por Alberto Rocha Barros
A cidade de Derry (Maine) sofre, a cada 27 anos, de uma epidemia de acontecimentos estranhos e trágicos: desaparecimentos, acidentes, mortes violentas, comportamentos antissociais e perversos dentre a população. O padrão recorrente é descoberto por uma turma de crianças que identificam que uma antiga entidade assombra e terroriza a comunidade. O que assola Derry é um horror inominável, indefinível, indescritível. Referem se a ele simplesmente como “it” (A Coisa).
É essa a premissa do romance de 1986 de Stephen King, e cuja mais nova adaptação cinematográfica estreou no Brasil durante o último feriado da pátria. Stephen King dominou o panorama do gênero de horror nas últimas décadas, criando ícones da cultura pop, e seus romances foram adaptados para o cinema com grande impacto: Carrie, a estranha (1976); O Iluminado (1986); Conte Comigo (1986); Louca Obsessão (1990). Mesmo tendo rendido romances e adaptações menos gratificantes (trata-se de um autor de qualidade desigual), as histórias de King produziram obras marcantes, e confesso que estava ansioso para assistir ao It – A Coisa (2017), dirigido pelo argentino Andy Muschietti, sucesso de público e que tem tido índices de aprovação bastante razoáveis (86%) no agregador de críticas Rotten Tomatoes.
Pessoalmente, não gostei muito da nova versão, mas acredito que o lançamento do filme serve como mote para refletirmos sobre o lugar que It ocupa na obra de Stephen King, e sua gênese me parece revelar um autor engajado com sua arte, mesmo tratando-se de uma arte imperfeita. Concomitantemente a isso, It parece-me simbólico do gênero de terror como um todo, e estimula uma reflexão sobre aquilo que vou chamar de a estética do medo ou do inquietante a partir da ótica do próprio King. Até mesmo a nomenclatura do gênero – terror, horror, macabro, grotesco, fantástico, gótico – é plástica e sujeita a caracterizações diversas. Por isso, adotar um rótulo mais vago nos permite uma amplitude maior de navegação.
Stephen King não é apenas um autor de histórias assustadoras, mas reflete sobre a natureza do gênero. Para um escritor operando com a estética do medo e inserido na cultura literária anglófila, é quase inevitável reconhecer descendência dos três romances neogóticos que modernizaram o gênero como um todo: Frankenstein (1818) de Mary Shelley; O Estranho Caso do Doutor Jekyll e do Senhor Hyde (1886), obra de Robert Louis Stevenson; e o Drácula (1897) de Bram Stoker. E Stephen King enfrentou o peso da herança do Drácula no romance Salem’s Lot de 1975. King reconta seu processo criativo do seguinte modo:
“Quando idealizei o romance de vampiro que se transformou no livro Salem’s Lot, decidi que gostaria de fazer do livro em parte uma espécie de homenagem literária (…). Desta forma, meu romance sustenta uma semelhança intencional com o Drácula de Bram Stoker e, depois de um tempo, começou a me parecer que o que eu estava fazendo era jogar uma interessante – para mim, pelo menos – partida de squash literário: Salem’s Lot era a bola e Drácula era a parede contra a qual eu ia jogando, observando como e para onde a bola ia ricochetear, para então bater novamente. Na realidade, houve lances muito interessantes, e atribuo isso principalmente ao fato de que enquanto minha bola existia no século XX, a parede era muito mais fruto do século XIX.”
A passagem acima é uma citação de Dança Macabra (1981), uma meditação pessoal e informal sobre a estética do medo, que King escreveu na mesma época em que começava a conceber o que se tornaria o It. Nesse livro de não-ficção, King revisita seus anos de formação, da infância à idade adulta, como ávido consumidor do inquietante em todas as suas formas (programas de rádio, quadrinhos, romances, filmes), nos Estados Unidos dos anos 1950 ao início dos anos 1980. Dança Macabra é, a um só tempo, reflexão crítica e autobiografia.
Paralelamente a isso, King tinha uma ideia que estava sendo curtida gradualmente nas águas turvas de sua imaginação. Ele havia intuído um potencial horrífico num conto da carochinha, que o incomodara desde sua infância. Tratava-se da história conhecida como “Os Três Carneirinhos” onde os pequenos carneiros precisam atravessar uma ponte para acessar um prado rico em grama para os alimentar, mas um trasgo terrível vive debaixo da ponte, que se alimenta daqueles que procuram atravessar para o outro lado. Como escapar à voracidade do troll?
