por Alexandre Pinheiro Hasegawa
Talvez não exista expressão latina mais conhecida em todo o mundo do que esta: carpe diem (“colhe o dia”), aproveita o momento presente, tão fugaz como a flor que se colhe no campo, tão fugaz como nós mesmos. “Colhe / o dia, porque és ele”, escreve o poeta e médico Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa, que imita versos dos autores latinos. Tal exortação, porém, como vemos, parece ter vencido o tempo, que a tudo devora, tempus edax rerum, outra célebre formulação, cunhada por Ovídio (43 a.C.-17 d.C.) em suas Metamorfoses (tempus edax rerum, tuque, inuidiosa uetustas / omnia destruitis). Podemos dizer, contudo, à imitação de Virgílio (70-19 a.C.), em seus famosos versos bucólicos, que a poesia a tudo vence; à poesia, pois, também nós cedamos. Nela sobrevivem o guerreiro, o atleta, o político, a amada, o inimigo e o próprio poeta. É de Horácio (65-8 a.C.) a expressão latina inicial – quase anônima para nós –, parte coriâmbica do último verso da ode 1.11 (v.8: aetas; carpe diem, quam minimum credula postero), em que, dirigindo-se a Leucônoe, exorta a cândida moça a não investigar o dia de sua morte, o futuro, pela astrologia, pois, enquanto busca saber o que ocorrerá, escapa-lhe o invejoso tempo de vida. De Horácio, poeta (não apenas) do carpe diem, ocupar-nos-emos neste e nos próximos textos.
Os dados biográficos do poeta romano Quintus Horatius Flaccus têm como fonte principal os próprios escritos. Importantes filólogos que se dedicaram à obra do autor, como Eduard Fraenkel (Horace, Oxford, 1957,), Robin Nisbet (“Horace: life and chronology” in The Cambridge Companion to Horace, Cambridge, 2007) e Paolo Fedeli (Orazio, Torino, 2009), afirmam, quase com as mesmas palavras no início de seus textos – um caso de mimesis na crítica –, que nenhum poeta antigo falou mais de si mesmo do que Horácio. Chama a atenção, de fato, quando lemos sejam os hexâmetros das Sátiras (sat.) e das Epístolas (epist.), sejam os outros vários metros dos Epodos (epod.) e das Odes (carm.), a quantidade de informação sobre sua vida. O primeiro biógrafo, o historiador Suetônio (ca. 70-140 d.C.), na Vita Horati, trecho da seção reservada aos poetas no seu De uiris illustribus, pouco acrescenta aos dados espalhados pelos versos do autor. A biografia, portanto, conservada em muitos manuscritos como introdução à obra, parece ter derivado, em boa parte, dos textos do próprio Horácio.
É, portanto, necessário muito cuidado – um cuidado metodológico – na leitura dos dados biográficos de que dispomos: seja, primeiramente, porque o material provém dos versos horacianos, gerando assim um círculo vicioso, em que a biografia, alimentada pelo que Horácio narra nos versos, atesta o que o poeta diz em sua obra; seja, em segundo lugar, porque não temos como verificar, no mais das vezes, se o que o autor diz, imitando ou não outro poeta, ocorreu de fato, ou é uma reelaboração do ocorrido, ou ainda algo que absolutamente não ocorreu. Vale lembrar aqui, guardadas as devidas diferenças, do ortônimo Fernando Pessoa, um poeta muito mais próximo de nós, que na Autopsicografia (v. 1-8) sintetiza bem a dificuldade (impossibilidade?) que nós, leitores, temos de perceber a dor fingida, ainda que sentida pelo poeta, na leitura dos versos:
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
que chega a fingir que é dor
a dor que deveras sente.
E os que leem o que escreve,
na dor lida sentem bem,
não as duas que ele teve,
mas só a que eles não têm.
Sobre esse problema de autorrepresentação – problema, ressaltamos, metodológico para a leitura de um poeta latino –, recomendamos ao leitor o texto de Barbara Graziosi, “Horace, Suetonius, and the Lives of the Greek poets” (Perceptions of Horace. A Roman poet and his readers, Cambridge, 2009, p.140-160), que foi primeiramente apresentado em congresso sobre as percepções de e sobre Horácio, realizado em julho de 2007 na University College London, organizado por Luke B. T. Houghton e Maria Wyke. A proposição da filóloga italiana é de que o modo como Horácio se representou foi moldado por narrativas anteriores, muito difundidas, sobre poetas gregos. O trabalho de Graziosi, sem dúvida, depende do livro seminal de Mary Lefkowitz, The Lives of the Greek Poets (London, 1981), em que a norte-americana mostra como as biografias desses poetas baseiam-se, sobretudo, em duas fontes: as obras dos próprios poetas e anedotas que circulavam sobre os autores.
