Franco Moretti: O Bildungsroman como forma simbólica

Na parceria do Estado da Arte com a editora todavia, trazemos ‘O Bildungsroman como forma simbólica’, de Franco Moretti.

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Inaugurando a parceria entre o Estado da Arte e a editora todavia, publicamos hoje O Bildungsroman como forma simbólica — ensaio de abertura de O Romance de Formação, de autoria de Franco Moretti.

Nossos profundos agradecimentos à todavia, que personificamos aqui em Leandro Sarmatz e Nathalia Pazini.

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(Reprodução: todavia)

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Bildungsroman como forma simbólica

Aquiles, Heitor, Ulisses: o herói da epopeia clássica é um homem-feito, um adulto. Eneias, que traz consigo são e salvo um pai já muito velho e um filho ainda muito jovem, resume bem a representatividade de quem está “no meio” da vida. Depois, com o primeiro herói enigmático da idade moderna, o paradigma se rompe. Segundo o texto, Hamlet tem trinta anos: para a cultura renascentista faz tempo que ele deixou de ser jovem. Mas não é assim para a nossa cultura, que, ao eleger Hamlet como seu contemporâneo, “esqueceu” a sua idade, ou melhor, falsificou-a e, simplesmente, rejuvenesceu o príncipe da Dinamarca.

O arranque decisivo nessa direção é, como se sabe, a obra de Goethe: e é sintomático que tome corpo exatamente naquele romance que codifica o novo paradigma e fixa na juventude a parte mais significativa da existência. Nasceu o Bildungsroman: a forma que domina — ou, mais precisamente, torna possível — o século de ouro da narrativa ocidental. E nasceu naturalmente um novo herói — Wilhelm Meister. E depois dele, Elizabeth Bennet e Julien Sorel, Rastignac, Frédéric Moreau e Bel-Ami, Waverley e David Copperfield, Renzo Tramaglino, Eugênio Onêguin, Bazárov, Doroteia Brooke…

Juventude, então. Juventude, podemos acrescentar, como determinação substancial, fundamental desses heróis. Também Orestes, de Ésquilo, era jovem: mas tal característica continha um quê de acidental e secundário — ser filho de Agamêmnom, por exemplo, era imensamente mais significativo do que ser um jovem. Mas no final do século xvii as prioridades se invertem, e aquilo que torna Wilhelm Meister e os seus sucessores representativos e interessantes é, em boa medida, o mero fato de serem jovens. A juventude — as diversas juventudes do romance europeu — torna-se, assim, para a cultura moderna, a idade que concentra em si o “sentido da vida”: é a primeira coisa que Mefistófeles oferecerá a Fausto. Este estudo se propõe a esclarecer as causas, os modos e as consequências de tais mudanças simbólicas.

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O Dr. Fausto de Jean-Paul Laurens

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Nas “comunidades estáticas” — nas sociedades de status, ou “tradicionais” — “o ser jovem” se dá somente na “diferenciação puramente biológica”, sustenta Karl Mannheim. O jovem, aqui, é um ainda-não-adulto, nada mais. A sua juventude reproduz passo a passo aquela dos seus antepassados e o introduz em um papel que existia antes, e permanecerá depois dele: ela não prevê, ainda segundo Mannheim, uma “enteléquia” própria. Não existe uma cultura que a diferencie e a valorize enquanto tal. Ela é, podemos dizer, uma juventude invisível e insignificante.

Em seguida, a sociedade de status começa a ruir — o campo esvazia-se e as cidades crescem, o mundo do trabalho muda de aspecto com extraordinária e incessante rapidez. A socialização incolor e quase inesperada que inaugurava a “velha” juventude torna-se cada vez mais improvável: transforma-se em um problema, e torna problemática a própria juventude. Já com Wilhelm Meister a “aprendizagem” não é mais um lento e previsível caminho em direção ao trabalho do pai, mas sim uma incerta exploração do espaço social: e será em seguida viagem e aventura, boemia, vagabundagem, desalento e parvenir. Exploração necessária: porque os novos desequilíbrios e as novas leis do mundo capitalista tornam aleatória a continuidade entre as gerações e impõem uma mobilidade antes desconhecida. Exploração desejada: porque aquele mesmo processo gera esperanças inesperadas e alimenta, assim, uma interioridade não somente mais ampla do que já fora no passado, mas sobretudo — como bem viu Hegel, que aliás condenou tal desenvolvimento — perenemente insatisfeita e irrequieta.

