Freud, Philip Roth, Bashevis Singer em ‘Um Homem Sério’

Com Freud, Roth e Bashevis Singer, Jacques Fux discute o lúdico, a literatura e o mistério constantemente trabalhados em O homem sério, dos Irmãos Coen.

por Jacques Fux

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Introdução

Um homem sério, filme escrito, dirigido e produzido pelos Irmãos Coen (2009), conta os dramas inexplicáveis e divertidos vividos pelo professor de física, Larry Gopnik (Michael Stuhlbarg), durante os anos 1960. Pai de um menino rebelde que está prestes a realizar seu Bar-Mitzvá e de uma adolescente alienada, casado com uma mulher que de repente lhe pede um get (divórcio) para poder se casar com outro membro da comunidade judaica, irmão de um viciado em jogos que vive enfurnado no banheiro e enfrentando problemas com um aluno coreano, o sério Larry não consegue entender as provações que a vida está lhe colocando neste momento. Assim, diante da incompreensão e da incerteza de Heisenberg (“que prova que não podemos realmente saber o que está acontecendo” (Coen 69min43s), Larry busca desesperadamente uma resposta divina para seus problemas recorrendo à pseudoajuda dos líderes religiosos de sua comunidade.

Diante de tantas provações e questionamentos, mas sempre acreditando nos inexplicáveis desígnios de Hashem (Deus), Larry lembra a história bíblica de Jó. Além disso, assim como Jó, Larry se prende a uma explicação maior, deseja entender as razões de Deus para lhe impor tantos problemas e privações. Mas Larry não é capaz de aceitar o mistério e se pergunta a todo momento: “o que fiz para merecer isso?” sendo uma das principais questões que norteiam esse filme.

A trilha sonora do filme elucida os dramas e o humor vividos pelos personagens.  Na música do grupo americano Jefferson Airplane, Somebody to Love, já encontramos algumas dicas da trama central do filme: “Quando a verdade se revela mentira e todos os contentamentos dentro de você morrem. Você não deseja ter alguém para amar? Você não precisa ter alguém para amar? Não amaria ter alguém para amar? É melhor encontrar alguém para amar”. As verdades matemáticas e físicas de Larry se revelam misteriosas, inapreensíveis. Larry procura entender Hashem através dos rabinos, personagens centrais do humor judaico criados pelos Irmãos Coen.

As influências judaicas, o uso do fantástico e do nonsense podem ser percebidas em nos personagens e em toda obra dos Coen. Em A imagem-tempo Deleuze escreve:

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O que Kafka sugere para a literatura vale ainda mais para o cinema, na medida em que este reúne, enquanto tal, condições coletivas. O diretor de cinema se vê perante um povo duplamente colonizado, do ponto de vista da cultura: colonizado por histórias vindas de outros lugares, mas também por seus próprios mitos, que se tornaram entidades impessoais a serviço do colonizador. O autor não deve, portanto, fazer-se de etnólogo do povo, tampouco inventar ele próprio uma ficção que ainda seria história privada: pois qualquer ficção pessoal, como qualquer mito impessoal, está do lado dos “senhores”. Resta a possibilidade de se dar “intercessores”, isto é, de tomar personagens reais e não ficcionais, mas colocando-as em condição de “ficcionar” por si próprias, de “criar lendas”, “fabular”. O autor dá um passo no rumo de suas personagens, mas as personagens dão um passo rumo ao autor: duplo devir. A fabulação não é um mito impessoal, mas também não é ficção pessoal: é uma palavra em ato, um ato de fala pelo qual a personagem nunca para de atravessar a fronteira que separa seu assunto privado da política, e produz, ela própria, enunciados coletivos. (Deleuze 264)

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O filme pode ser visto, também, como uma referência à própria autobiografia dos Coen. Nascidos em uma pequena cidade no interior dos EUA, judeus, membros de uma pequena comunidade, filhos de universitários, Joel e Ethan ficcionalizam, fabulam e criam suas próprias lendas refletidas em suas obras. Além disso, podemos perceber que os Irmãos Coen trabalham com o conceito de fabulação que, segundo Bogue (2010), são formados por cinco elementos: o devir, a experimentação no real, o mito, a invenção de um povo por vir, a desterritorialização da linguagem. Devir é este estar entre, talvez o mistério que discutiremos n’O Homem sério. Esse devir não leva a uma conclusão, a uma finalização; pelo contrário, coloca novas perguntas e questionamentos. Ao trabalhar com o mistério, há uma relação com o movimento que jamais chega a ser, está sempre em via de se tornar.

Repleto de ironia, sarcasmo, mistério e nonsense, os frequentes diálogos e o roteiro escritos pelos Irmãos Coen permitem diversas leituras e interpretações. A primeira parte do filme apresenta um conto em iídiche, que nos remete à literatura e aos temas tratados principalmente pelo escritor Isaac Bashevis Singer. Já a segunda parte de O homem sério pode ser interpretada também pensando na abordagem do humor judaico que Freud trabalhou em Os chistes e sua relação com o inconsciente e, ainda, pelas várias referências à Cabala e ao misticismo judaico. Este artigo tem como objetivo, portanto, discutir o lúdico, a literatura e o mistério constantemente trabalhados em O homem sério.

