiro personagem de Borges. O único autor do “O idioma analítico de John Wilkins” e de “Funes, o memorioso”. O novo Lineu, Diderot, D’Alembert. O verdadeiro, único e possível escritor e artista. O inventor da ficção, literatura e de uma outra realidade.
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IV.
“Era uma vez um menino que nasceu. Nasceu no dia 12 de abril de 1892”. Ele começa a escrever a própria história. O motivo. A razão. A pulsão. E ele ainda não está louco. Somente vive o luto e o sofrimento da memória que se esvai lentamente. “O menino nasceu e não se recorda do dia que sua mãe morreu e nem quem adotou sua pequena irmã”. Aqui ele começaria um outro W ou a memória da infância.
Ele não se lembra da mãe e da irmã. Passou a vida inteira em busca de alguma memória que pudesse lhe dar conforto. Desconhece o nome das pessoas mais importantes da sua essência. Desconhece a própria cultura e os valores. Passa a vida em busca da lembrança de um carinho, de um beijo, de um sorriso, de uma explicação. E nem em suas milhares de páginas consegue desvendar os mistérios desse deus que constantemente insiste em abandoná-lo. Sua mãe desaparece e ele tem que ficar com seu pai. Ausente. Duro. Louco.
Ele não fica muito tempo com seu pai. Este é enviado para um lugar em busca de um tratamento para a loucura. Problema comum na época. Questão mal diagnosticada e muito perseguida. Aos oito anos, então, seu pai, muito enfermo para tomar conta do menino, impõe-lhe o caminho do orfanato. Um lugar conhecido ironicamente como “A missão das mulheres da piedade”. E lá é um horror. Uma abominação. Um inferno. Um estupro. Foi lá em que ele descobriu a cor do seu sangue. A hediondez, e a beleza, da religião. Foi lá onde ele sentiu a culpa dos seus antepassados. O sangue recaindo sobre seus ombros.
Mas ele também perturbava seus colegas. Além de sua presença constrangedora, ele emitia barulhos, e fazia gestos, que molestava todos. Por que? Nem ele sabe. Ele tinha o rosto do crime atribuído injustamente ao seu povo. Ao povo que nunca nem sequer conheceu. Assimilação total? Não. Muito mais que isso.
E inserido nesse inferno, recebe a pior das notícias. A notícia de que o sonho da chegada de seu pai, salvando-o do mal, da perseguição, da dor e da loucura, nunca mais seria possível. Nunca. Jamais. A morte de seu pai, e de seus sonhos ainda calcados na realidade, era eterna. “Eu não chorei. Não consegui. Eu senti uma tristeza tão profunda, que nem consegui derramar algumas lágrimas. Senti uma dor tão terrível. Eu preferia ter chorado, se tivesse conseguido”.
Assim ele se encontra sozinho no mundo. Inteiramente abandonado. Desassistido. E ainda é odiado pelos colegas e pelas freiras. E ainda lhe atribuem um outro pecado. Pecado que o enviará para um lugar ainda pior. Que fará com que ele se recorde desse abrigo com saudosismo.
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V.
Eles o culpam por algo natural. Normal. Banal. Algo que todos sempre fizeram e fazem. Mas que aborrece os religiosos, por que eles se sentem profundamente atraídos. Um desejo maldito. Proibido. Pecaminoso. Um maravilhoso desejo que eles reprimem, mas que praticam continuamente nos subsolos, nos porões, no submundo da vida. Longe dos próprios olhos.
Assim justificam sua expulsão do primeiro orfanato. Assim eles lhe atribuem a loucura que nunca mais abandonará seu mundo. Assim deixam registrado o motivo: “Formulário”: “At what age and in what manner was any peculiarity first manifested? Self abuse from six years. Is the child very nervous? Yes. State any peculiar habits the child may have. Self abuse. Is the child given to self abuse or has it ever been? Yes. What cause has been assigned for its mental deficiency? Self abuse. Is it considered congenital or acquired? Acquired. Is the child insane, or has it been pronounced insane by a physician? Yes.”
Pronto. Ele é louco por se masturbar. Por exibir seu falo proibido. Por se expor ao prazer. Mas ele só descobre essa culpa anos depois. Inicialmente disseram-lhe que ele tinha um problema no coração. Seu coração estaria no lugar errado (assim como sua mente e seu falo?). “I was taken several times to be examined by a doctor, who on the second time I came, said my heart was not in the right place. Where was it supposed to be in my belly?…I did not know it at the time, but now I know I was taken to the doctor to find out if I was really feeble-minded or crazy…Had I known what was going to be done with me I surely would have run away”.