Mobilidade e interioridade. Claro, a juventude moderna não se resume a isso. A crescente influência da escola, a consolidação dos laços internos das gerações, uma relação inteiramente nova com a natureza, a “espiritualização” da juventude: eis algumas características igualmente importantes da sua história “real”. E, no entanto, o romance de formação descarta-as como irrelevantes, e da juventude “real” extrai aquela juventude “simbólica” que se resume, como foi dito, na mobilidade e na interioridade. Por que essa escolha?

Porque, acredito, entre 1700 e 1800 está em jogo algo bem maior do que o rearranjo da juventude. Quase desavisadamente, no sonho e no sangue da “dupla revolução”, a Europa precipita-se na modernidade, mas sem possuir uma cultura da modernidade. Se a juventude adquire então sua centralidade simbólica e nasce a grande forma do romance de formação, a razão é que se deve dar — antes e mais do que um sentido à juventude — um sentido à modernidade.

Romance de formação como “forma simbólica” da modernidade: na definição de Cassirer retomada por Panofsky, por meio dessa forma “um conteúdo espiritual de significado [aqui, uma certa imagem da modernidade] é vinculado a um signo sensível concreto [aqui, a juventude] e lhe é atribuído interiormente”. “Uma certa imagem da modernidade”: justamente aquela definida pelos atributos “juvenis” de mobilidade e irrequietude interior. A modernidade como processo fascinante e perigoso, feito de grandes esperanças e de ilusões perdidas. A modernidade como, são palavras de Marx, revolução permanente: cuja experiência depositada na tradição aparece como um fardo do qual se desvencilhar, e por isso ela não pode mais reconhecer-se na maturidade e ainda menos na velhice.

Nesse primeiro sentido a juventude é então escolhida como “concreto signo sensível” da nova época — é escolhida no lugar de outros milhares de signos possíveis — porque permite acentuar seu dinamismo e instabilidade. A juventude é, digamos, a modernidade em estado puro, sinal de um mundo que busca o seu sentido no futuro em vez de buscá-lo no passado. E, é claro, era impossível colocar-se espiritualmente no ritmo do tempo sem aceitar o ímpeto revolucionário: uma forma simbólica incapaz disso teria sido completamente inútil. Mas, se por outro lado soubesse fazer apenas isso, teria arriscado autodestruir-se enquanto forma: segundo uma larga tradição crítica, é exatamente o que acontece no Fausto, outra grande tentativa goethiana de representar a modernidade. Se insatisfação interior e mobilidade tornam, portanto, a juventude dos romances “símbolo” da modernidade, estas impõem-lhe ao mesmo tempo a “formlessness”, a multifacetada indefinição da nova época. Para que a juventude se torne uma “forma”, deve emergir dela uma característica diferente e, aliás, oposta àquelas há pouco descritas: a ideia, muito simples e até um pouco filisteia, de que a juventude não “dura eternamente”. É breve ou, de todo modo, tem um término, e permite assim, ou melhor, obriga a fixar a priori um vínculo formal à representação da modernidade. Somente ao domar sua natureza ilimitada e fugidia; somente ao aceitar trair, em certa medida, sua essência — somente assim seria possível dizer que a modernidade poderia vir a ser representada. Somente assim, podemos acrescentar, a modernidade pode ser “humanizada”. Vertida em forma, esta age como um órgão do nosso sistema emotivo e intelectual em vez de se contrapor a ele como aquela força externa que o bombardeia com aquele “excesso de estímulos” que — de Simmel a Freud e deste a Benjamin — sempre foi considerado como a máxima ameaça do novo mundo.

