por Thiago Blumenthal
Pausa para uma busca online em Michel Houellebecq, o autor francês que desde o lançamento de seu Submissão em 2015 encontra-se sob vigilância policial. Radicais islâmicos querem mandá-lo para o espaço. Descubro que no ano passado, mais especificamente em janeiro, ele, cada vez mais avesso a aparições públicas, declarou que não mais escreveria livros com conotação política à rede de TV France 2. Quelle blague, gritaria hoje um francês filho de imigrante comemorando o título de sua seleção em alguma banlieue de Paris, com a camisa de Paul Pogba.
Bem, deixo o computador ligado e saio para jantar com uma amiga. Não falamos sobre Houellebecq, mas sim sobre Pogba, sobre a expressão de desagrado do Mbappé ao “cumprimentar” uma moça do Pussy Riot que decerto ele não fazia ideia de quem era (terá Mbappé um dia ouvido falar em Pussy Riot, nos perguntamos), entre outras delicadezas que tomaram o último mês de nossas vidas. Grana, Drake, Frontal, antissemitismo, Boris Johnson, solidões, insônias. Isolamentos da meia-idade aos quais nos sujeitamos, por uma profusão de razões. Pensamos em tudo isso a sós, e compartilhamos nesses jantares melancólicos com nossos pares tristes. Compartilhar opiniões em redes sociais tornou-se démodé, e um pouco jeca.
Ela não recebe mais convites para nenhum café, reclama, e eu digo que é culpa do Harvey Weinstein. Há um risco envolvendo o café, digo eu, e noto que os homens estão mais receosos em demonstrar algum interesse afetivo ou sexual. Mas sou do tempo do Jonathan Richman, que cantaria que this would never happen to Pablo Picasso: the girls could not resist his stare. Na verdade, nasci pouco depois, mas a música dos Modern Lovers marcou minha adolescência.
De volta à casa, deparo-me com um artigo do New York Times sobre “distopias sexuais” em Houellebecq. Recente, de 12 de julho agora (o link está aqui). Um texto oportuno, embora com uma dosagem um pouco excessiva de generosidade moralista. Adam Kirsch, o autor do texto, se concentra no ressentimento masculino nos livros de Houellebecq, cuja obra, segundo o crítico, é recheada de homens deprimidos, misantropos, que não conseguem obter nenhuma satisfação romântica ou sexual. E pensar que o Mick Jagger já esgoelava problemas tais há mais de meio século.
Kirsch contudo erra ao ligar os personagens ao seu autor, à melhor moda de um Sainte-Beuve. Atribui o chamado “liberalismo sexual” a um pessimismo reacionário do best-seller francês, quando na verdade estamos a lidar com uma sociedade, e em especial a sociedade francesa contemporânea, que se mostra descontente com as liberdades conquistadas após as benesses estudantis (muitas aspas) da década de 1960. Ah, Kirsch erra também ao dizer que Dostoievski é um melhor escritor que Houellebecq. Mas isso não cabe no espaço aqui, e talvez nem interesse ao leitor a minha opinião sobre as qualidades literárias do beato russo.
Em todos os romances de Houellebecq (li quase nada de sua poesia), a pouca humanidade de seus seres goteja página a página. Em Submissão, por exemplo, a impotência singulariza a experiência masculina, diante de um mundo que não pode mais aceitar a respiração desses homens. O protagonista do livro disserta sobre o que chama de “modelo amoroso” dos anos de sua juventude, que, depois de certo tempo de libertinagem sexual, deveria adaptar-se a uma monogamia estrita. Não precisam ter nada de definitivo, continua, mas devem ser uma espécie de “estágio”, mais ou menos como no plano profissional. E é aí que se dá conta
da perfeita inanição desse esquema muito mais tarde, bem recentemente, na verdade, quando tive oportunidade, com algumas semanas de intervalo, de encontrar por acaso Aurélie, e depois Sandra (mas, estou convencido, o encontro com Chloé ou Violaine não teria mudado significativamente minhas conclusões). Assim que cheguei ao restaurante basco onde, a meu convite, ia jantar com Aurélie, percebi que passaria uma noite lamentável.
Rompia relacionamentos com todas as moças que conhecera durante a sua vida acadêmica, sob o efeito de um “desânimo, de um cansaço”. Mudava de opinião de vez em quando, e por uma única razão, a de sempre: “uma saia curta”. Mas passava. Sempre. Recorre então ao YouPorn, um site pornô de referência: podia ficar tranquilo, era um homem normal.
Decerto, como expõe Kirsch em seu artigo, há algo de distopia por aí. O tema pede que ultrapassemos Houellebecq e requer desdobramentos que não sou capaz de analisar com autoridade. Sou também um homem, que recorre a algumas saias curtas e a quaisquer YouPorns da vida. E que desanima fácil. E de certo modo, sou um homem de ficção, que me recrio quando escrevo. E nisto sou péssimo, que fiquemos com as palavras do autor francês.
Pois bem. Ligo a TV e acesso o Netflix para rever o show de Hannah Gadsby (que agora sempre confundo com o grande Gatsby) chamado Nanette, de quem ouvira falar nas redes sociais que mais acesso, o Twitter e o Reddit. Gente que detestou, gente que a venerou como uma nova Lena Dunham. E quem gostou, mas tinha discordâncias. Bom, vamos com calma. Eu gostei, com algumas ressalvas, e trago a moça à baila porque ela trata de relações humanas (quem não?) e dessas distopias sexuais de nossos tempos, entre outros e muitos assuntos – igualmente importantes.
Não sabemos se Hannah Gadsby é solteira, mas parece que sim. Lésbica, relata um pouco do universo homossexual e faz diversas críticas à leitura feminista que muitas lésbicas fazem de sua comédia. “Não é lésbica o suficiente” é o gancho para uma infinidade de assuntos que ela, em um misto de confiança e timidez genuína, dispara a uma audiência, hoje mundial. Tornou-se uma celebridade, tal qual Houellebecq. E no fim, ela é uma personagem de si mesmo, como Houellebecq também o é – apesar de diferente da noção de Sainte-Beuve entre arte e vida pessoal. Gostei dela, mas achei de uma imbecilidade atroz colocar Woody Allen, Roman Polanski, Harvey Weinstein e Donald Trump no mesmo bolo. Controle-se.
Por isso que minha amiga não é mais convidada a cafés em sua conta no Facebook, penso eu. Hoje somos colocados no mesmo bolo, somos uma massa homogênea, infelizmente. Chamar uma garota para jantar faz como que pense que seremos um novo Louis CK, que a receberá de roupão aberto, a masturbar-se de maneira doentia. E então vivemos entre dois extremos, o da perversão freudiana, que nos libera como selvagens em um mundo tomado de mecanismos sociais castradores, e o do tédio, o do cansaço.
Não só homens, como mulheres, toda a classe humana, em um presente e um futuro para lá de distópico. Não somos homens o suficiente, não somos mulheres o suficiente, não somos gays o suficiente, não somos lésbicas o suficiente. Há um déficit aí que enclausurou a sociedade em quartos vazios, ou em casais aborrecidos – mas talvez isso não seja novidade; basta lermos Balzac, ou Lautréamont, ou um Vauvenargues. As paixões abafam.