por Fabrício Tavares de Moraes
George Bataille, em sua obra A Literatura e o Mal, lembra-nos da pergunta lançada certa feita pelo jornal comunista Auction: “Deve-se queimar Kafka?”. A referência primeira é seu testamento deixado ao amigo Max Brod, no qual instava seu desejo de que alguns escritos pessoais e sua produção literária incompleta fossem postumamente incinerados. Até hoje os leitores do cânone ocidental se regozijam por esse ato de rebelião que salvou e legou aos homens aforismas, parábolas e ensaios que somente enriqueceram a leitura e interpretação de uma das obras mais herméticas de toda a história da literatura.
Dificilmente há espaço hoje para a crença numa ingenuidade de Kafka: em suas conversas com o jovem Janouch, o autor tcheco confessa que participava das conspirações de seus amigos para a publicação de seus escritos (seus romances e novelas maiores), embora a todo momento fingindo certo contragosto. Sim, Kafka pertence à seleta classe de indivíduos cujos nomes transmutaram-se em adjetivos – existências e personalidades que são metonímias para uma visão distinta e singular do mundo.
Goethe dizia que “as épocas da vida humana perpassam, segundo um desenvolvimento característico, uma série de visões de mundo”. Ora, talvez seja possível a transposição dessa verdade para o âmbito histórico, de modo que, evitando o apelo a um conceito vago como o “espírito da época” (Zeitgeist), afirmemos que cada era histórica tem em seu cerne uma visão de mundo toda sua. E, com efeito, Kafka, possivelmente tanto quanto o Holocausto, transfigurou-se em símbolo para a interpretação de nosso momento histórico.
Curiosamente, porém, a vida de Kafka permanece tão hermética quanto sua obra, e as chaves de leitura – da psicanálise, passando pelo sionismo até a interpretação cabalística – ainda não foram, e jamais serão, suficientemente exaustivas para compreendê-la. Como já disse certo autor, alguns escritores, por mais que neguemos, permanecem num panteão literário, ou mais modestamente numa confraria extremamente seletiva, na qual os fatos apenas projetam lampejos, que jamais clarificam por inteiro sua existência.
É possível e razoável explicar a gênese do mórbido poema “The Sleeper” apelando à experiência infantil de Poe com uma mãe enfermiça e constantemente acamada; porém dificilmente aceitaríamos uma semelhante análise no tocante ao Fausto ou mesmo Wasteland. Em resumo, retomando o exemplo anterior, “um gênio como Goethe está longe de ser explicado quando se sabe que ele herdou a ‘estatura’ do pai e a ‘alegre disposição’ da mãe” – já dizia Bavinck.
Mas até mesmo nesse ponto, confessemos, as coisas se complicam, pois o entendimento da relação filial e o conhecimento da figura paterna são essenciais para uma abordagem ainda que superficial da obra kafkiana. E disto segue-se desde uma possível leitura a partir de um Complexo de Édipo até uma análise sociológica da figura de uma divindade portentosa do judaísmo (o ambiente religioso do autor tcheco) – algo semelhante ao que, em outra parte, Howard Eilberg-Schwartz fez em seu livro O Falo de Deus: e outros problemas para o homem e o monoteísmo.
Desse modo, o que presentemente propomos diz respeito não simplesmente à irredutibilidade da obra literária ou da personalidade humana a um princípio (ao menos não a um princípio imanente), mas sim às complexas relações entre ambas no amplo espectro da cultura. Isto é, em que medida a força da individualidade e o projeto literário de um autor, cada um a seu modo, nos auxiliam na tarefa de interpretação de uma época?
A vida de Dostoiévski, por exemplo, incluindo os pontos de tensão que foram o assassinato de seu pai por servos revoltosos e sua pena de morte comutada para o exílio na Sibéria, é literalmente substância para romance: Leonid Tsypkin fez do romancista russo o protagonista de seu livro Verão em Baden-Baden; e Coetzee, pouco mais de uma década depois, agiu de modo semelhante quando escreveu seu Dostoiévski, o Mestre de São Petersburgo. Logo, sua vida e romance são igualmente matrizes de interpretação de toda uma cultura.
E mesmo um indivíduo – e um gênio – declaradamente pacato e reservado como Henry James, que levou uma vida aparentemente de sensaboria aristocrática, torna-se um polo de tensões em O Mestre, de Colm Tóibin.