Para ilustrar a questão em Horácio, é já um locus communis da crítica citar Odes 3.4.9-20, em que o poeta narra episódio de sua infância, mostrando a proteção divina que o acompanhará por toda vida:
Me fabulosae Vulture in Apulo,
nutricis extra limina Pulliae, 10
ludo fatigatumque somno
fronde noua puerum palumbes
texere, mirum quod foret omnibus,
quicumque celsae nidum Acherontiae
saltusque Bantinos et aruum 15
pingue tenent humilis Forenti,
ut tuto ab atris corpore uiperis
dormirem et ursis, ut premerer sacra
lauroque conlataque myrto,
non sine dis animosus infans. 20
A mim menino fabulosas pombas
no apúlio Vúlture, fora das raias 10
de minha nutriz Púlia, cobriram-me,
com frescas folhas, lasso de jogos
e de sono; admirável foi a todos
que ocupam da Aquerôncia excelsa o ninho,
e as pastagens de Bância, e os campos 15
copiosos da humilde Forento,
que, com corpo de negras cobras livre
e de ursos, eu dormisse; que eu coberto
fosse por sacro louro e ajuntado
mirto, criança audaz não sem deuses. 20
Os comentários para o terceiro livro das Odes de Roger Nisbet e Niall Rudd (A Commentary on Horace, Book III, Oxford, 2004) ou os da italiana Elisa Romano (Q. Orazio Flacco. Le Opere, I.2, Roma, 1991) recolhem várias fontes que narram, de modo semelhante, episódios fabulosos que ocorreram na infância de poetas e personagens importantes da Antiguidade: Plínio, o Velho (23-79 d.C.), na História Natural (10.82), conta-nos que um rouxinol cantou nos lábios do poeta grego Estesícoro (ca. 630 a.C.- 555 a.C.); Pausânias (ca. 115-180 d.C.), na Descrição da Grécia (9.23.2), relata que, quando Píndaro (ca. 518-446 a.C.), cansado e com sono, dormia, as abelhas construíram favos nos lábios do poeta grego (compare-se com o trecho acima); por fim, Cícero (106-43 a.C.), no Sobre a adivinhação (1.78), narra que, enquanto Platão (428-347 a.C.) dormia, as abelhas pousaram nos lábios do filósofo. Poderíamos mencionar ainda outras fontes presentes no passo horaciano, mas essas são suficientes para o argumento de que a autorrepresentação do poeta é moldada pela descrição da vida dos antigos autores gregos. É fundamental, portanto, para ler a obra de Horácio, saber quem e como ele leu.
Chama a atenção, porém, na passagem de Odes 3.4, misturada aos fabulosos fatos da infância do poeta, a descrição geográfica da terra natal de Horácio, nascido em Venúsia (a atual Venosa, sul da Itália), situada na fronteira, segundo o próprio autor (Sátiras 2.1.34-5), entre a Apúlia (a atual Puglia) e a Lucânia (a atual Basilicata): menciona-se o monte Vúlture, 15 km a oeste de Venúsia; a cidade de Aquerôncia (a atual Acerenza), 21 km ao sul de Venúsia, situada a 800 metros acima do nível do mar (“excelsa”); a cidade de Bância (a atual Banzi), 19 km a sudoeste de Venúsia, caracterizada pelos campos de pastio; Forento (a atual Forenza), situada ao pé do Monte Vúlture (“humilde”). O detalhe topográfico de localidades históricas e verificáveis contribui para a verossimilhança da ode que eterniza não só o poeta, mas a cidade natal, colocando no mapa da história a miraculosa Venúsia.
Para o estudo dessa e outras autorrepresentações, vale mencionar aqui outro importante filólogo de Oxford e editor do Companion já mencionado, Stephen Harrison, que, em “Horatian self-representations” (in The Cambridge Companion to Horace, Cambridge, 2007), explora esse e outros trechos da obra horaciana, sobretudo das Odes, mostrando várias estratégias que o poeta usa para falar de si mesmo, inclusive, como veremos em textos próximos, a autodepreciação e o humor, presentes em boa parte dos Epodos e Sátiras, primeiras publicações de Horácio. Sobre esse humor, é célebre outra formulação desse versátil escritor romano: “dizer a verdade rindo” (Sátiras 1.1.24: ridentem dicere uerum).
