por Eduardo Cesar Maia
“Exorto o leitor a procurar algo que lhe diga respeito e que possa servir de base à avaliação, à reflexão. Leia plenamente, não para acreditar, nem para concordar, tampouco para refutar, mas para buscar empatia com a natureza que escreve e lê”
(Harold Bloom, Como e por que ler?)
O frequente e, muitas vezes, áspero confronto do crítico literário norte-americano Harold Bloom (1930-2019), falecido na última segunda-feira (14), com os principais paradigmas da teoria da literatura do seu tempo transcendia as já tão comentadas questões político-ideológicas, e terminava por assumir uma dimensão também filosófica, pois se relacionava indissociavelmente com a contínua busca pela fundamentação de suas posições críticas e pelo questionamento radical das premissas teórico-axiológicas de seus adversários na academia norte-americana e francesa.
Segundo o crítico literário mexicano Christopher Domínguez Michael, “Bloom foi o guardião de uma magnífica porção do cânone ocidental, justo no momento em que este estava sob fogo cerrado, rodeado de cientistas sociais ansiosos por explicar o literário com tudo aquilo que o nega, pondo-o ao serviço do Ressentimento”. Para Domínguez Michael, autor de uma excelente biografia de um outro gigante da crítica, Octavio Paz, em nossa época, não há crítico mais venerado nem mais odiado do que Harold Bloom.
Aqui, para o Estado da Arte, pretendo fugir um pouco dessa linha de apresentação do crítico como polemista e tecer uma reflexão a partir da observação da trajetória intelectual de Bloom. Acredito que esse percurso poderia ser resumido – e muito arriscadamente simplificado – da seguinte maneira: um abandono progressivo do projeto acadêmico inicial de construção de uma teoria geral da escritura em direção a uma nova orientação crítica, voltada a um tipo de compreensão, de caráter empírico e pragmático, do fenômeno da leitura. Todo esse processo de transformação de sua perspectiva crítica parece impulsionado principalmente pelo seu personalismo crítico, pela ênfase no valor da subjetividade – e a literatura, no seu entender, é o instrumento por excelência dessa subjetividade. Essa apreciação marcadamente subjetivista da literatura, com o resgate e centralização do elemento estético, explica a forte oposição do crítico à maior parte das linhas de estudos literários contemporâneos, marcados, por um lado, pela obsessão teórica e metodológica e, por outro, pela ideologização e politização da crítica. Harold Bloom permaneceu sempre na contramão das teorias hegemônicas e da opinião daqueles que compõem o que ele batizou de “Escola do Ressentimento”, endossando renitentemente sua posição apolítica e não epistêmica em relação à abordagem teórica dos textos literários.
O aprendizado – e a contingência – da sabedoria
A degeneração diagnosticada pelo crítico norte-americano nos estudos literários se deveria a que as “questões de gosto e juízo agora parecem descansar completamente sobre a informação e não sobre o que poderia ser chamado de aprendizagem ou sabedoria”. Tal aprendizado só pode ser obtido em contato com os demais e, na falta dessa presença, no contato com os livros, que são uma espécie de repositório das experiências humanas. Em entrevista concedida a R. Suarez e publicada em agosto de 2000, Bloom deixa o seguinte depoimento: “Uma das razões principais para lermos é porque não poderíamos possivelmente conhecer gente suficiente e conhecê-los suficientemente bem. Dado que não podemos conhecer gente o bastante e nos custa tanto trabalho simplesmente conhecermos a nós mesmos, é Shakespeare, é Cervantes, é Dickens, é Jane Austen, é Virginia Woolf, é Tolstoi, é Dostoievsky quem nos ajudarão a nos encontrar, a aceitar-nos, ou dar-nos conta de que não somos aceitáveis para nós mesmo e que talvez devêssemos fazer algo a respeito”. A sabedoria, a partir de uma perspectiva como essa, relaciona-se com aquilo que cada um aprende e o que essa mesma pessoa realmente faz com isso na vida concreta: é algo pessoal e intransferível. Enquanto informação e conhecimento podem ser compartilhados, a sabedoria é restrita a uma subjetividade particular, nunca a uma coletividade. Daí se depreende que não existe uma sabedoria universal, mas sabedorias — visões sábias do mundo e de si mesmo.
Já a dimensão política da leitura passa a um segundo (ou terceiro) plano: o critério principal passa a ser o prazer próprio e a autoconstrução individual. No Harold Bloom dos últimos anos, a apreciação estética ganha ainda mais centralidade e autonomia; e a leitura é tomada e analisada como uma atividade de índole terapêutica, “o mais curativo dos prazeres”. Em seu O cânone ocidental, explicou melhor sua posição: “Sinto-me bastante só nestes dias ao defender a autonomia do estético, mas sua melhor defesa é a experiência de ler o Rei Lear e depois ver uma boa encenação da obra. O Rei Lear não deriva de uma crise na filosofia, nem seu poder pode ser reduzido a uma mistificação promovida de alguma maneira por instituições burguesas. É uma marca da degeneração do estudo literário que se considere alguém excêntrico por defender que a literatura não depende do filosófico, e que o estético é irredutível a uma ideologia ou metafísica. A crítica estética nos regressa à autonomia da literatura imaginativa e à soberania da alma solitária; o leitor não como uma pessoa em sociedade, mas como o “eu” profundo, nossa interioridade última”. A autonomia do estético, nos termos de Harold Bloom, não remete a uma simples volta ao ideal da arte pela arte: a dimensão estética se amplia e passa a abarcar também o âmbito da vida ética, pois a experiência artística não é algo que se possa compartimentar em categorias estanques.