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(Reprodução)

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Bashevis Singer, o dybouk e o iídiche

Algumas frases importantes norteiam o filme e podem ser utilizadas para entender (ou tentar) as diversas referências e questionamentos levantados. Logo no início do filme há uma citação do grande sábio e estudioso do Talmud e da Torá, Rabino Shlomo Yitzhki, o Rashi: “Receba com simplicidade tudo o que acontece com você”. Esta frase já nos dá uma ideia do que passará ao longo do filme e como nós e os personagens devemos receber tudo que passará no decorrer da trama.

O filme começa com um conto em iídiche que possivelmente se passa no início do século na Europa oriental e aparentemente não tem nada a ver com o resto do filme:

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O filme começa com uma história que se passa em algum lugar da Europa oriental no início do século e é falado em iídiche. Os primeiros cinco ou dez minutos de filme não tem relação direta com o resto do filme. Não sei por que, parecia que começar o filme com um conto em iídiche seria uma introdução adequada para o filme. Mas não sabíamos nenhum conto iídiche, então meio que inventamos um. (Coen bônus 05s)

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Apesar dos irmãos Coen dizerem que esse conto inicial não tem a ver com o que se passará no filme, o diretor executivo Robert Graf diz exatamente o contrário: “não quero comentar o que os caras quiseram falar, mas isso (o conto) se reflete no resto da história” (Coen bônus 1min09s). A meu ver há sim uma relação entre o conto em iídiche e o filme. Ambas as partes aludem à questão do mistério, a acontecimentos aparentemente fantásticos e com certo humor. Existe, também, uma referência explícita, nas duas partes, ao misticismo judaico. Assim, de fato, além da frase de Rashi, há outra que constantemente surge ao longo do filme: “aceite o mistério” ou “a vida é cheia de mistério” que podem ser vistas como pontos centrais nessa narrativa dos Irmãos Coen.

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Isaac Bashevis Singer

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Um dos grandes representantes do conto em iídiche foi o prêmio Nobel Isaac Bashevis Singer. Nascido na Polônia em 1904, mais especificamente em Varsóvia, Singer era descendente de rabinos. Seu pai tinha um Beith Din, espécie de tribunal religioso destinado a tratar litígios entre os membros da comunidade judaica. Singer frequentava também o Clube dos Escritores em Iídiche, “centro de ideias, aspirações, teorias, fantasias, sonhos”. Para ele o iídiche era “um idioma do exílio, não ligado a um território, não amparado pelo poder estatal; um idioma desprezado por gentios e por judeus emancipados… O iídiche é um sábio e humilde idioma, o idioma de nossa atemorizada, mas esperançosa, humanidade” (Scliar apud Singer 9). Assim escreve Moacyr Scliar sobre o iídiche:

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Em iídiche havia também um rico folclore, que incluía numerosas historietas e anedotas. O humor judaico é um humor peculiar, contido, melancólico, filosófico; não é um humor para gargalhadas, antes para um sorriso. Esse humor frequentemente funcionou como antídoto contra o desespero resultante de uma situação crônica de inferioridade, de submissão, de risco. Não é de estranhar que escritores judeus tenham feito do humor um importante componente de sua literatura: Scholem Aleichem, Peretz, até mesmo Kakfa. (Scliar apud Singer 9)

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No filme percebemos que os problemas matrimoniais são levados a um rabino, o que acontecia também no tribunal do pai de Bashevis Singer. O conto inicial do filme retrata um casal num shtetl (comunidade ou bairro judaico) que recebe a visita de um famoso rabino. A esposa acha que o visitante pode ser um dybbuk (alma desencarnada que penetra no corpo de outra pessoa), já que esteve presente durante o shiva (luto de sete dias) do próprio rabino. Começa, então, mais um dos divertidos diálogos em que o rabino tenta convencer o marido de que não é um dybbuk. Alguns minutos depois a mulher pega uma faca e espeta o coração do rabino que exclama: “Que mulher você tem, heim?” e coloca em dúvida acerca de quem seria de fato o dybbuk, se ele ou se a esposa. Esse mistério (assim como quase todos do filme) não é revelado e o rabino se levanta e vai embora apenas dizendo que não é bem-vindo naquela casa. A mulher aqui assume uma posição de força e convicção, mas com a possibilidade de estar errada ou de estar possuída por um espírito malévolo.