Dissemos, pouco antes, como importa saber que autores Horácio leu – e como os leu – para entender melhor sua obra. Quem formou o poeta, filho de um escravo liberto? Ao começar pelas Sátiras, que estão no início de sua carreira – o primeiro livro por volta de 35 a.C. e o segundo por volta de 30 a.C. –, destaca-se, entre os vários modelos, ainda que criticado por seus versos mal polidos, o poeta Lucílio (ca. 180-103/2 a.C.), considerado por Horácio, Pérsio (34-62 d.C.) e Juvenal (ca. 55-130 d.C.), o inventor do gênero satírico. Embora o modelo Lucílio tenha sido mencionado anteriormente (Sátiras 1.4 e 1.10), é na abertura do segundo livro que Horácio diz imitá-lo, ao dirigir-se ao jurista Trebácio, em um aspecto fundamental da nossa discussão (Sátiras 2.1.28-35):
[…] me pedibus delectat claudere uerba
Lucili ritu, nostrum melioris utroque.
ille uelut fidis arcana sodalibus olim 30
credebat libris neque, si male cesserat, usquam
decurrens alio neque, si bene; quo fit ut omnis
uotiua pateat ueluti descripta tabella
uita senis. sequor hunc, Lucanus an Apulus anceps;
nam Venusinus arat finem sub utrumque colonus, 35
[…] deleita-me encerrar palavras em pés
à maneira de Lucílio, melhor que nós dois.
Ele outrora confiava os arcanos aos livros, como a fiéis 30
companheiros, nunca recorrendo a outra coisa,
se lhe sucedera mal, se lhe sucedera bem, de tal modo que
toda a vida desse velho é patente [nos livros] como pintada
em quadro votivo. Imito-o, incerto se sou da Lucânia ou da
Apúlia; de fato, ara perto de ambos o colono de Venúsia. 35
Além de se deleitar, ao fazer versos (“encerrar palavras em pés métricos”) à maneira de Lucílio, Horácio o imita ao confiar segredos (“os arcanos”) aos livros, de tal modo que se veja, como em um quadro de ex-voto, toda a vida do poeta. Portanto, mesmo quando o escritor é autobiográfico, ele imita; a vida de Horácio – os aspectos mais pessoais relatados nas Sátiras – é, em parte, imitação da persona de Lucílio representada nos versos. Porém, infelizmente, da obra do inventor do gênero satírico, chegaram-nos apenas fragmentos: não há um único poema completo. Desse prolífico escritor restam 1.300 versos, ou partes de versos, dos 30 livros que compunham as Sátiras. Sabemos, contudo, que Lucílio narrou sua viagem à Sicília no livro 3, imitada por Horácio em Sátiras 1.5, em que conta a viagem a Brundísio (atual Brindisi, sul da Itália), como nos informam os comentários desde Pompônio Porfirião (séc. III d.C.), o mais antigo comentador da obra horaciana. Dos fragmentos que restaram do livro 3 (fr. 110-113 M.), pouco se pode dizer sobre o modo como Horácio imitou Lucílio, se é ou não luciliano o caso do problema digestivo (Sátiras 1.5.7-9), ou da conjuntivite que impede a participação na vida pública (vv. 30-1), ou ainda da polução noturna que mancha as vestes (vv. 82-5). É muito difícil dizer com base no pouco material de que dispomos.
Porém, Andrea Cucchiarelli, em La satira e il poeta. Orazio tra Epodi e Sermones (2001), traça a história cômica da doença nos olhos, presente em duas comédias de Aristófanes (ca. 447-385 a.C.): na Assembleia das mulheres (vv. 397-404), em que se encontra inadequação entre os olhos remelentos e a participação política, e nas Rãs (v. 192), em que o escravo Xântias diz não ter ido à guerra por conta de uma doença nos olhos. Ora, sabemos, pelo início de Sátiras 1.4.1-8, que Lucílio depende inteiramente – naquele exagero hiperbólico próprio da sátira – dos autores da Comédia Antiga, Êupolis, Cratino e Aristófanes; portanto, também Horácio os tem como modelo. Na referida sátira, em que, anteriormente, se mencionam barqueiros (v. 11;16) e rãs (v. 14), não parece casual a doença nos olhos, tal como a de Xântias nas Rãs de Aristófanes, ou seja, a conjuntivite pode ter sido (também) causada pelos comediógrafos, razão frequente para não participação na vida pública, resultando numa ‘fisiologia da recusatio’, expressão cunhada por Andrea Cucchiarelli no referido livro (p. 71).