Assim, o individualismo estético de Bloom é um convite à autorreflexão, ao ideal humanista de autoformação (Bildung), e uma forma de enfrentar a natureza contingente da existência humana com mais, digamos, sabedoria – para resgatar o termo caros aos humanistas, frequentemente utilizado por Bloom, e que vinha sendo ironizado e desprezado por diversas correntes da teoria literária.
A crítica como leitura sapiencial
Em Onde encontrar a sabedoria, obra que, significativamente, está dedicada a Richard Rorty, Harold Bloom enumera objetivamente três critérios a partir dos quais ele atribui o valor literário de uma obra ou de um escritor: “esplendor estético, força intelectual e sapiência”; tais critérios, obviamente, são extremamente relativos e mais intuitivos do que propriamente lógicos; assim, nenhuma metodologia rígida, crítica ou teórica, poderia contribuir com esse tipo de abordagem. Falamos, portanto, de uma forma pós-moderna de personalismo crítico, nos moldes da tradição romântico-humanista, que valoriza a individualidade e o enriquecimento da vida interior através das leituras das grandes obras.
No mesmo livro, o crítico explica um ponto fundamental para o esclarecimento de sua concepção de leitura sapiencial: “Shakespeare, na minha avaliação, inventou o eu interior, mas só o fez porque Agostinho tornara o processo viável, criando a memória autobiográfica, em que a vida da própria pessoa se torna o texto. Pensamos porque aprendemos a memorizar nossas melhores leituras […]. Mas somos sempre a prole de Agostinho, que primeiro nos disse que somente o livro é capaz de alimentar o pensamento e a memória, bem como a sua complexa interação. A leitura, por si só, não nos salvará, nem nos tornará sábios; porém, sem a leitura, cairemos na ignorância agonizante”. Tal concepção de sabedoria, portanto, ultrapassa em importância a noção de conhecimento objetivo; não se relaciona, pois, ao tipo de conhecimento pretendido pelo pensamento filosófico da tradição racionalista moderna, senão que está muito mais próxima do ideal hermenêutico de compreensão (Verständnis), como em Dilthey ou Gadamer. Não se trata de entender completamente o mundo dos fatos e explicá-los através de demonstrações inequívocas de relações lógicas e causais: “Verdades sagradas costumam transparecer ou como crítica literária de má qualidade, ou como coerção, seja explícita ou implícita”; nem tampouco se relaciona com uma mera valorização da erudição. A sabedoria em Bloom surge, antes de tudo, parece-me, do reconhecimento de que a realidade, em si, carece de sentido, finalidade e significação, e necessita, portanto, da perspectiva humana como doadora de significados, de valores. O sentido é a matéria inteligível ou, em outras palavras, a matéria humanizada.
A busca dessa sabedoria assume o caráter de um empreendimento necessariamente pessoal, intransferível, na forma de uma autoformação (Bildung) a partir do contato habitual com textos sábios. O crítico sábio – cujo paradigma para Bloom é o humanista Samuel Johnson –, por sua vez, não é aquele que assume o ideal de objetividade e de rigor metodológico, mas o que apresenta, na relação com os textos literários, sugestões argutas e engenhosas de diálogo entre as obras e a existência concreta. É aquele, ainda, capaz de organizar uma visão própria, levando em conta a contingência das circunstâncias individuais e históricas em conexão com os valores estéticos e éticos também contingentes. A agudeza do crítico – para utilizar outro termo muito caro a um humanista como Baltasar Gracián –, portanto, revela-se na capacidade de realizar sínteses analógicas pertinentes, metáforas sugestivas, formulações criativas.
A idade avançada e as constantes querelas acadêmicas de Bloom parecem o ter tornado um pesquisador – e leitor – cada vez mais solitário, como podemos ver numa resposta que ele dá a um entrevistador, logo após a publicação do seu livro Como e por que ler?, a partir de uma pergunta sobre a função da leitura: “Lemos, penso eu, para sanar a solidão, embora, na prática, quanto melhor lermos, mais solitários ficamos. Não posso encarar a leitura como vício, mas tampouco é virtude”. Em suas obras mais recentes, o crítico transforma essa ideia de leitor solitário num arquétipo para explicar o que agora entende por função da leitura. Em outro momento, o crítico responde à mesma pergunta de forma mais simples e provocativa: cada pessoa deve ler somente se tiver prazer com tal ato – um prazer estético e egoísta: “No fim das contas, lemos para reforçar o eu, para acender a vela solitária do eu”.