Singer tinha uma irmã que era muito problemática. Sofria de epilepsia, histeria e era emocionalmente instável. Ele próprio dizia que, às vezes, sua irmã parecia possuída por um dybbuk. Seu livro Satã em Goray conta a história de uma moça que, histérica e epilética, parece possuída por um espírito do mal. Scliar escreve:

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Desde os primeiros escritos ficou claro que a literatura de Singer era, antes de tudo, um reflexo de sua infância e adolescência na Polônia. O shtetl é o cenário preferencial, mas os personagens estão longe de ser caricaturais ou ingênuos; o que temos aqui são pessoas à mercê de paixões e fantasias poderosas, inspiradas pelo misticismo e pelo folclore judaicos. O dybbuk frequentemente está presente nas histórias, o que faz delas um equivalente judaico do realismo mágico de um García Marquez. Mas a atitude de Singer em relação ao misticismo não é de frio distanciamento; ele crê, como declarou no discurso de recepção do prêmio Nobel, nas forças da espiritualidade. Desde criança ouvindo do irmão Israel os argumentos racionalistas de Spinoza e Max Nordau, Singer tinha dolorosa consciência do antagonismo entre tradição judaica e modernidade ocidental. Mas também confiava nas “respostas que a fé em Deus oferece para nossas dúvidas”. Disse a respeito, em seu discurso: “A respeito do meu desencanto e do ceticismo, acredito que se pode aprender muito com o judaísmo”, sobretudo com sua capacidade de “encontrar felicidade onde outros apenas veriam miséria e humilhação… O gueto não era só o local de uma minoria perseguida, era um reduto de humanismo” (Scliar apud Singer 11).

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O conto inicial, da mesma forma que muitas histórias de Singer, trabalha e faz referência a conhecimentos místicos do judaísmo. O tema dybbuk, como salientou Scliar, equivale ao realismo mágico da literatura. Contadores de histórias, os Irmãos Coen no cinema e Singer na literatura, discutem aspectos místicos, esotéricos e fantásticos do universo judaico, o Povo do Livro:

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“Sou um contador de histórias”, dizia Singer. Grande contador de histórias, desses escritores que acreditam que na literatura como forma de alargar os horizontes da experiência humana, de criar novas perspectivas, de estabelecer uma continuidade entre passado, presente e futuro mediante o uso da palavra. Na tradição judaica, diz Singer, “nunca houve diferença entre o poeta e o profeta”. Poetas e profetas convivem nas páginas da Bíblia: ali no Cântico dos Cânticos, ali estão as profecias de Isaías. A Bíblia é um texto de caráter histórico, ético, religioso, mas também a evidência palpável da verdadeira reverência do judaísmo pela palavra escrita. Esse pequeno povo não se celebrizou pela arte ou por monumentos gigantescos; o que deixou para a posteridade foi um Livro, mas esse Livro, passando de geração para geração, condicionou boa parte da mentalidade do Ocidente (Scliar apud Singer 11).

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Jacob Guisburg escreve no prefácio do livro O dibuk, de Schloime Zainvil Rapaport, mais conhecido como Sch. An-Ski: “obra tão carregada de elementos linguísticos, culturais, religiosos e ambientais específicos da sociedade judaica do iídiche e do schtel da Europa Oriental” (An-Ski 13). O dybbuk de An-Ski foi uma peça de teatro de grande popularidade que representa a relação entre o presente e o passado sob a imagem da possessão devido a existência de uma alma que retorna, controlando a personalidade dos vivos. A palavra dybbuk significa “aderir”, “apegar-se” e remonta a lendas hassídicas relacionadas com criaturas tomadas pelos espíritos dos mortos.

Desta forma podemos perceber a proximidade entre o conto dos Irmãos Coen, a literatura mística de Singer e lenda hassídica do dybbuk.

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O nome secreto e a combinação de letras: Tudo é matemática

Em Complexo de Portnoy, Philip Roth retrata uma família judaica em que o pai vive com uma prisão de ventre interminável, a mãe, iídiche mame e hiperprotetora, procura alguma doença escondida nas fezes de seu filho, Alexander Portnoy que por sua vez vive se masturbando no banheiro, incomodando a mãe, o pai e a irmã. Este livro de Roth fez grande sucesso na década de 60, quando lançado, ao polemizar e discutir assuntos que ainda não tinham sido tratados de forma tão crua e direta, como era o caso da masturbação.

O filme dos Irmãos Coen pode ser visto também como uma releitura do livro de Philip Roth. Arthur Gopnik, irmão de Larry Gopnik, vive e atrapalha bastante a vida da família do professor de física. Filmado na maioria das vezes no banheiro, Arthur tem um cisto sebáceo que precisa ser drenado constantemente. Já diferentemente de Alexander Portnoy que tenta se alienar da família através da constante masturbação, Danny Gopnik, filho de Larry, aliena-se dos seus problemas fumando maconha o tempo todo e chega até a subir pela primeira vez na Torá, em seu Bar Mitzvá, sob os efeitos da droga. A relação entre a prisão de ventre do pai de Alexander com a vida de Larry seria a total incompreensão diante das privações de Hashem, de repente impostas a ele. A irmã de Danny, assim como a irmã de Alexander, sempre deseja utilizar o banheiro, que está sempre ocupado. A crítica de Roth e dos Irmãos Coen às adolescentes é capciosa: essa geração completamente alienada. Porém, a grande diferença que percebemos entre o filme dos Coen e o livro de Philip Roth, está na posição da mãe: a primeira quase sem importância alguma e a segunda responsável por todos os complexos psicanalíticos de Portnoy.

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Philip Roth

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Voltando a Arthur Gopnik e sua incômoda presença na casa de seu irmão, percebe-se que ele fica sempre com seu inseparável caderno escrevendo um possível artigo matemático, ou um “mapa do universo” com o título de Mentaculus. A princípio Larry acredita que seu irmão está fazendo um trabalho sério e rigoroso. Porém, quando ele resolve abrir o caderno para ler as formulações matemáticas, espanta-se com desenhos, letras e diversos números absurdos. Larry acredita, nesse momento, que seu irmão ultrapassou o limite da sanidade. Entretanto, mais a frente no filme, o filho de Larry que sempre teve dinheiro para comprar drogas, diz que o Mentaculus funciona. Surpreendentemente Arthur vem ganhando dinheiro nos jogos devido à formulação matemática ou cabalística que ele descobriu através de suas pesquisas. Novamente não há mais informações sobre esse caso. Possivelmente estamos diante de uma relação com a Cabala que atribui poderes à combinação e manipulação de determinadas letras do alfabeto hebraico, fato resultante dos procedimentos descobertos através do Mentaculus.

Podemos, portanto, encontrar no filme dos Coen referências à Cabala, esse conhecimento mágico. E aí está a beleza e a possibilidade da articulação entre literatura e cinema: “filmes, em suma, são potencialmente ‘mágico-realistas’; eles podem tornar os sonhos realistas e a realidade onírica, conferindo à fantasia aquilo que Shakespeare denominou ‘uma morada local e um nome’” (Stam 33).

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Freud e o humor

Segundo Freud em Os chistes e sua relação com o inconsciente, numa brincadeira pode-se até dizer a verdade. De acordo com a psicanálise o humor é uma necessidade humana de sentir prazer e está relacionado à inserção social já que o homem é atravessado pela cultura em que habita. Não importa o quão inserido na sociedade está o sujeito, ele sempre estabelecerá uma relação de troca com os demais devido à cultura. Devido à articulação com um meio social e seus sujeitos e a inserção da cultura nas narrativas, encontramos a possibilidade humorística. No caso do humor judaico muitas vezes há uma incompreensão, devido ao fechamento e às diversas origens e influências de cada comunidade. Há, no entanto, uma diferença entre o chiste, o humor e o cômico segundo a psicanálise: “Freud enuncia, ainda, que o prazer nos chistes procede de uma economia na despesa psíquica com a inibição; o prazer no cômico provém de uma economia na despesa com a representação; e o prazer no humor, de uma economia na despesa com o sentimento (os afetos). E, podemos hoje acrescentar, após as contribuições de Lacan: o chiste é da ordem do simbólico, o cômico, da ordem do imaginário e o humor, da ordem do real” (Morais 2008).

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Sigmund Freud

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O humor judaico se diferencia um pouco dos outros tipos de humor justamente pela sua autocrítica, a capacidade própria dos judeus de falaram e rirem de suas desgraças diaspóricas. Assim a narrativa de um judeu para outro judeu e as devidas singularidades da cultura são vistas com humor, mesmo que possuam um conteúdo agressivo. Um caso clássico do humor judaico é a famosa figura de iídiche mame, hiperprotetora e superexigente que inspira diversas piadas.

O conhecido Povo do Livro sempre teve o costume de discutir e criticar a crença do outro grupo, mesmo sendo um outro grupo judeu. Além disso, é próprio da cultura judaica a não aceitação de uma doutrina imposta, mesmo a Torá é interpretada diferentemente pelos judeus, dependendo da sua origem e crença. O chiste é um dizer não explícito, é discordar de algo do seu próprio grupo através do humor. Assim é possível criticar o outro pelo humor sem o comprometimento e a responsabilidade de ter de arcar com ônus da depreciação. Essa é uma alternativa prazerosa e não compromete a posição do narrador. Para Freud, esse mecanismo de sentir prazer com a agressão é comum nos chistes.

Algumas vezes em Um homem sério, os personagens judeus ironicamente exclamam: “Jesus Christ”. Aqui há o mecanismo do chiste: com uma breve palavra há uma associação a referências e críticas. Assim escreve Freud: “a psicogênese dos chistes nos ensinou que o prazer em um chiste deriva do jogo com as palavras ou da liberação do nonsense e que o significado nos chistes pretende simplesmente proteger o prazer contra sua supressão pela crítica” (Freud 154).

O filme dos Irmãos Coen é ainda permeado por sonhos do personagem principal Larry. Nos sonhos, segundo a psicanálise, há a possibilidade da manifestação do inconsciente. “O cinema conjuga o realista e o fantástico. […] O cinema pode ainda veicular a mágica persuasiva dos sonhos. De Munsterberg a Metz, os teóricos de cinema notaram não somente a capacidade do filme de representar sonhos, mas também suas analogias com o sonho em termos de seus procedimentos operacionais, suas fusões e deslocamentos metonímicos e metafóricos” (Stam 33).

As privações do homem são vistas tragicamente e por isso há a presença do humor em diversas cenas. Assim escreve Morais sobre a diferença entre o drama e a tragédia e a possibilidade de se fazer humor a partir delas:

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Foi fundamental a condição judaica de Freud para inscrever o humor e as piadas em uma das formações do inconsciente, ao lado dos sonhos, atos falhos, lapsos e sintomas, pois o humor se insere nesta tradição judaica como meio de superar o sofrimento e as adversidades produzidas pela diáspora. Os impasses do sujeito puderam ser interpretados como algo da ordem do trágico e não do drama, pois no trágico existe sempre o humor como possibilidade, ao contrário do drama, em que habita o ressentimento a ser transformado em masoquismo e melancolia (Morais 2008).

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Talvez as cenas que mais envolvam o humor judaico sejam as orientações dos rabinos. Larry, desesperado, recorre aos rabinos com o intuito de entender e desvendar os desígnios divinos. Ao procurar primeiramente o Rabino Nachtner, Larry acaba tendo uma entrevista com o Rabino Júnior Scott. O diálogo entre os dois personagens é apresentado abaixo:

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Larry: E ela quer um get.

Rabino Scott: Quer um quê?

Larry: Sinto que estou sem chão. Estou sem rumo. Não sei como agir. Estou muito confuso.

Rabino Scott: Que razões ela deu para ruptura?

Larry: Não deu razões. Apenas que as coisas não iam bem.

Rabino Scott: E isso é verdade?

Larry: Acho que sim. Não sei. Ela geralmente tem razão. Esperava que o Rabino Nachtner pudesse me ajudar. Com a experiência de vida dele… Sem ofensas.

Rabino Scott: Claro que não. Sou o rabino júnior. E é verdade, o ponto de vista de alguém mais velho… e que talvez tenha os mesmos problemas pode ser mais válida. Você deveria ver o rabino sênior, sem dúvida! Posso compartilhar algo com você? Porque também sinto estar saindo do caminho de Hashem, que é o problema aqui. Eu também me esqueci de como vê-lo no mundo, e quando isso acontece, você pensa: “Bom, se não posso vê-lo, ele não está aqui. Ele se foi”. Mas não é este o caso. Você só precisa se lembrar de como vê-lo. Não estou certo? Ou seja… O estacionamento ali. Não tem muito para ver. Mas se você se imaginar como um visitante, alguém que não é familiarizado com estes veículos, alguém que ainda tenha a capacidade de se admirar. Alguém com uma perspectiva nova! É isso aí, Larry. Porque com a perspectiva correta, você pode ver Hashem penetrando o mundo. Ele está no mundo, não só na sinagoga. Parece-me que você está vendo o mundo, a sua mulher… através de olhos cansados. É como se ela se tornasse uma espécie de… Um problema. Uma coisa.

Larry: Ela está encontrando o Sy Ableman. Estão planejando… Por isso querem o get.

Rabino Scott: Sy Ableman! Eu lamento.

Larry: Foi ideia dele.

Rabino Scott: Mas…. Esta é a vida. Você precisa enxergar estas coisas como expressão da vontade de Deus. Claro que você não precisa gostar. O chefe nem sempre tem razão, mas ele é o chefe. Exato! As coisas não são tão ruins. Veja só o estacionamento, Larry! Dê uma olhada no estacionamento (Coen 43min48s).

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Inicialmente o Rabino Scott pergunta a Larry o que é um get. Essa é uma piada recorrente entre os judeus mais conservadores. Para eles, os rabinos liberais não conhecem muito da religião judaica e por isso não saberiam o que é um divórcio e a devida liberação para outro casamento, firmado pelos preceitos religiosos. Logo em seguida na cena, o Rabino Scott dá um exemplo banal e ridículo para tentar consolar Larry pela separação: o estacionamento. Os rabinos, nas piadas judaicas, costumam falar bastante e não chegar a lugar algum. Aqui também percebemos o retorno, tanto do conto inicial do filme, quanto da frase de Rashi: “aceite o mistério”. É preciso aceitar o mistério da separação assim como o da existência de um estacionamento, segundo Scott.

Não contente com a argumentação do Rabino Júnior e ainda tendo que pagar pelas despesas do funeral do amante de sua mulher, Larry procura o Segundo Rabino, mais experiente e vivido. O diálogo se encontra abaixo:

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Larry: O que Hashem está tentando me dizer, fazendo-me pagar pelo funeral do Sy Ableman? Contei para você que tive um acidente de carro ao mesmo tempo que o Sy? O mesmo instante, pelo que saiba. Hashem está tentando me dizer que Sy Ableman sou eu? Ou que nós todos somos um, ou algo assim? Como é que Deus fala conosco?

Rabino Nachtner: É uma boa pergunta. Você conhece Lee Sussman?

Larry: Dr. Sussman? Acho… Sim.

Rabino Nachtner: Alguma vez ele te contou sobre o dente do goy?

Larry: Não, o que é goy?

Rabino Nachtner: Então, Lee foi trabalhar um dia. Você sabe, ele faz próteses ortodônticas lá no Great Bear. Ele está fazendo um molde para corrigir uma ponte na boca de um dos seus pacientes, Russell Krauss. O molde secou, e Lee está conferindo um dia antes de fabricar a prótese. E notou algo incomum. Parecia ter algo gravado ali dentro dos incisivos inferiores do paciente. “Hey vav shin yud ayin nun yud. Ho-she-ay-ni”. “Ajude-me. Salve-me”. Isto, numa boca goy, Larry. Ele chamou o goy de volta com a desculpa que precisava de medidas adicionais para a prótese. “Como vai?” “Notou qualquer outro problema com os seus dentes?” “Não”. Lá estava. “Ho-she-ay-ni”. “Ajude-me”. Canalha. Sussman foi para casa. Sussman come? Não consegue comer. Sussman dorme? Não consegue dormir. Sussman olha os moldes dos seus outros pacientes, tanto de goys quanto judeus, à procura de outras mensagens. Não encontra nada. Olha na própria boca. Nada. Olha na boca da esposa. Nada. Mas Sussman é um homem culto. Talvez não o maior sábio do mundo. Não é nenhum rabino Marshak. Mas sabia uma coisa ou duas sobre o Zohar e a Cabala. Sabia que cada palavra em hebraico possui um número equivalente. 8-4-5-4-4-7-3. Sete dígitos. Talvez um número de telefone? “Olá? Você conhece um goy chamado Krauss, Russell Krauss?” – Quem? – Para onde liguei? “O Red Owl em Bloomington? Muito obrigado”. Ele foi até lá. É o Red Owl. Mercearia, o que tem? Sussman foi para casa. O que significava? Ele precisava saber ou nunca mais dormiria. Ele foi ver o rabino Nachtner. Entrou, sentou-se aí onde você está agora. O que significa, rabino? É um sinal do Hashem? “Ajude-me”. Eu, Sussman, deveria fazer algo para ajudar esse goy? Fazer o quê? Os dentes não diziam. Ou talvez eu deva ajudar as pessoas em geral a ter uma vida honrada? A resposta está na Cabala? No Torá? Ou isso é mesmo uma pergunta? Diga-me, rabino, o que esse sinal… “significa”?

Larry: Então? O que disse para ele?

Rabino Nachtner: Sussman?

Larry: Sim?

Rabino Nachtner: Isso é relevante?

Larry: Não foi por isso que me contou?

Rabino Nachtner: Certo. Nachtner disse: “Olhe”. “Os dentes, não sabemos”. Um sinal de Hashem? Não sabemos. Ajudar os outros? Não mata ninguém.

Larry: Não, não, mas quem colocou lá? Era para ele, Sussman? Ou para quem encontrasse? Ou só para…

Rabino Nachtner: Não podemos saber tudo.

Larry: Parece que você não sabe de nada! Por que então me contou essa história?

Rabino Nachtner: Primeiro eu deveria contar, então não deveria.

Larry: O que houve com o Sussman?

Rabino Nachtner: O que deveria acontecer? Nada demais. Ele voltou ao trabalho. Por um tempo, ele olhou os dentes dos pacientes atrás de mensagens. Não achou nenhuma. Depois, percebeu que havia parado de procurar. Voltou a viver. Estas questões que estão te perturbando, Larry, talvez sejam como uma dor de dentes. Sente-se por um tempo, então vão embora.

Larry: Não quero que vá embora! Eu quero uma resposta!

Rabino Nachtner: Claro, todos nós queremos uma resposta. Hashem não deve uma resposta para nós. Hashem não deve nada para a gente. A obrigação vem de outra maneira.

Larry: Por que ele nos faz sentir as perguntas se não vai dar nenhuma resposta?

Rabino Nachtner: Ele não me disse.

Larry: E o que aconteceu com o goy?

Rabino Nachtner: O goy? Quem se importa? (Coen 57min02s)

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Os Coen novamente fazem uma sátira com os rabinos. Esse rabino, apesar de mais experiente, também conta uma história insólita que não resolve o problema de Larry. O caso do dentista judeu que encontra algumas letras em hebraico nos dentes de um goy faz referência novamente à Cabala e o mistério. A combinação de letras, conhecida como Gematria (cada letra recebe um valor numérico), é explicada detalhadamente, mas não oferece nenhuma resposta convincente a Larry.

As piadas com os goyim são bem comuns entre os judeus. “E o que aconteceu com o goy? O goy? Quem se importa?” O fato do judeu ser um povo errante em decorrência da Diáspora coloca sempre o judeu como um estrangeiro em um mundo goy. Uma música em iídiche que é tocada quatro vezes durante o filme, Dem Milners Trern (As lágrimas dos moinhos), reflete essa procura por um lugar e as constantes expulsões vividas pelos judeus na Rússia Czarista no início do século XX:

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Ah, quantos anos passaram desde que eu tinha um moinho aqui, as rodas giram com o passar dos anos. Estou ficando velho e cinza. Há dias quero me lembrar se eu tinha um pouco de felicidade. As rodas giram com o passar dos anos e eu não tenho nenhuma resposta. Ouvi dizer que eles querem me expulsar para longe de minha aldeia e longe do moinho. As rodas giram como o passar dos anos, sem fim, sem objetivo. Onde eu vou morar? Quem vai cuidar de mim? Estou velho e já estou cansado. As rodas giram como o passar dos anos, e com elas vão também os judeus (Dem Milners Trern)[1].