Assim, sem participar propriamente das magnae res (“grandes assuntos”), mencionadas em Sátiras 1.5.28, do patrono e amigo Mecenas (68-8 a.C.), braço direito de Otávio Augusto (63 a.C.-14 d.C.) e responsável por reunir artistas que farão o louvor de Roma e do imperador, Horácio fala do amigo Virgílio (v. 40; 48); narra, à maneira de um agón cômico, a briga entre dois desconhecidos (vv. 51 e ss.); o encontro marcado com uma moça que não apareceu (vv. 82 e ss.), resultando na polução noturna, que, como comentam os críticos (cf. Emily Gowers, Horace. Satires, Book I, Cambridge, 2012), pode aludir ao passo de Lucrécio (ca. 99-55 a.C.), no Da natureza das coisas (4.1030-36), em que descreve como os sonhos noturnos provocam no jovem a polução, manchando a roupa.
Passemos à formação escolar do poeta, para identificar outros autores lidos, que certamente estão imitados e emulados nos vários livros. Sem o conhecimento desses modelos, como já vimos – por vezes, é necessário um conhecimento muito detalhado –, não chegamos a compreender parte considerável dos versos horacianos. Em Epístolas 2.1.69-75, o autor se lembra do mestre Orbílio Pupilo, que repetia (dictare) os versos de Lívio Andronico (284-204 a.C.), considerado fundador da epopeia em latim, com a tradução poética da Odisseia de Homero, em versos saturninos, obra de que temos apenas poucos fragmentos. Portanto, desde pequeno a epopeia homérica estava continuamente na memória do romano, assim como na dos gregos, pois o aedo educou a Grécia, segundo nos diz Sócrates, na República de Platão (606e: ??? ?????? ??????????? ????? ? ???????). Desse modo, não poderia faltar a Ilíada, também presente em sua formação, ainda em Roma (Epístolas, 2.2.41-2): “Em Roma, tive a felicidade de ser nutrido e aprendi quão grande dano o irado Aquiles causara aos gregos” (Romae nutriri mihi contigit atque doceri / iratus Grais quantum nocuisset Achilles).
Depois da formação em Venúsia, continuada em Roma, segue viagem a Atenas para completar os estudos. Presentes por todo o percurso, Ilíada e Odisseia não o abandonam na idade adulta, como o próprio diz, nas Epístolas (1.2.1-5), obra publicada por volta de 19 a.C., passados já seus 40 anos, bem depois da derrota na guerra civil, em Filipos (42 a.C.), ao lado de Bruto (85-42 a.C.), e do acolhimento no círculo de Mecenas:
Troiani belli scriptorem, Maxime Lolli,
dum tu declamas Romae, Praeneste relegi:
qui, quid sit pulchrum, quid turpe, quid utile, quid non,
planius ac melius Chrysippo et Crantore dicit.
cur ita crediderim, nisi quid te distinet, audi. 5
O escritor da guerra troiana, Máximo Lólio,
enquanto tu declamas em Roma, em Preneste reli:
o que é belo, o que é torpe, o que é útil e o que não é, esse
diz mais claramente e melhor que Crisipo e Crântore.
Escuta por que assim julgo, se algo não te impede. 5
Enquanto Lólio, a quem o autor se dirige, está na grande Roma e faz declamações, Horácio está na pequena Preneste (a atual Palestrina, no centro da Itália) e ali já releu Homero, autor presente desde a infância até a idade madura, momento em que, segundo ele, na epístola anterior de abertura do livro (Epístolas 1.1.10-1), abandona os versos e os demais divertimentos (uersus et cetera ludicra pono) e preocupa-se com o que é verdadeiro e honesto (quid uerum atque decens curo). É irônico, portanto, que, depois de declarar, em hexâmetros datílicos, que colocou de lado os versos e agora tem interesse em matéria filosófica, na epístola seguinte (Epístolas 1.2), prefere o poeta Homero a dois importantes filósofos: Crisipo (ca. 280-207 a.C.), estoico, escritor abundante e considerado, por alguns, mais importante do que Zenão de Cítio (ca. 336-264 a.C.), fundador do estoicismo, e Crântore (ca. 340-275 a.C.), representante da Academia e autor de um tratado sobre o luto. Homero, poeta sovrano, ensina matéria filosófica de modo mais claro e melhor do que os filósofos de profissão ou os rétores, importantes para o declamador Lólio. A epístola de exortação à virtude prossegue, com seus 71 versos, em que, primeiro (vv. 6-31), mostra, mencionando Ilíada e Odisseia, como Homero é excelente fonte para ensinamentos éticos; em seguida, Horácio expõe (vv. 32-71) preceitos para viver corretamente.