O romance It é resultado da confluência dessas três fontes de inspiração: o exercício de meditação sobre a história do gênero do inquietante; a maturação pessoal de King como autor atuante no gênero (não é por acaso que um dos personagens se torna um famoso escritor de romances de terror); e a fábula infantil que tanto lhe impactou. Em It, a imagem da ponte com seu fosso habitado pelo monstro é recriada como a cidade de Derry e seu sistema de esgotos, onde habita A Coisa. E o trasgo de King é uma entidade mutante, que assume inúmeras formas. “Eu queria escrever um livro em que coubessem todos os monstros”, disse certa vez o escritor. Assim, A Coisa é concebida como uma homenagem à história do gênero como um todo, assumindo a forma da criatura do Dr. Frankenstein, do lobisomem, da múmia, da bruxa de “João & Maria”, do conde Drácula e até do tubarão do notório filme de Steven Spielberg.
Ocorre que a adaptação cinematográfica de 2017 é uma versão adestrada do romance original, que é muito mais esquisito e temperado com boas doses de H. P. Lovecraft, um dos autores diletos de King. O It de 1986 é construído como uma batalha cósmica entre o Bem e o Mal e, em seu retrato de uma batalha metafísica travada numa pequena cidade esquecida nos recônditos do nada, talvez seja o paradigma que resultou tanto no seriado Stranger Things (2016) quanto na primeira temporada de True Detective (2014).
Como é que nos aproximamos da estética do medo? Como é que podemos pensa-la? Um primeiro problema está na tensão entre o inquietante como essencial à forma ou o inquietante apenas como metáfora ou alegoria. Como diz o excêntrico bad boy da filosofia, o esloveno Slavoj Zizek, para compreender o filme de terror devemos eliminar mentalmente o elemento implausível ou sobrenatural e analisar o que resta na estrutura da trama. Assim, o filme It de 2017 pode ser pensado como uma fábula sobre a importância dos laços afetivos (sobretudo os laços de amizade e amor erótico) para se enfrentar os medos pessoais e os pesadelos da vida real, na passagem da infância para a idade adulta; O Iluminado narra a história do enlouquecimento de um autor fracassado que sucumbe ao vazio interno, ao álcool e à solidão. Um dos críticos que refletiu seriamente sobre o gênero, Tzvetan Todorov, é particularmente sensível à questão do problema da alegoria: ela simultaneamente expande e empobrece a obra gótica, e trai sua construção formal. Para Todorov, às vezes, um fantasma é um fantasma. Queremos pensar o It como novela metafísica ou romance psicológico?
Stephen King encapsula esse deslizamento constante entre forma e alegoria numa excelente anedota, que abre o Dança Macabra. Em outubro de 1957 ele estava assistindo a um filme assustador sobre uma invasão alienígena aos Estados Unidos. Os monstros eram horripilantes e inquietaram o jovem garoto. De repente a sessão de cinema é interrompida brevemente para o anúncio de que os russos lançaram com sucesso o satélite Sputnik 1, dando um passo tremendo na corrida espacial: a inquietação do menino permanece, mas agora sua imaginação opera num diapasão entre forma e metáfora.
O Dança Macabra levanta outra questão sobre a estética do medo. Trata-se do problema da caracterização de seus efeitos, a identificação da atmosfera tecida pela obra de arte que mira o inquietante. King sugere, como já fizeram outros pensadores, que o gênero oscila entre os polos do “terror” (concebido como versão do sublime), do “horror” (um sentimento menos refinado) e da “repulsa”. Esses seriam os efeitos possíveis despertados pelo gênero, que seriam resultado do estímulo daquilo que King chama de “pontos de pressão fóbicos” e/ou “zonas de desconforto”. Poderíamos, é claro, expandir o esquema de King, mas seu intuito é identificar o delicado balanço entre aquilo que é obra de arte, mero thriller ou algo de puro mau gosto. Afinal, dentre os filmes classificados como “terror”, há o body horror e o torture porn, variações desagradáveis do gênero, para se dizer o mínimo.
Mas por que essa distinção é relevante? Porque criar uma obra de arte nesse gênero demanda precisão. Afinal, para provocar medo efetivo é necessário, por vezes, transgredir certas barreiras, fazer um experimento controlado de fragmentação interna, e fazer isso de maneira rude é trivial. Como poucos outros gêneros, o inquietante nos demanda um olhar interno profundamente pessoal: Porque isso me aterroriza tanto? De onde vem tamanho desconforto e aflição? Nem sempre um susto é um mero susto. A dança macabra é uma atividade potencialmente perigosa. King menciona a elegância da adaptação cinematográfica de O Iluminado, e a sofisticação de A Volta do Parafuso (1898), de Henry James. A mais nova adaptação de It merecia seu Stanley Kubrick. Há boas ideias repousando lá.
Alberto Rocha Barros é bacharel e doutor em Filosofia pela USP e psicanalista membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo