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Ideias e Histórias não tem a pretensão de ser um espaço autoral, mas, antes, de funcionar como um fórum em que não só seus subeditores mas também autores convidados (vivos e mortos!) se manifestem sobre temas relevantes a partir de pontos de vista os mais diversos. Parece-nos claro que o esforço de pensar as possibilidades e desafios que hoje se colocam às open societies demanda a ampliação de perspectivas. Isso se faz necessário, inclusive e de maneira especial, aos que, como nós, acreditam que nem tudo no mundo Ocidental, ou nas ideias que o constituíram, se tornou obsoleto.
Uma vez por mês, Ideias e Histórias pretende dar aos leitores do Estado da Arte uma pequena contribuição nesse sentido. O elemento comum que atravessará os textos publicados, sejam eles produtos do nosso próprio tempo, sejam de outras épocas ou lugares, pode ser caracterizado assim: de um lado, a centralidade da abordagem histórica (e particularmente a vinculada à história das ideais), e, de outro, a ancoragem (teórica e prática) em tradições do pensamento político comprometidas com a liberdade, a democracia e a justiça social.
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Arthur Alfaix Assis
Universidade de Brasília
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Sérgio da Mata
Universidade Federal de Ouro Preto
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Na estreia da rubrica Ideias e Histórias, duas crônicas de Kurt Tucholsky, na tradução de Sérgio da Mata.
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A ciência histórica
Kurt Tucholsky
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“Você acredita na história?”
“Não.”
“Por que não?”
“Porque eu nem sequer acredito que se possa transmitir completamente para Berlim o que aconteceu em Estocolmo. Os eventos talvez — talvez os números — mas a história não. O que de fato importa, não. A nuance, e mais: a cor, o som, a música — sem os quais não se pode compreender as ações das pessoas. Não creio que isso possa ser transmitido. Chameau nem sempre significa: camelo; o inglês fair não é o mesmo que os alemães chamam de ‘fair’; Humor não significa ‘humour’ — não funciona assim. Isso já é tão difícil numa dada simultaneidade — em que as distâncias por via aérea são de algumas centenas de quilômetros. Há de ficar mais fácil com o transcorrer do tempo?
Em todo caso, entre Estocolmo e Berlim há uma série de fatores mediadores — para não falar da semelhança entre as culturas, especialmente no que se refere ao ininterrupto tráfego de viajantes. O berlinense esteve em Estocolmo, o habitante de Estocolmo talvez conheça Berlim — as aproximações se dão mais rapidamente aqui. Mas e quando existe diversidade de épocas?
Não acredito na história porque sei como chegaremos à posteridade. Como um historiador vai ser capaz de saber, daqui a mil anos! Com a ajuda da historiografia oficial? Mas você mesmo sorri. E as outras obras de nosso tempo? Essa grande tendência atual a se declarar sem tendência alguma, que é algo que não existe nem pode existir — o partidarismo disfarçado, desonesto, manipulador; se manifestando quatro, cinco vezes em cada um dos casos. E quantos não têm um representante sequer na historiografia! Quantas pessoas existem, estamentos, classes, sobre os quais se escreve — mas que nunca escrevem sobre si mesmos. Eles são sempre objetos da historiografia; e quem é que vai estabelecer esse juízo! Quem é que vai saber! O historiador?
Ele prepara uma sopa: feita de fontes turvas, que está obrigado a usar; de erros que surgem ao longo de um extenso processo de transmissão (pense na época em que a arte da impressão ainda engatinhava); de uma seleção de fontes mais ou menos arbitrária, aleatória, dependente de mil fatores, por meio dos quais o historiador chega a elas. Uma sopa feita de sua personalidade; da educação que recebeu; de suas posições políticas, que ele consegue dissimular mas não reprimir — de todas essas coisas é feita a sopa da história.
Ao que finalmente se obtém, chamamos: história. É aliás aquela — diz o poeta — que ‘condenará’. Também eu gostaria de ser condenado desse jeito. Não machuca. Devo acreditar na história? Eu não. Você acredita na história?”
“Sim.”
“Você acredita nela? Por quê?”
“Porque se você tivesse razão em tudo, as coisas não seriam tão ruins. Eu quero crer nela. Acredito na história porque as variações que jogam com a humanidade não são tão numerosas assim. Tudo retorna ao menos uma vez — e sempre. Os motivos, as paixões, as relações entre mulher e homem — sim, até mesmo as formas em que isso acontece são incessantemente retiradas ao mesmo grande armário. É um caleidoscópio — há ali um grande número de nuances, é verdade, mas as pedrinhas são sempre as mesmas.
Certamente é impossível reproduzir a mesmíssima atmosfera que prevaleceu durante uma corrida de bigas romanas. Isso não existe — ninguém é capaz de tal coisa. Mesmo o mais sensato dos franceses não chega a tanto quando imita e reescreve versos satíricos da corte de Luís XV — falta algo, é claro. Mas acredito que somos capazes de compreender o mais essencial da história do passado caso não mintamos para nós mesmos e não deixemos que mintam para nós.
Acredito na história porque (faz tempo) cada época não é tão nova, tão interessante, tão única, tão fundamentalmente diferente de todas as outras quanto ela imagina. Toda época se considera o começo de algo absolutamente magnífico. É uma pena que não possamos viver oitocentos anos — uma pena porque, caso pudéssemos, nos assemelharíamos àqueles velhos de Swift, que estão plenamente conscientes apenas de seus primeiros quarenta anos. Mas, se fosse possível, seríamos como um homem eternamente ágil, não como um idoso, mas alguém mais atuante, mais criativo, sempre a recomeçar… O que se veria então?
O que se veria? A mesmice, a estrutura sob a dinâmica das formas, a repetição, as leis do movimento histórico — talvez as próprias leis. Muita coisa muda — e nada muda. Eu acredito na história.”
“Eu não acredito nela. Que devemos fazer então?”
“Cheguemos a um acordo, como numa saudável bancarrota.”
“Por favor: sejamos claros e precisos! Existe alguma verdade na história — sim ou não?”
“Na ciência histórica não há nada que nela não esteja.”
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(“Geschichtswissenschaft” foi originalmente publicado sob o pseudônimo de Peter Panter, na Vossische Zeitung, 21.07.1927.)
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Saudação para o futuro
Kurt Tucholsky
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Caro leitor de 1985,
Por um acaso qualquer te meteste na biblioteca, encontras meu livro Mona Lisa, te surpreendes e lês. Bom dia!
Estou muito embaraçado: usas um terno cujo estilo difere completamente do de minha época; diversa também é a forma como vestes teu cérebro… Já tentei começar três vezes, cada vez com um assunto novo, tem de haver uma ponte entre nós… Toda vez que tento, tenho de desistir — não nos entendemos de jeito nenhum. Sou pequeno demais; estou com minha época até o pescoço; mal dou uma olhada no altímetro do tempo… Vês? já sabia: ris de mim.
Tudo em minha pessoa te parece antiquado: minha maneira de escrever, minha gramática, minha postura… Ah! Não me dês tapinhas nos ombros, não gosto disso. Em vão tento te dizer como vivíamos, como eram as coisas… pra nada. Sorris, a minha voz ressoa do passado, impotente. Tu sabes tudo, e melhor. Devo te contar sobre o que excita as pessoas em minha aldeia do tempo? Sobre Genebra? Sobre a estreia de Shaw? Sobre Thomas Mann? Sobre a televisão? Sobre uma ilha de aço no meio do oceano, servindo de base aérea? Sobre tudo isso tu sopras, e a poeira sobe tão alto que não consegues ver mais nada.
Devo te fazer encômios? Não consigo. É óbvio que vocês não resolveram a questão da “Sociedade das Nações ou Paneuropa?”. As questões não são resolvidas pela humanidade, mas apenas deixadas de lado. Claro que, para o dia a dia, tendes a vosso dispor trezentas máquinas inúteis a mais do que já temos, mas, no final das contas, vocês são exatamente como nós, nem mais burros nem mais inteligentes. O que sobrou de nós? Não busques tão fundo na memória, no que aprendeste na escola. O que sobrou, foi por acaso: aquilo que, de tão neutro, chegou até vós. Do que era realmente grande restou, talvez, a metade. Mas ninguém mais se interessa por isso — quem sabe numa manhã de domingo, um pouquinho, no museu. É como se hoje eu tivesse de conversar com um homem da Guerra dos Trinta Anos: “E então? Tudo bem? Ventou muito no cerco a Magdeburg?”, coisas que se dizem em situações assim.
Eu não posso sequer travar contigo uma conversa mais elevada, acima da média de meus contemporâneos, como diz a canção: porque sois um progressista, como eu. Ah, meu caro: também és um homem de teu tempo. Na melhor das hipóteses, quando digo “Bismarck” e tu tens de fazer força para te lembrares quem foi, já sorrio satisfeito comigo mesmo: não és capaz de imaginar quão orgulhosamente as pessoas à minha volta estão convencidas da imortalidade dele… Bem, deixemos isso pra lá. Além do mais, agora quereis ir tomar o café da manhã.
Bom dia. Este papel já está bem amarelado, amarelado como os dentes de nossos juízes de segunda instância. Vês, agora se esfarela a folha por entre os dedos… claro, de tão velho. Vás com Deus, ou como quer que o chameis. Não temos muito o que dizer um ao outro, nós, os medíocres. Estamos mortos, e aquilo que nos preenchia se foi junto. Tudo era forma.
Sim, ainda quero dar-te a mão. Por civilidade.
Agora vás.
Porém, ainda quero te dizer isso: não sois melhores que nós nem melhores que os que nos antecederam. Não sois nem um pouco diferente de nós, em absoluto…
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(“Gruss nach vorn” foi originalmente publicado em: Kurt Tucholsky. Das Lächeln der Mona Lisa. Berlin: Rowohlt, 1929, pp. 133-135.)
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