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Não contente com a resposta de nenhum dos rabinos, Larry desesperado vai procurar o grande Rabino Marshak. A sala do Rabino é cheia de quadros e pertences sugerindo um grande conhecimento místico e cabalístico. Apesar de não receber mais ninguém para aconselhamento matrimonial, Larry implora por uma consulta. A secretária vai ao encontro do Rabino que não está fazendo absolutamente nada e, ao voltar para se encontrar com Larry, diz que infelizmente o Rabino Marshak não poderá atendê-lo: ele está ocupado “pensando”.

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(Reprodução)

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A participação de Marshak, sugerindo que ele seja de fato um grande cabalista, conhecedor dos mistérios do mundo, é mostrada na cena em que Danny, após seu Bar Miztvá, encontra-se com Marshak. Aparentemente o diálogo é incompreensível e insólito como muitos outros, porém o que Marshak fala com Danny é exatamente a letra da música Somebody to Love e os componentes do grupo Jefferson Airplane; música essa que Danny estava ouvindo quando teve seu walkman confiscado pelo seu professor. Com essa resposta e devolvendo o walkman para Danny, Marshak resolve momentaneamente o problema de Danny que é a perseguição por Fagel, já que lhe devia vinte dólares das drogas vendidas e o pagamento estava escondido em seu walkman confiscado.

Outra parte que os irmãos Coen trabalham com o humor, com a lógica e o nonsense é no diálogo entre Larry e o estudante coreano:

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Larry: Clive, entre. O que posso fazer por você?

Clive: Dr. Gopnik, acredito que as médias de Física foram injustas.

Larry: Por quê?

Clive: Eu recebi uma nota insatisfatória.

Larry: Na verdade, um R, de Reprovado. Sim. Você reprovou na avaliação. Exatamente.

Clive: É, mas isso não é justo. Não estava ciente de que seria examinado em matemática.

Larry: Não se vai bem em Física sem a Matemática, não é?

Clive: Se eu reprovar, perco a bolsa de estudos, e me sinto humilhado. Eu compreendo a Física. Compreendo o gato morto.

Larry: Mas você não pode entender Física sem entender a Matemática. Ela demonstra como a coisa toda funciona. É o mais importante. As histórias que contei na classe são para ilustrar. São fábulas, por assim dizer, para ajudá-los a entender. Digo… Até eu não entendo o gato morto. A Matemática é o que realmente resolve.

Clive: Difícil. Muito difícil.

Larry: Perdoe-me, mas…O que você propõe?

Clive: Aprovação.

Larry: Não. Não.

Clive: Ou talvez eu possa fazer o exame de novo. Agora sei que envolve Matemática.

Larry: Os outros estudantes não gostarão disso, gostarão? Um estudante poder refazer o exame até obter a nota que convém…

Clive: Um exame secreto.

Larry: Não.

Clive: Confidencial?

Larry: Não. É impraticável. Vamos ter que lidar com isso, Clive…

Clive: Muito problemático. Muito problemático. (Coen 14min40s)

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A Física é conhecida pela aplicação direta da Matemática para o entendimento e a demonstração de problemas aplicados. O problema do “gato morto” faz referência ao célebre Paradoxo de Schrödinger que está relacionado ao Princípio da Incerteza de Heisenberg. O entendimento completo desses problemas se faz pela compreensão da matemática avançada envolvida. Entender que o gato pode ou não estar morto, mas que nunca poderemos verificar empiricamente isso já que ao abrir a caixa o gato morrerá e dentro da caixa o gato pode estar vivo ou morto, discute importantes e difíceis conceitos da Física Quântica. Aqui os Coen brincam e criticam, talvez, as pessoas que se metem a falar dessas ditas ciências duras[2] não compreendendo nada sobre a matemática envolvida.[3]

Ao sair do gabinete de Larry, e não contente com a reprovação, o filme sugere que Clive deixa um envelope com dinheiro para seu professor, que não gosta e o chama novamente para conversar:

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Larry: Obrigado por vir, Clive. Sente-se. Tivemos, penso eu, uma ótima conversa outro dia. Mas você deixou algo…

Clive: Não deixei isso.

Larry: Você nem sabe o que eu ia falar.

Clive: Eu não deixei nada. Não estou sentindo falta de nada. Eu sei onde minhas coisas estão.

Larry: Então, Clive, de onde isso veio? Está aqui, não está?

Clive: Sim, senhor. Está aí.

Larry: Isso não é nada.

Clive: Isso é algo.

Larry: Sim. Isso é algo. O que é isso? Sabe o que é, creio eu. E sabe que não posso aceitar.

Clive: Sim, senhor.

Larry: Tenho de passar isso ao professor Finkle, junto com minhas suspeitas sobre de onde isso veio. Ações têm consequências.