Hoje ele sabe que foi levado ao médico, não para que fosse procurado o lugar do seu coração, da sua alma, da sua paixão, da sua culpa, mas para confirmarem a loucura que sugeriam habitar seu corpo. Aquele corpo endemoniado. Infectado pela busca do próprio prazer. Do prazer que excitava os outros. Que contagiava o gozo dos religiosos. E isso é extremamente perigoso. É necessário esconder. Pecado. Transgressão. Perversão. Assim ele teve que ser despachado para um outro lugar. Longe dos olhos, e do olhar, da suposta sanidade.
Ele foi enviado para uma clínica de crianças com problemas mentais. Ali eram todos loucos, esquizofrênicos, perigosos e poetas. Mais de mil e quinhentas crianças habitavam aquele lugar. Ali eles não eram tratados. Eram apenas ameaçados, desprezados, escravizados. Trabalhar. Trabalhar. Trabalhar. “Só o trabalho enobrece?” Será? “Estaria me tornando nobre, santo e casto labutando todos os dias durante dez horas? E sem fazer nada, nada de útil? Cercado por pessoas, que perdiam a gana, o sentido e a vontade de viver?”
Ele ficou nesse asilo para loucos durante sete anos. Labão? Jacó? Verdade, poesia ou ficção? Porém só houve crueldade, nada de recompensa ao final. Ele só viveu a terrível e profunda saudade de uma história que nunca contou.
Finalmente ele foge do asilo e vai trabalhar como limpador de chão num hospital em Chicago. Trabalho que realizou durante toda sua vida. Trabalho que lhe fez sofrer muito. Muitas vezes chegou até a imaginar que o orfanato fosse o Paraíso. Aqui também ele é maltratado. Subjugado. Depreciado. Nada bom acontece na sua vida. Nunca acreditou que a vida fosse um presente de Deus.
Então, em 1909, ele resolve criar o próprio mundo. O grande projeto de sua vida. Uma tentativa de ludibriar a realidade e satisfazer a si próprio. Tem início o projeto enciclopédico de escrever, e ilustrar, uma imensa epopeia. Quinze mil páginas. Quinze mil sonhos multiplicados, recriados, rebuscados. A vida que viveu foi só um rascunho pífio da nobre literatura que se propõe a fazer.
Ele começa a colecionar revistas, gibis, jornais, figuras, tudo. Ele aprende a ilustrar, desenhar, recriar. Ele copia e reinventa imagens e ilustrações. Ele descobre uma técnica própria. Ele reproduz livros, histórias e nomes que gosta. Ele se inspira em O mágico de Oz, A cabine de Tom, Dickens, Penrod.
Mas ele sabe muito bem do personagem de Scrooge, de Dickens, “um velho pecador, extorsionário, violento, ganancioso, avarento, ambicioso e sovina”. Aquilo aliena sua alma. Aquilo se choca com seu ser. Com o seu ‘eu’. Com a sua busca. Ele se perde ainda mais. Mais e mais ele já não sabe quem ele é.
Em 1917 ele se junta ao Exército. Mais uma terrível experiência. Ele tem que abandonar o agradável mundo que estava criando e enxergar coisas que não queria conceber. Guerra. Morte. Estupidez humana.
Ele é dispensado do Exército por um problema na visão. Observava o mundo de forma diferente demais. Nada dali podia ser real. Possível. Plausível. Seus olhavam miravam outras vidas. Outros caminhos. Milhares e milhares de outras páginas. Assim sua obra, em função de uma vida impenetrável, vai surgindo lentamente.
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VI.
Em seu romance ele se lembra de um inimigo terrível. O inimigo que será responsável pela escravização das crianças. Inimigo que ele, Darger personagem de si mesmo, vai lutar contra. Manley, na história e na vida, era seu dibouk, Aquele que o perseguiu, importunou, molestou.
Mas ele também, surpreendentemente, teve um amigo. Um parceiro. Uma alegria para enfrentar o mundo. Woody Shloeder. E ele e o amigo foram os fundadores de uma instituição de proteção das crianças. Eles eram os salvadores, os heróis, os grandes guerreiros lutando contra as injustiças da Terra e do Céu. Combatendo com voracidade o maldito Manley.
Ao longo de sua vida e obra, Darger dedicou-se a blasfemar e idolatrar um Deus desconhecido. Ele respondeu à injustiça divina através da sua obra, visitando o sofrimento nos personagens cristãos. A maioria dos seus personagens são crianças. Algumas inocentes. Outras nem tanto. Ele se preocupa com a teodiceia. Sua obra surge como uma explicação última para problema do bem e do mal, e ele se representa como um santo virgem e justo.
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VII.
Self abuse era conhecida como uma prática malévola de masturbação insana. Um crime. Em meados do século XIX, a loucura como resultado de “autoabuso” tornou-se uma crença popular e figurou nas categorias de insanidade moral. Era um diagnóstico importante, porque a masturbação era uma expressão comum de sexualidade. E isso era um problema que devia ser combatido.
Sexualidade, masturbação, loucura: atribuições bem judaicas que habitavam o imaginário popular na época. Darger sabe muito bem disso. Sente e vive a culpa, a perseguição, a imposição da loucura. A sexualidade lhe sai dos poros. Ele quer. Precisa. Gosta. Mas é impedido. O gozo lhe lembra dos espancamentos por que passou.
E ele tem uma ideia. Talvez uma forma de compreensão da criminalização do prazer. Ele constrói um mundo em que a mulher é completa. Em que não há culpa. Ou teria construído essa mulher/menina por completa ignorância em relação ao outro? O que saberia ele das mulheres? Apenas que, em forma de freiras, abusaram constantemente dele? Teriam elas se exposto alguma vez? Ou ele apenas experimentou o prazer, e a dor, por meio de surras, de penetrações e perversões? Como entender o outro? Assim ele representa a mulher/menina que não conhece. Elas aparecem, milhares e milhares delas, com um falo. Um pequeno falo. Um falo guerreiro. Essas heroínas são chamadas de Vivians.
As Vivians têm pênis porque elas representariam a Igreja? A culpa, a perversão, o abuso e a falsa castidade? As Vivians são os exemplos mais explícito de mimetismo de imagens católicas. Suas descrições e imagens adulteradas. Assim ele representa a beleza, a coragem, a santidade e a perversão. As Vivians são vítimas de torturas e também as responsáveis. As Vivians representam um paralelo em relação à violência extrema e sexualizada imposta aos corpos femininos presentes na tradição medieval. Assim Darger brinca com a construção da santidade fálica dessas meninas. Ele elabora o mistério de suas qualidades aparentemente sobrenaturais. Ele dá atenção à beleza física em vez do comportamento. Ele discute a perfeição ficcional. A perfeição da mulher com pênis.
Já que nenhuma mulher nunca poderá escapar de seu próprio corpo, ele impõe uma santidade ainda mais marcante. A tentação do diabo reverbera através do corpo e da sexualidade. Assim, em seu mundo mágico, as meninas assumem esse estranho papel. Elas são personagens diferentes. Inusitados. Distintos de tudo que já fora concebido. Não havia nada que elas não conseguiriam realizar. Todas ela, figuras metafóricas de ninfas, amazonas, crianças, possuíam essa pequena espada. A mulher/menina, a relação sexual, a completude existiam, de fato, em seu mundo.
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VIII.
“Nessa história as crianças são escravizadas há mais de quarenta anos. Crianças, separadas de seus pais, são obrigadas a trabalhar exaustivamente, sem receber um centavo, e em condições terríveis de vida”. Assim mistura vida e obra. Lembranças e recalques. Sofrimento sublime.
Ele se recorda das irmãs de caridade ao longo de seu trabalho. Que caridade era aquela? Uma caridade que só lhe causava angústia. Medo. Desprezo. Adulteração. Ele foi violentamente violado pela certeza da boa-fé. Da fé divina. De um deus que só lhe fez sofrer, no corpo, o crime perpetrado dos outros.
As crianças, no entanto, aparecem muitas vezes alegres. Felizes. Sempre a brincar. Talvez com um olhar angelical. Tímido. Reservado. Infantil. Mas quando são pintadas nuas, algo ressoa como uma punição. Um castigo divino. Elas sentem culpa. Há uma maldição em seus retratos. Há sofrimento. Já os meninos nus são colocados na estória para serem sacrificados. Humilhados. Blasfemados. As crianças, meninos e meninas, foram sequestrados de seus lares. Tiveram suas roupas arrancadas. Foram amarrados em árvores esperando a crucifixão. A expurgação do pecado que não têm. E ele, Darger, seria o Salvador, o Mashiach, dessa miséria toda.
Mas ele não entende. Não compreende o motivo da dor que teve que passar. Ele frequenta com ardor as missas. Muitas missas. Um santo? Um santo arrependido? Um demônio recuperado? Um ser humano comum? Inocente e malicioso como uma criança?
Agora ele gosta de crianças. Sente uma atração inexplicável por elas. Sempre sentiu? Mas o que é esse desejo? Santo ou demoníaco?
Quando muito jovem, nunca sentiu atração pelas crianças. Elas viveram, com ele, naqueles infernos. Elas sofreram a mesma dor do esquecimento e da tortura. Mas, ao crescer, percebeu a pureza e a verdade que nelas se escondiam. Começou a desejar algo que não compreendia. Assim seu mundo foi criado para elas. E ele era o Salvador, o Escolhido, o Messias das crianças esquecidas, órfãs e maltratadas.
Em 1917 ele até tentou adotar uma criança. Mas negaram-lhe. E a única forma que encontrou em tê-las ao seu lado foi através da coleção exaustiva de fotos. Um Lewis Carroll reinventado. Carroll colecionava fotos de crianças nuas, mas as retratava vestidas. Darger colecionava fotos de crianças vestidas, mas as retratava nuas. Nuas e completas, sempre com a presença do falo. Anjos? “Não há nada de mais esplêndido, mais bonito, mais sublime, nas criações humanas que os desenhos e desejos dos anjos”. Por isso a invenção das Vivians.
Anjos eternos: “But to give the reader ease of mind I would say never worry [about-JM] them. Violet and her sisters seen the end of the war and the glorious effects of the victory, and Heaven knows how long they lived after that. But in this story where people and children are so good, angel possessed children, for angel possessed they were, do not die until they go to heaven alive. They can be killed of course, but do not die naturally. They are in the same position as people in the Oz land, and angel possessed children stay children until they go to heaven and then they are most beautiful children ever imagined”
E nesse outro mundo criado ele compõe músicas. Acordes. Arcanjos. Ele sabe de tudo que acontece em seu mundo. Ele contabiliza todos mortos, todas as batalhas, todas as brigas, guerras, casualidades. Ele sabe o número de canhões, de armas, de personagens, de invenções. Ele apresenta um relatório dos valores empregados nas batalhas, dos imóveis conquistados e perdidos, das fronteiras criadas e roubadas. Ele sabe todos os nomes dos generais, guardas, famílias, histórias. Nomes. Nomes. Nomes. Tabelas, muitas tabelas de datas, batalhas, conquistas. Ele é o verdadeiro Perec?
As meninas retratadas sempre são mais corajosas que os homens. Por que? Porque elas são completas? Qual o motivo de sua admiração pelas meninas? Pelas guerreiras? Pelos anjos?
As meninas-anjos são belas. Ele perscruta por elas: “Nunca se conseguiu pintar a beleza, já que ninguém nunca a viu na realidade”. A realidade, que ele não conhece, é a menina sem pênis. Mas ele almeja mais. Ele de fato pinta o que imagina. A perfeição. A completude. A relação sexual.
Ele fala das meninas-anjos, mas estaria falando também da possibilidade artística? Do artista em busca do seu complemento? Qual é o sentido da arte? Qual o sentido de seu legado? Ele fez algo com intuito de fazer arte? De construir algo belo? Ele se preocupou com a beleza estética? Ou ele fez tudo isso para se livrar dos fantasmas? Para fugir da lembrança? Para escapar do seu desejo pecaminoso? Ou apenas para viver inserido na sua própria criação?
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IX.
E ele, também, inventa um outro personagem para fugir e si próprio, e até do mundo fictício que concebe. Ele é Henry Dargarus, nascido em São Paulo, um lugar que julgava ser especial, alegre, feliz. Um lugar, talvez, onde crianças não fossem perseguidas, escravizadas e abusadas. E nem que precisassem guerrear constantemente. Um lugar encantado pela beleza da inocência, da utopia e do sonho. Um lugar que ele não conhecia, mas que imaginava ser mais que perfeito. São Paulo seria um dos seus muitos reinos do irreal?
Ele, como legítimo artística, mente, subverte, subtraí. Ele vai ao padre da Igreja e diz que foi abusado sexualmente por uma linda italiana de dezessete anos que, além de corromper seu corpo, rouba-lhe a carteira. Ele descreve a mulher-menina, como uma heroína má, que o subjuga e o descarta. Quem foi ela? Qual foi seu sonho? Qual o motivo da invenção? Teria sido ela uma mulher completa?
Ele se vê diante da loucura. E não sabe como ela o ataca. Ele busca significados. Significantes. Uma menina então é notícia em todos os jornais. Ela foi assassinada. Estuprada. Dilacerada. Sua foto circula. Sua foto é tocante. Henry abraça sua dor. Annie Aronburg, a menina que habita o realms da realidade é transportada para o reino do fantástico. “Annie Aronburg foi assassinada e estuprada por ser a líder de uma rebelião de crianças”. Em seu mundo uma enorme Guerra começa em virtude do assassinado da menina.