Porém, e Kafka? Por que não um romance ou uma tentativa de ensaio sobre sua vida? Certamente temos o célebre conto de Isaac Bashevis Singer, seu Diário Íntimo, de uma escrita tão tortuosa e dura quanto sua prosa literária, e também as conversas com Gustav Janouch. Apesar das falhas não tão imperceptíveis no estilo deste amigo de Kafka, há trechos que, se não desnudam algumas carapaças do escritor tcheco, ao menos revelam sua fragilidade:
Kafka disse-me nessa ocasião: – Você descreve o poeta como um ser de estatura prodigiosa, cujos pés se encontram sobre a terra, enquanto sua cabeça desaparece nas nuvens. É naturalmente uma imagem bem habitual no quadro de representações convencionais da pequena burguesia. É uma ilusão, saída dos desejos escondidos e que não tem nada a ver com a realidade. O poeta é na verdade sempre menor e mais fraco que a média da sociedade. Por isso ele sente o peso da existência terrestre muito mais intensa e fortemente que os outros homens. Cantar não passa, para ele pessoalmente, de uma forma de gritar.
Como artista da fome, Kafka por vezes propunha-se um jejum da realidade cotidiana, quando trancafiado em seu quarto durante noites de insônia, declarava em seu Diário que, “apesar de todas as atribulações, [descansava] sobre o [seu] romance como uma estátua que olha para distância descansa sobre o pedestal”. E sentindo-se como uma fera grotescamente autoconsciente, o autor confessou ao amigo Janouch: “Carrego minhas barras sempre comigo” – barras que revelam certa consciência de sua condição de animal raro. E, com efeito, ele leva até o fim essa sua imagem da jaula:
Quando [Janouch] disse que o livro de Garnett [Lady into fox] copiava o método de A Metamorfose, Kafka deu um sorrio cansado e disse, com um pequeno gesto de recusa: – Não. Isso não vem de mim. Isso vem da época. Foi daí que copiamos um e outro. O animal está mais próximo de nós do que o homem. São as grades. O parentesco com o animal é mais fácil do que com os homens.
Sendo um judeu vivendo numa Praga dividida entre os falantes do alemão e os falantes da língua tcheca, cada qual com sua própria identidade marcada; vendo no sionismo sua porta de salvação; e por fim sacrificando suas energias e projetos literários em razão de um posto burocrático, Kafka quase ascende à categoria de uns dos paradoxos que geralmente invocamos como explicação de nossa presente condição.
E curiosamente Jeffrey Meyers, num artigo para a New Criterion, traçando as relações de interesse entre a obra de Kafka e a de Thomas Mann, sublinha a convergência da vida do primeiro com a arte do último. Em 1924, quando Kafka morre de tuberculose num sanatório em Klosterneuburg, Mann publica A Montanha Mágica, obra na qual nos deparamos com seu Hans Castorp tuberculoso debatendo filosofia também no ambiente lúgubre de um sanatório. Meyers acrescenta:
Kafka poderia ter sido um personagem do romance de Mann. Suas sombrias experiências com os tratamentos médicos e sua atitude para com a doença, os doutores e os demais pacientes, suas digressões e sua vida emocional, sua psicologia e sintomas do período de 1917 a 1924 são surpreendentemente semelhantes aos de Hans Castorp no período que vai de 1907 a 1914. As experiências de Kafka confirmam a autenticidade clínica do romance e ilumina o caráter do herói paradoxal de Mann.
Talvez não seja equivocada a afirmação de que Kafka lança luz não apenas sobre o mundo sombrio do romance de Mann, mas também sobre um modo de ser, de uma experiência profunda percebida com certa recorrência, porém expressa ocasionalmente aqui e ali. Chamemo-la de spleen, taedium vitae, Weltschmerz (a dor do mundo) ou ainda Geworfenheit (o ser lançado no mundo), a escolher.
O que se mostra incontestável, porém, é que a vida e obra de Kafka são uma espécie de testemunho de que, ao menos do ponto de vista presente, o destino que nos cabe é superior aos próprios limites de nossa condição. Conforme consta numa entrada de seu diário, em 19 de outubro de 1921: “Não foi devido a ser muito breve a sua vida que Moisés não atingiu Canaã, mas pela razão de que era uma vida humana”.
Impedidos da entrada na Terra Prometida ou mesmo, mais modestamente, num Castelo soturno, é possível que, como exilados modernos, sejamos mais Kafkas do que propriamente kafkianos.