Vemos ainda, na passagem acima, não só a importância da epopeia homérica na formação de Horácio, mas também como ele leu os poemas. Percebemos aqui a mediação das leituras alegóricas das obras de Homero. Já antes de Platão, o autor da Ilíada e da Odisseia foi objeto de críticas, como a de Heráclito de Éfeso (ca. 535-475 a.C.), que disse (fr. 42 Diels-Kranz) ser o poeta digno de ser chicoteado juntamente com o iambógrafo Arquíloco (ca. 680-645 a.C.), ou como a de Xenófanes de Colofão (ca. 570-478 a.C.), chamado ?????????? (“pisoteador de Homero”), que censura (frr. 11-12 Diels-Kranz) Homero e Hesíodo por atribuírem aos deuses o que é reprovável, como o roubo e o adultério. Logo surgem, nesta polêmica, as leituras alegóricas, com autores que hoje são só nomes para nós, como Teágenes de Régio (séc. VI a.C.) ou Metródoro de Lâmpsaco (séc. V a.C.). Tais interpretações se difundiram no período helenístico e os estoicos desenvolveram-nas, servindo-se de passos homéricos para falar de ética, como faz Horácio na epístola. Aliás, o próprio Crisipo, mencionado (ironicamente?) por Horácio, é um nome importante na exegese alegórica, como mostra o livro de Ilaria Ramelli e Giulio Lucchetta, Allegoria (Vol.1 L’età clássica, Milano, 2004). Portanto, para ler Horácio, importa não só conhecer os autores que ele leu, mas também o modo como os leu.
Sobre os vários outros modelos que Horácio leu e imitou, gregos e latinos, e da formação ainda do pai, um escravo liberto, teremos oportunidade de tratar em nossos próximos textos. Antes, porém, de passar do ‘Horácio leitor’ para o ‘Horácio lido’, queremos desenvolver aqui o modo como o autor relaciona seus livros, construindo o desenvolvimento de uma vida, da infância à idade adulta. Como já dissemos, as Sátiras, publicadas em dois livros, estão no início da carreira, bem como os Epodos, obra iâmbica, lançada contemporaneamente ao segundo livro satírico, provavelmente em 30 a.C. Assim, o início da carreira do ‘jovem Horácio’ se caracteriza, sobretudo, por gêneros de censura e invectiva, a sátira e o iambo. Essa caracterização, a associação da juventude à invectiva iâmbica, aparecerá no início da próxima obra, a primeira recolha lírica, publicada provavelmente em 23 a.C., que agrupa os três primeiros livros das Odes. Vejamos parte do poema situado no primeiro livro, que recorda a produção iâmbica anterior, dois trechos de Odes 1.16 (vv. 1-4; 22-5), na bela tradução de Elpino Duriense, nome árcade do poeta português Antônio Ribeiro dos Santos (1745-1818), única não feita por nós nesse texto:
O matre pulchra filia pulchrior,
quem criminosis cumque uoles modum
pones iambis, siue flamma
siue mari libet Hadriano.
[…]
conpesce mentem. Me quoque pectoris
temptauit in dulci iuuenta
feruor et in celeres iambos
misit furentem […]. 25
Da bela mãe ó filha inda mais bela,
qualquer fim que te agrade, aos criminosos
jambos darás; ou mais co’fogo queiras,
ou co’mar Adriano.
[…]
A cólera modera: a mim interno
furor também na doce mocidade
me tentou, e raivoso
me arrojou aos ligeiros jambos. […] 25
No início da recolha lírica, Odes 1.16, Horácio parece justificar a escrita iâmbica (“os ligeiros jambos”) por ter sido tomado pelo furor na “doce juventude”. Agora, dirigindo-se a uma moça não nomeada, faz uma espécie de recusa do “criminoso” gênero, mas, ao mesmo tempo, amarra a produção antiga à mais nova, ora em curso, que serve de expediente editorial, outra característica fundamental na leitura desse hábil escritor, como ainda veremos nos futuros textos, que, no interior de sua obra, encena a própria escritura. Do mesmo modo, anteriormente, encena quase na exata metade do livro de Epodos (11.1-4), uma crise poética, desta vez, dirigindo-se a Pétio, personagem que nos é desconhecida:
Petti, nihil me sicut antea iuuat
scribere uersiculos amore percussum graui,
amore, qui me praeter omnis expetit
mollibus in pueris aut in puellis urere.