Clive: Sim, quase sempre.

Larry: Não, sempre! Ações sempre têm consequências! Neste escritório, ações possuem consequências.

Clive: Sim, senhor.

Larry: Não só na Física, mas moralmente. E ambos sabemos sobre suas ações.

Clive: Não, senhor. Eu sei sobre minhas ações.

Larry: Posso interpretar, Clive. Sei o que queria que eu entendesse.

Clive: Mera imaginar ação, senhor.

Larry: “Mera imaginar ação, senhor”?

Clive: Mera imaginação, senhor. Muito incerto. (Coen 22min48s)

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O humor desse diálogo se dá pela lógica utilizada por Clive. Ele não nega nem aceita que o envelope tenha sido deixado por ele. Aceita o fato de o envelope estar na frente de ambos mas nega o fato de ter perdido alguma coisa, já que não sente falta de nada. O diálogo termina com a argumentação de Clive dizendo que tudo isso não passa de “mera imaginar ação”, um suposto delírio de ambos.

Com o intuito de ajudar seu filho que, segundo ele, vive um choque de culturas, Sr. Park vai à casa de Larry tentar reverter a situação. O diálogo é reproduzido abaixo:

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Sr. Park: Conflito de culturas. Conflito de culturas.

Larry: Com todo respeito, Sr. Park, não creio que seja isso.

Sr. Park: Sim.

Larry: Não. Seria conflito de culturas se fosse costume na sua terra subornar as pessoas para ser aprovado.

Sr. Park: Sim.

Larry: Está dizendo que é costume?

Sr. Park: Não, isso é difamação. Motivo para processar.

Larry: Deixe-me entender. Está ameaçando me processar por difamar seu filho?

Sr. Park: Sim.

Larry: Mas isso… Eu… Olha só… Se fosse difamação, deveria ter alguém… para quem eu o estivesse difamando… Vamos manter isso simples. Finjo que nunca teve dinheiro. Isso não é difamação.

Sr. Park: Sim. E aprovar.

Larry: Aprovar?

Sr. Park: Sim.

Larry: Ou vai me processar.

Sr. Park: Por extorquir dinheiro.

Larry: Então ele deixou o dinheiro?

Sr. Park: Isso é difamação!

Larry: Não faz sentido! Ele deixou o dinheiro ou não?

Sr. Park: Por favor, aceite o mistério. (Coen 40min01s)

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Acima podemos perceber a sutil retórica do Sr. Park que tenta reverter a possível proposta de suborno feita por seu filho a seu professor. Esse diálogo resume muito bem o argumento principal do filme: é necessário aceitar o mistério. Não saberemos nunca os motivos ou razões das coisas que acontecem conosco e com o mundo.

O cinema, de uma forma geral, admite diversas interpretações e relações. Aqui mostramos algumas de muitas relações possíveis do universo judaico dos Irmãos Coen.

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Referências

An-Ski, Sch. O dibuk. São Paulo: Editora Perspectiva, 1987.

Bloom, Harold. Cabala e crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

Bogue, Ronald. Deleuzian Fabulation and the Scars on History. Edinburgh: University Press, 2010.

Coen, Joel e Ethan. Dir. Um homem sério. Universal Pictures, 2009. Filme.

Deleuze, Gilles. Imagem-tempo. São Paulo: Editora Brasiliense, 2005.

Fux, Jacques. Literatura e Matemática: Jorge Luis Borges, Georges Perec e o OULIPO. São Paulo: Perspectiva, 2016.

Fux, Jacques. O HUMOR, A CABALA E A LITERATURA EM UM HOMEM SÉRIO, DOS IRMÃOS COEN. Revista Laboratorio N°6 ISSN 0718-7467. 2012.

Freud, Sigmund. Os chistes e sua relação com o inconsciente (Volume VIII). Rio de Janeiro: IMAGO, 1969.

Morais, Marília Brandão Lemos. “Humor e psicanálise”. In: Estudos de Psicanálise, no31, out.2008. Acesso em 29 fev. 2012. Disponível:

http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S010034372008000100014&script=sci_arttext.

Roth, Philip. Complexo de Portnoy. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

Scholem, Gershom. A Cabala e seu simbolismo. São Paulo: Perspectiva, 1978.

Singer, Isaac Bashevis. 47 contos de Isaac Bashevis Singer. Tradução: José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

Sosnowski, Saul. Borges e a Cabala: a busca do verbo. São Paulo: Perspectiva, 1991.

Stam, Robert. A literatura através do cinema: Realismo, magia e a arte da adaptação. Tradução: Marie-Anne Kremer e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

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Notas:

[1] Minha tradução.

[2] Em francês a Física e a Matemática são conhecidas como disciplinas duras, pela sua dificuldade.

[3] Para uma discussão mais profunda sobre essas relações: Literatura e Matemática: Jorge Luis Borges, Georges Perec e o OULIPO. Também há o livro de Alan Sokal: Imposturas Intelectuais que discute a falácia da autoridade de alguns importantes pensadores que resolveram falar sobre Matemática e Física.

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