Ele representa Annie Aronburg e pergunta “O que é estupro? Violação? De acordo com o dicionário significa desnudar uma menina, cortá-la e observar seu interior”. Ele não sabe. Fantasmas habitam seu corpo. Sua mente. Seu falo. Ele observa as mulheres/meninas/anjos de dentro. Dentro de si. Violando constantemente seus monstros.
No livro, In the realms of the unreal “a inocência vive a constante sombra do perigo”. Ele próprio, já louco, sabe do maniqueísmo em seu mundo. “O poder de Henry Darger de representar a beleza é proporcional ao seu poder de representar o hediondo”. Ele busca o crime e o sublime.
Ele vive uma luta constante por encontrar seu lugar perdido. Ele quer entender porque a vida lhe foi tão cruel. E porque ela é tão horrenda para tantos. Como a religião explicaria isso? Como não blasfemar: “Quando era jovem, nos dias de fúria, queimava várias imagens de santos, e golpeava a cara de Cristo”. Ele luta contra a religião por toda a vida, mas nunca consegue abandonar a fé.
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X.
Em 1953 Henry Darger começa a redigir diários com eventos meteorológicos. “Os meus diários do tempo são mais confiáveis que os repórteres que preveem algo que nunca acontece”. “Hoje faz sol. Às 10am 12º. 13º às 11am. Um pouco mais de 13º de 15 às 17h. De 12h às 14h 13º. Ventos do leste. 21h faz 9º”. Contingência. Acaso. Vontade divina? Fracasso. Ele dedica-se ao tempo. Ele lê a previsão do tempo no jornal e a compara todos os dias. Confirma todos os erros. E isso lhe castiga. Ele desafia Deus, ou qualquer tipo de previsão? “Ele disse que choveria hoje. E onde está a chuva? Porque ele diz chuva quando nem um pingo de água cai do céu? Ele passa por um idiota. Será que ninguém nos céus outorgou que não há como prever sempre o tempo? Os Céus não permitirão as palavras da Bíblia”. Henry tomou notas do tempo, todos os dias, várias vezes ao dia, e discutiu exaustivamente com a previsão, durante dez longos anos.
Listas. Listas. Listas. Previsões pífias. Explicações inúteis. Tentativa de controle da contingência. Será que um mundo que viveu Auschwitz, que fez com que pessoas desaparecessem e sofressem, pode prever alguma coisa? Ele sabe que não, apesar da tentativa de controlar o mundo que cataloga.
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XI.
Ele nunca conversou com ninguém. Nunca se sentiu confortável em olhar alguém nos olhos. Nunca conseguiu interagir no mundo ‘real’. Nesse mundo que só lhe trouxe motivos dolorosos. Traumáticos.
Será que a loucura, o autismo, o Asperger de Darger, foi adquirido em função da dor? Do sofrimento? Ele se tornara um solitário por opção ou tinha, de fato, modificado em função do sofrimento, suas estruturas mentais?
Tudo isso está escrito e apagado nas suas entrelinhas. Quinze mil páginas de um romance. Trinta mil páginas de escritos. Tudo para manter o mundo utópico e infantil. “Você acredita que, ao contrário das outras crianças, eu nunca quis me tornar um adulto? Eu gostaria de ser uma criança para sempre. Infelizmente sou um adulto, e um velho próximo da morte”.
E, perto de deixar a vida terrena, foi levado para o mesmo asilo que seu pai ficou, e morreu, anos atrás. Deixou para trás seu mundo, suas páginas, suas letras, suas crianças, e suas invenções.
Henry não sobreviveu muito tempo. Ao abandonar suas palavras, seus desenhos, seus sonhos preferiu partir. 13 de abril de 1983, um dia depois de completar 81 anos, Henry desapareceu.
Alguém teve uma vida mais solitária que ele? Alguém teve uma vida mais rica que ele? Não viveu, não amou, não saboreou a falsa realidade de vida. Mas ele redigiu trinta mil páginas, milhares de desenhos, inúmeras estórias, sofrimentos e alegrias incontáveis. E lá ele reinou. Foi o Salvador e o Mashiach. Foi o criador e o destruidor. O que, então, é mais rico? A realidade, que não existe, ou a ficção, que insiste em ser desacreditada?
“Sempre foi a minha maior alegria sentar e observar as princesas Vivians, suas maneiras elegantes, sua beleza, suas delicadezas. Tudo isso me ajudou a compreender o mistério das meninas, coisa que nenhum livro nunca conseguiu explicar. Elas me amaram. E eu as amei”.
Darger nos revelou o mistério das meninas. Da mulher. Da mãe. Dessas meninas que aparecem retratadas com um pequeno falo.
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