Nada me agrada, caro Pétio, como dantes,
versinhos escrever, por violento amor ferido;
amor que a mim me solicita, mais que a todos,
p’ra envolver-me em chamas por delicado moço e moça.
Ferido por violento amor, diz não lhe agradar mais fazer, como outrora, versinhos. A encenação horaciana é engenhosamente trabalhada. Ao iniciar o poema com o mesmo verso do início dos dez anteriores, o trímetro iâmbico, dá a entender ao leitor de que se trata de continuação. No entanto, ao inserir a metade de um pentâmetro, no início do segundo verso, scribere uersiculos (“versinhos escrever”), modifica o esquema métrico anterior, já que, ao primeiro verso em trímetro, se seguia um dímetro iâmbico, tal como é a segunda parte do verso, amore percussum graui (“por violento amor ferido”). A novidade métrica, scribere uersiculos, diz o que fazia; a matéria que modifica e traz novidade, amore percussum graui, vem em esquema métrico já conhecido. Ainda que seja dor sentida, é fingida em grande elaboração poética, com imitação ainda de poeta anterior, Catulo (ca. 87/84-57/4 a.C.), em seu poema 65, que se inicia por uma crise poética; ferido por outro páthos, também violento, o autor lamenta a morte do irmão. Tal imitação exploramos, com mais detalhe, em artigo acadêmico (“Crisi poetica e forma editoriale da Catullo a Orazio”, SIFC, Firenze, vol. CIII, 2010, pp. 5-10).
Se, para tomarmos mais um exemplo dessa encenação, voltarmos ao início do segundo livro das Sátiras (2.1.1-4), veremos como o autor agora amarra a segunda produção satírica à primeira, publicada, mais ou menos, com 5 anos de intervalo:
Sunt quibus in satura uidear nimis acer et ultra
legem tendere opus; sine neruis altera quidquid
conposui pars esse putat similisque meorum
mille die uersus deduci posse. […]
Há quem me julgue acerbo demais na sátira e estender
o gênero além de suas leis; outra parte julga ser sem nervos
tudo o que compus e que versos semelhantes aos meus
podem ser compostos mil em um dia. […]
Antes, então, de mencionar o modelo Lucílio, como citamos acima, recordando o aspecto autobiográfico, Horácio lembra, nas primeiras palavras da segunda recolha satírica, dirigindo-se ao jurista Trebácio, que sua sátira (satura) – primeira vez que usa o termo – já está em julgamento, o primeiro livro por uns foi criticado muito violento; por outros, fraco demais. A crítica que fizera a Lucílio de escrever muito, sem burilar os versos (Sátiras 1.4.9-10), agora se volta contra ele, “versos assim podem ser compostos mil em um único dia”. Entre vícios extremos, o satiro Orazio – dessa maneira lembrado por Dante no limbo entre os grandes poetas (Inf. 4.89) – deve buscar aquela mediania virtuosa ou áurea, outra célebre expressão do poeta (Odes 2.10.5: auream […] mediocritatem). Assim, falar de si é também tratar do próprio fazer poético.
Por isso, terminada a primeira recolha lírica (Odes 1-3), em cujo início encontramos uma espécie de “recusa” dos iambos, como já vimos, ao passar às Epístolas (1.1), o já ‘maduro Horácio’, dirigindo-se a Mecenas, cantado em sua primeira produção e também na última (v. 1;3: Prima dicte mihi, summa dicende Camena / […] / Maecenas), diz que “a idade não é a mesma, nem a mente” (v. 4: non eadem est aetas, non mens), e, portanto, abandona os versos e os demais divertimentos para se ocupar de matéria filosófica, sem se filiar a uma escola específica, sem “jurar nas palavras de algum mestre” (v. 14: nullius addictus iurare in uerba magistri). Parece, portanto, pôr fim à carreira lírica, parece que não abandonará mais o gênero filosófico.
No entanto, provavelmente em 13 a.C., torna o poeta lírico com Odes 4, em que Horácio precisa justificar, logo no início, esse retorno, depois de ter dito na recolha epistolográfica ter abandonado os versos e os demais divertimentos. No entanto, o começo não só dialoga com Epístolas 1.1, explicando a volta ao gênero lírico, mas também alude à primeira recolha, Odes 1-3, ao fazer autocitação, como veremos. Não escapa também ao leitor atento que se trata de imitação às avessas de Safo de Lesbos (ca. 630-580 a.C.), que, no famoso hino a Afrodite (fr.1 V.), invoca a deusa para lhe ser aliada nas lutas eróticas. Horácio, por sua vez, quer justamente o oposto, suplicando a Vênus que se afaste, pois não quer mais as guerras do amor (Odes 4.1.1-8):
Intermissa, Venus, diu
rursus bella moues? parce precor, precor.