E, no entanto… Dinamismo e limite, irrequietude e “sentimento do fim”: construída desse modo, sobre drásticas antíteses, a estrutura do romance de formação só pode ser intimamente contraditória. O que impõe problemas de grande interesse para a estética — o romance como a forma mais “exposta a perigos” do jovem Lukács — e de interesse ainda maior para a história da cultura. Mas disso falaremos mais adiante: agora procuremos reconstruir a lógica interna dessa contradição formal.

Goethe, por Joseph Karl Stieler

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“A juventude não dura para sempre.” O que a constitui como forma simbólica não é mais uma determinação espacial, como o era para a perspectiva renascentista, mas sim um vínculo temporal: como aliás é natural que seja, pois o século xix, sob a pressão da modernidade, deve reformular antes de tudo a própria concepção de mudança — que muito frequentemente, desde os dias da Revolução Francesa, o atinge como uma realidade incompreensível e sem sentido, e por isso ameaçadora (“Je n’y comprends rien”, escreve Joseph de Maistre em 1796, “c’est le grand mot du jour”). Daí vem a centralidade da história na cultura e, com Darwin, na ciência do século xix. E a centralidade, dentro do universo literário, da narrativa. Narrativa e história, de fato, não recuam diante da tumultuosa sucessão dos eventos, mas demonstram a possibilidade de lhes conferir uma ordem e um sentido. E vice-versa. O que talvez é mais importante: sugerem que o sentido da realidade se manifesta a partir de então somente na dimensão histórico-diacrônica. Assim como não há eventos sem sentido, também não é mais possível dar sentido às coisas senão por meio dos eventos.

Apesar de existirem inúmeras diferenças (a começar por aquelas de estilo) entre os vários tipos de romance de formação, a articulação que proporei neste estudo baseia-se fundamentalmente nas diferenças de enredo: as mais pertinentes, acredito, para entender a essência — retórica e ideológica — de uma cultura histórico-narrativa. Diferenças de enredo, ou para ser mais preciso, diferenças no modo como o enredo chega até a instituição do sentido. Seguindo, em boa medida, a conceituação de Lotman, podemos exprimir essa diferença como variação do valor de dois princípios organizadores do texto: o princípio de “classificação” e o princípio de “transformação”. Sempre presentes em uma obra narrativa, esses dois princípios têm, normalmente, um peso desigual e são inversamente proporcionais um em relação ao outro: como veremos, a prevalência de uma estratégia retórica sobre a outra implica, em particular nas suas formas extremas, opções de valor profundamente diferentes e comportamentos até opostos em relação à modernidade.

Quando prevalece o primeiro — como no “romance familiar” da tradição inglesa e na forma clássica do Bildungsroman —, as transformações narrativas encontram o seu sentido em um desfecho marcado: aquele em que é possível instituir uma classificação diferente da inicial, mas absolutamente clara e estável; definitiva. Essa retórica teleológica — o que dá sentido aos eventos é sempre e somente o seu objetivo — é o equivalente narrativo do pensamento hegeliano, ao qual se liga, aliás, uma considerável vocação normativa: os eventos adquirem sentido ao conduzir a narrativa a um único objetivo.

Em suma, sob o domínio da classificação, uma narrativa possui tanto mais sentido quanto mais radicalmente ela conseguir suprimir-se enquanto narrativa. Sob o signo da transformação — como na esteira de Stendhal-Púchkin, e naquela que começa em Balzac e vai até Flaubert —, prevalece o contrário; aquilo que confere sentido à narrativa é a sua “narratividade”, o seu estado de processo open-ended. O sentido não decorre da realização de uma teleologia, mas sim, como em Darwin, do mais absoluto repúdio a tal solução. O final, que era o segmento narrativo predileto da mentalidade classificatória, transforma-se aqui no momento mais pobre de sentido: o final inacabado de Onêguin, aquelas insolentes arbitrariedades de Stendhal, as protelações infinitas da Comédia humana. Aqui estão alguns dos muitos exemplos de uma lógica narrativa segundo a qual o sentido de uma história consiste exatamente na impossibilidade de poder “estabelecê-lo”.

As antíteses entre os dois modelos, naturalmente, são infinitas. O primeiro, por exemplo, é o romance do casamento: ato classificatório e definitivo por excelência, sublimado em um princípio abstrato, ao final do nosso percurso, por Daniel Deronda de George Eliot, que não se casa mais com uma mulher, mas sim com uma cultura classificatória e normativa. O outro modelo é o romance do adultério: relação inconcebível pela tradição anglo-americana (na qual ele é completamente ausente e pode aparecer somente como a força devastadora e funesta d’As afinidades eletivas ou de O morro dos ventos uivantes), e que se torna aqui, ao contrário, habitat natural de uma existência dedicada à instabilidade: até chegar ao ponto de se dissolver com o Frédéric Moreau flaubertiano, que, em perfeito paralelismo com Daniel Deronda, não comete mais adultério com uma mulher, mas sim com o simples princípio da indeterminação.

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Stendhal, por Olof Johan Södermark,

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Um contraste igualmente drástico emerge da tradução das retóricas narrativas opostas, nos termos da história das ideias. Sob essa luz, descobre-se que o enredo do Bildungsroman clássico propõe como valor supremo a “felicidade”, mas ao fazer isso avilta e anula o valor da “liberdade”, enquanto Stendhal, do seu lado, desenvolve com igual radicalismo a escolha inversa. Da mesma maneira, o fervor balzaquiano da mobilidade e das metamorfoses termina com a supressão do próprio sentido da identidade individual, enquanto para os ingleses a centralidade desse valor gera, com igual fatalidade, uma verdadeira repugnância pela mudança.

E ainda: é claro que os dois modelos representam avaliações opostas, estados de espírito opostos quanto à modernidade — aprisionada e exorcizada pelo princípio de classificação de um lado, exasperada e hipnotizante no modelo oposto. E é claro que o pleno desenvolvimento dessa antítese implica, sobretudo, também uma duplicação da imagem de juventude. Se prevalece o princípio de classificação — se a ênfase recai, como em Goethe e nos romances ingleses, sobre o fato de que a juventude “deve acabar” —, então a juventude fica subordinada à ideia de “maturidade”; como a narrativa, ela “tem sentido” somente quando conduz a uma identidade estável e “acabada”. Se, ao contrário, prevalece o princípio de transformação e a ênfase recai sobre o dinamismo juvenil, como nos romances franceses, a juventude não sabe e não quer mais traduzir-se em maturidade: vê em tal possibilidade de “conclusão” antes uma espécie de traição que a privaria de sentido.

Maturidade e juventude são, então, também inversamente proporcionais: a cultura que coloca a ênfase sobre a primeira desvaloriza a segunda e vice-versa. Levada ao extremo a realização de tal cisão, temos de um lado Felix Holt e Daniel Deronda, de George Eliot, e de outro A educação sentimental, de Flaubert. Nos primeiros, o herói é desde o princípio tão maduro que se desvia com enfastiada desconfiança de tudo aquilo que lembra a irrequietude juvenil: o sentido do final sufocou qualquer atratividade da juventude. Em Flaubert, ao contrário, Frédéric Moreau fica tão hipnotizado pelas potencialidades contidas na sua juventude que chega a abominar qualquer determinação, tida como um intolerável empobrecimento de sentido: a sua profética juventude narcisista, que se queria interminável, desembocará diretamente, e de improviso, em uma velhice imbecilizada.

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George Eliot, por Alexandre Louis François d’Albert Durade

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Com perfeita simetria, o excessivo desenvolvimento de um princípio suprime, portanto, o princípio contrário, mas nesse processo desaparece o próprio romance de formação — que de fato produz, com George Eliot e Flaubert, suas últimas obras-primas. Por mais paradoxal que possa parecer, essa forma simbólica pôde, com efeito, existir não “apesar”, mas em virtude do seu caráter contraditório. Pôde existir porque no seu interior — no interior de cada obra e do gênero como um todo — agiam ambos os princípios, por mais desequilibrada e desigual que fosse a sua força. E, aliás, não “pôde” existir — teve de existir. Uma vez que a contradição entre avaliações opostas da modernidade e da juventude, ou entre opostos valores e relações simbólicas, não é um defeito — ou talvez o seja — mas, sim, e sobretudo, o paradoxal princípio de funcionamento de boa parte da cultura moderna. Basta pensar nos valores mencionados anteriormente: liberdade e felicidade, identidade e mudança, segurança e metamorfose — embora contrastantes entre si, estes são igualmente importantes para a mentalidade moderna ocidental. Esta exige a coexistência desses valores, por mais árdua que seja, e exige, portanto, um mecanismo cultural que a torne manifesta e teste a sua possibilidade.

Uma tentativa consciente e explícita de dominar a contradição e fazê-la “funcionar” pode, mais uma vez, ser encontrada no Fausto, no qual, entre tantas almas da cultura moderna — entre a aspiração à felicidade (instante “Tu és tão lindo! Espera!”) e a liberdade do streben “que sempre nos leva mais adiante”; entre a insuprimível identidade do protagonista e as suas mil transformações históricas —, é aventada a hipótese da possibilidade de uma verdadeira síntese. Mas é uma síntese que, por um século e meio, nunca conseguiu dissipar a desconfiança — a desconfiança de que a tragédia de Margarida e de Filémon e Baucis não pode ser apagada, de que a aposta foi perdida, de que a salvação de Fausto foi uma farsa: de que a síntese, em outras palavras, não é mais um ideal viável. E assim, ao lado de Fausto, gigantesca e inconsciente obra coletiva, organiza-se cada vez mais com o romance de formação uma outra resposta ao caráter contraditório da cultura moderna. Uma resposta que não possui mais a forma da síntese, mas, de modo menos ambicioso, aquela do compromisso: que é, certamente não por acaso, também o mais célebre tema romanesco.

Cria-se, assim, um extraordinário impasse simbólico em que Goethe não anula Stendhal, nem Balzac Dickens, ou Flaubert George Eliot. Cada cultura, cada indivíduo terá suas preferências, mas isso é evidente: o essencial é que essas preferências não serão mais sentidas como exclusivas. Nesse mundo purgatorial não vige — para recorrer ao ensaio de Lukács sobre Kierkegaard — a trágica lógica de “ou isto ou aquilo”, mas sim o compromisso do “tanto isto quanto aquilo”. E muito provavelmente foi exatamente tal predisposição ao compromisso que permitiu ao romance de formação sair vencedor da “luta pela existência” iniciada, entre os séculos xviii e xix, pelas inúmeras formas narrativas — romance histórico e romance epistolar, romance lírico, alegórico, satírico, “romântico”, Künstlerroman… Exatamente como em Darwin, o destino dessas formas foi determinado pela respectiva “pureza”: quer dizer, quanto mais fossem fiéis a um rígido modelo narrativo originário, mais difícil seria sua sobrevivência. E vice-versa, naturalmente: quanto mais uma forma foi capaz de flexibilidade e compromisso, melhor pôde governar-se no turbilhão sem síntese da história moderna. E a forma mais bastarda de todas elas torna-se o gênero dominante da narrativa ocidental. Porque os deuses da modernidade, diferentemente daqueles do Rei Lear, apoiam mesmo os bastardos.