Non sum qualis eram bonae
sub regno Cinarae. Desine, dulcium
mater saeua Cupidinum, 5
circa lustra decem flectere mollibus
iam durum imperiis: abi,
quo blandae iuuenum te reuocant preces.
Vênus, há muito interrompidas,
guerras de novo causas? Poupa-me, te imploro.
Não sou qual era sob o reino
da boa Cínara. Cessa tu de me dobrar,
cruenta mãe da Cupidez 5
doce; a mim, próximo dos dez lustros e agora
áspero à tua suave lei;
vai p’ra onde as brandas preces dos jovens te chamam.
O poeta, próximo dos 50 anos (“dez lustros”), diz não ser mais o mesmo (“não sou qual era sob o reino da boa Cínara”), assim como ressaltou, em Epístolas 1.1.4, que “a idade não é a mesma, nem a mente”; as guerras de amor foram interrompidas há muito tempo, e, portanto, deve poupá-lo Vênus, “cruenta mãe da Cupidez”, citando o próprio verso que abre Odes 1.19, em que a deusa ordena-lhe retornar ao amor, ou seja, voltar a escrever a lírica erótica. Mais uma vez vida e poesia se confundem e podemos acompanhar o percurso poético, como fizemos até aqui, seguindo o desenrolar de sua vida construída em versos. Deixamos de lado, propositadamente, o Carmen saeculare, composto em 17 a.C., por encomenda de Augusto, e a Arte Poética, que, de controversa datação, é uma epístola, dirigida aos Pisões. Nos próximos textos dedicaremos atenção a essas obras e a outros aspectos da vida poeticamente construída de Horácio, como a fuga da batalha de Filipos (Odes 2.7), quando Ilíada e Odisseia parecem não lhe ter servido na guerra.
Antes, porém, de concluir esse texto, que já vai longo, gostaríamos de passar do ‘Horácio leitor’ ao ‘Horácio lido’. Assim como Homero era leitura obrigatória na formação romana, Horácio logo passará a ocupar essa posição, ao lado de Virgílio. Dois comentários supérstites, o de Pompônio Porfirião (provavelmente séc. III d.C.) e o de Pseudo-Acrão (provavelmente séc. III-IV d.C.), são evidências disso. O primeiro cita ainda outros dois comentários de gramáticos anteriores, não supérstites: o de Quinto Terêncio Escauro (séc. II d.C.) e o de Helênio Acrão (séc. II d.C.), com o qual foi confundido o do chamado Pseudo-Acrão. Esses escoliastas fornecem material muito útil para quem estuda Horácio e evidenciam que o poeta integrou o currículo nas escolas, precisando assim ser explicado, seja a construção gramatical, seja a referência mitológica, entre outros aspectos. Tal como nos chegou, o mais antigo comentário, o de Porfirião, não está em ordem cronológica; temos a seguinte sequência: Odes 1-4, Arte Poética, Epodos, Sátiras 1-2 e Epístolas 1-2. É comum em manuscritos medievais de Horácio, com poucas alterações, esse percurso, o que, para muitos, pode ser arbitrário, mas indica como o autor foi lido e pode ser também, em parte, a razão da fortuna maior que tiveram as duas obras iniciais, Odes e Arte Poética.
Karsten Friis-Jensen, no capítulo “The reception of Horace in the Middle Ages, no The Cambridge Companion to Horace (Cambridge, 2007) menciona texto de um escriba do séc. XII d.C., que comenta a referida sequência dos manuscritos: “Horácio compôs quatro diferentes tipos de poemas, em razão das quatro idades, a saber: Odes para os meninos, a Poética para os jovens, as Sátiras para os homens e as Epístolas para os velhos e perfeitos”. É notável, antes de mais nada, a exclusão dos Epodos, em razão da moral cristã que discutiremos em texto próximo. Seja como for, o estabelecimento de uma ordem impõe significado ao texto, permitindo-nos ver como cada época representa o autor. Do mesmo modo, Horácio não leu o Homero do séc. VIII a.C. ou o Alceu do séc. VII/VI a.C., que não pensaram seus poemas editados em livros; as edições lidas pelo poeta romano são fruto do trabalho filológico dos bibliotecários de Alexandria, como Aristarco da Samotrácia (ca. 220-143 a.C.) e Aristófanes de Bizâncio (ca. 257-180 a.C.).
O poeta, porém, não foi apenas lido nas escolas. Horácio logo também se tornou modelo, imitado por poetas contemporâneos e das gerações seguintes. É célebre – e convém ao fechamento de um texto – a bela emulação que Ovídio faz, ao concluir as Metamorfoses (15.871-879), vaticinando sua imortalidade:
Iamque opus exegi, quod nec Iouis ira nec ignis
nec poterit ferrum nec edax abolere uetustas.
cum uolet, illa dies, quae nil nisi corporis huius
ius habet, incerti spatium mihi finiat aeui:
parte tamen meliore mei super alta perennis 875
astra ferar, nomenque erit indelebile nostrum,
quaque patet domitis Romana potentia terris,
ore legar populi, perque omnia saecula fama,
siquid habent ueri uatum praesagia, uiuam.
Agora a obra perfiz que nem a ira de Jove, nem o fogo
nem o ferro, nem a velhice voraz poderão destruir.
Quando quiser, aquele dia, que não tem direito senão
sobre esse corpo, porá fim ao tempo de minha vida incerta.
Na minha melhor parte, porém, perene serei levado 875
para além dos altos astros e meu nome será indelével.
E por onde se estender o poder romano, em terras dominadas,
serei lido pela boca do povo, e por todos os séculos, graças à fama –
se os presságios dos vates têm algo de verdadeiro –, viverei.
É evidente a imitação, não servil, daquela orgulhosa declaração de Horácio na despedida da primeira recolha lírica, Odes 3.30, em que o poeta molda, mais uma vez, o topos da perenidade da poesia, de longa tradição, presente já em Safo (fr. 55), mas também em Ênio (239-169 a.C.), em seu epitáfio, “voo vivo pela boca dos homens” (var. 18 Vahlens: uolito uiuos per ora uirum). Nessa ??????? (“selo”), o poeta profetiza sua imortalidade, celebrando ainda sua terra natal, ao mencionar o rio Áufido (o atual Ofanto), o principal da Apúlia. Leiamos o poema:
Exegi monumentum aere perennius
regalique situ pyramidum altius,
quod non imber edax, non Aquilo inpotens
possit diruere, aut innumerabilis
annorum series et fuga temporum. 5
non omnis moriar multaque pars mei
uitabit Libitinam: usque ego postera
crescam laude recens, dum Capitolium
scandet cum tacita uirgine pontifex.
dicar, qua uiolens obstrepit Aufidus, 10
et qua pauper aquae Daunus agrestium
regnauit populorum, ex humili potens,
princeps Aeolium carmen ad Italos
deduxisse modos. Sume superbiam
quaesitam meritis, et mihi Delphica 15
lauro cinge uolens, Melpomene, comam.
Perfiz monumento do que o bronze mais perene,
e do que a régia estrutura das pirâmides mais elevado,
que nem a chuva voraz, nem o furioso Aquilão,
ou a inumerável série dos anos
e a fuga dos tempos possam arruinar. 5
Não morrerei totalmente, e grande parte de mim
evitará a Libitina. Eu, com vindouro louvor,
sempre crescerei novo, enquanto ao Capitólio
o pontífice subir, com a tácita virgem.
Dir-se-á, onde faz estrépito o violento Áufido, 10
e onde Dauno, pobre de água, reinou sobre
rústicos povos, que eu, de humilde tornado poderoso,
fui o primeiro a conduzir o canto eólio
aos modos itálicos. Adota a soberba, requisitada
pelos méritos e, com louro délfico, cinge, 15
de bom grado, Melpômene, meus cabelos.
Profético, Horácio sobrevive, perpetua a própria vida por meio de seus versos, de suas célebres expressões, mesmo naquelas que ganharam autonomia, como o nosso inicial carpe diem. Nesta conclusão, é hora de ao início voltar: a poesia vence tudo, e com ela concluiremos esse estender de tapete, bebendo, com Ricardo Reis, novamente, à glória do imortal Horácio, poeta de Roma, que, de leitor dos clássicos, passou a ser leitura importante para se ler a literatura ocidental:
Quero versos que sejam como joias
para que durem no porvir extenso
e os não macule a morte
que em cada coisa a espreita,
versos onde se esquece o duro e triste
lapso curto dos dias e se volve
à antiga liberdade
que talvez nunca houvemos.
Aqui, nestas amigas sombras postas
longe, onde menos nos conhece a história
lembro os que urdem, cuidados,
seus descuidados versos.
E mais que a todos te lembrando, escrevo
sob o vedado sol, e, te lembrando,
bebo, imortal Horácio,
supérfluo, à tua glória…