O que sugere, para encerrar neste ponto, uma transferência e um reexame. Uma transferência, a partir da cultura alta e formalizada, da teoria do romance ao mundo mais esquivo e contraditório (e nem por isso, como hoje se tende a acreditar, mais “livre”) da “mentalidade”, da cultura difundida e submersa. Fausto, o ideal da síntese, tem o seu filósofo: Hegel. Mas o século xix não produz nenhuma filosofia do compromisso, nenhum filósofo do romance. A Teoria de Lukács — que tenta, significativamente, preencher ambas as lacunas: filosofia do romance como forma de reconciliação — desemboca, inevitavelmente, em um genial fracasso. Dado que a realidade do compromisso se presta mal à formalização conceitual, seu lugar eleito torna-se a esfera dos comportamentos cotidianos e irreflexivos, das precauções empíricas e normalmente inconscientes. Esfera da “mentalidade”, justamente, e da prática diária que lhe é inextricável. É aqui então que, nos capítulos que se seguem, encontraremos as diferentes formas de compromisso cultural sobre as quais articula-se a fenomenologia do romance de formação europeu.

Por fim, um reexame: da noção corrente de “ideologia moderna”, ou “cultura burguesa”, como se queira chamar. A centralidade do romance de formação na nossa herança cultural sugere que as ideologias dominantes do nosso mundo não são de forma alguma — sem querer ofender as certezas difundidas: aliás, ainda mais difundidas nas balbúrdias desconstrutivistas — sistemas intolerantes, normativos, monológicos, rígidos, a serem aceitos ou rejeitados. Muito pelo contrário: são adaptáveis e precários, “fracos” e “sujos”. Se pensamos que o romance de formação — a forma simbólica que melhor do que qualquer outra representou e promoveu a socialização moderna — é também a forma simbólica mais contraditória do nosso tempo, supõe-se, no fim das contas, que o mesmo processo de socialização consiste, há tempos, não tanto na submissão a uma constrição, quanto na interiorização da contradição. E em aprender não a resolvê-la, mas a conviver com ela, transformando-a em instrumento de vida.

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Detalhe do retrato de G.W.F. Hegel por Jakob Schlesinger, 1831

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Retomemos por uma pergunta: por que existem interpretações freudianas da tragédia e do mito, do conto de fadas e da comédia — e nada de comparável no caso do romance? Pela mesma razão, acredito, pela qual não existe uma sólida análise freudiana da juventude; pois a psicanálise encontra a sua razão de ser na decomposição da psique em suas forças opostas, e a juventude e o romance impõem-se, ao contrário, a tarefa — inversa — de amalgamar ou, de todo modo, fazer coexistir os aspectos contraditórios da personalidade individual. Porque, em outras palavras, a vocação da psicanálise consiste em olhar sempre e onde quer que seja para além do Eu, enquanto o romance de formação ambiciona construí-lo e colocá-lo como centro indiscutível e intransponível da própria estrutura.

Tal centralidade do Eu se liga, naturalmente, ao tema da socialização — que consiste, em larga medida, no “bom funcionamento” do Eu graças àquele compromisso particularmente bem-sucedido, que é para Freud o “princípio de realidade” — e obriga, por conseguinte, ao questionamento sobre a posição do romance de formação em relação a uma ideia terrivelmente constrangedora para a nossa cultura — a ideia de “normalidade”. Também aqui o melhor é partir de um contraste. Como se sabe, boa parte do pensamento do século xx — digamos: de Freud a Foucault — definiu a normalidade partindo de seu contrário: do patológico, do marginal, do reprimido. Nessa ótica, a normalidade não aparece como uma realidade significativa em si, mas sim como uma entidade unmarked: resultado autodefensivo de um processo de “negação”, a normalidade é condenada a ter o próprio significado fora de si, naquilo que exclui, não naquilo que contém.

Se excluímos as manifestações mais elementares do romance de formação (ou seja, a tradição inglesa do herói “insípido”: um termo recorrente tanto em Richardson quanto em Scott, e que se aplica, por exemplo, a Tom Jones como a Waverley, Jane Eyre ou David Copperfield), parece-nos completamente evidente que o romance adotou uma estratégia oposta àquela que acabamos de descrever. Ou seja, ele nos habituou a olhar para a normalidade de dentro, e não no fundo das suas exceções; e dali construiu uma fenomenologia capaz de tornar a normalidade interessante e significativa enquanto normalidade. Embora encontremos sempre na raiz do romance de formação uma opção explicitamente anti-heroica e prosaica — o protagonista será Wilhelm Meister, não Fausto; Julien Sorel e Doroteia Brooke, não Napoleão e Santa Teresa, e assim por diante até chegar a Flaubert e depois Joyce —, esses personagens, ainda que normais a seu modo, podem ser tudo, menos unmarked ou insignificantes em si.

Uma normalidade internamente articulada, múltipla, interessante — uma normalidade como exclusão das características muito marcadas, como verdadeiro vazio semântico. No plano teórico, os dois conceitos são inconciliáveis: se um é verdadeiro, o outro é falso, e vice-versa. Mas no plano histórico, a antítese transforma-se em uma espécie de divisão do trabalho: em uma partilha do espaço e do tempo. A normalidade como “negação”, como demonstram as pesquisas de Foucault, é o produto de uma dupla ameaça — a crise de uma ordem sociocultural e a brusca reorganização do poder. O seu momento é aquele da ruptura e da gênese; o seu espaço, rodeado de instituições sociais particularmente fortes, a área pura e simplesmente negativa do “não confinado”; a sua aspiração: ser como todos os outros e passar, portanto, despercebida.

A sua expressão literária, podemos acrescentar, é a narrativa de massa do século xix: a literatura do estado de exceção, dos males extremos e das soluções extremas. Mas justamente a narrativa de massa (que por sinal, e não por acaso, recebeu amplo tratamento da crítica freudiana) — não o romance. Este só chega raramente a explorar os confins espaciotemporais do mundo dado; em geral mantém-se “no meio”: onde descobre, ou talvez invente, o sentido e o gosto tipicamente modernos da “vida cotidiana” e da “normalidade”. Vida cotidiana: espaço antropocêntrico no qual diferentes atividades sociais perdem a sua objetividade imperativa e convergem para o domínio da “personalidade”. Normalidade: tempo da “experiência vivida” e do crescimento individual; tempo repleto de “ocasiões”, mas que exclui, por princípio, a crise como também a gênese de uma cultura.

Sigmund Freud

Basta pensar no quadro histórico do romance de formação: nasce com Goethe e Jane Austen, que não fazem menção e, como veremos, exorcizam a dupla revolução do final do século; prossegue com os heróis stendhalianos, que nasceram “tarde demais” para viver o 25º aniversário revolucionário; acaba com o 1848 de A educação sentimental (a revolução que não foi uma revolução) e com os anos 1830 de Felix Holt e Middlemarch (as reformas que não mantiveram suas promessas). Trata-se de uma evasão dos momentos de ruptura: de um medo da tragédia, assim como da ideia de que o significado das sociedades e dos indivíduos se manifesta somente nos momentos extremos — nos momentos “da verdade”.

Uma evasão, podemos concluir, de tudo aquilo que corre o risco de infringir o equilíbrio do Eu e de tornar os compromissos impossíveis; e uma concentração, em contrapartida, daquelas modalidades de existência que permitem ao Eu se manifestar plenamente. Nesse sentido — sobretudo se ainda estamos convictos de que os momentos e os lugares da verdade, apesar de tudo, continuam a existir —, o romance só pode nos parecer como uma forma fraca. Assim é, de fato, e essa sua fraqueza — que é também, evidentemente, a nossa — alinha-se com as outras características que já observamos; sua natureza contraditória, bastarda, de compromisso. Mas o ponto é que tais características são também intrínsecas àquela modalidade de existência (cotidiana, normal, semiconsciente, definitivamente anti-heroica) que a cultura ocidental procurou incessantemente proteger e ampliar e carregou cada vez mais de um significado crescente, até fixar nela aquilo que, na falta de algo melhor, continuamos a chamar de “o sentido da vida”, e a que poucas coisas como a tradição romanesca contribuíram para dar forma. E, se isso é verdade, então a fraqueza do romance nos parecerá talvez tudo, menos inerme.

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Franco Moretti

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